OPINIÃO
Não se estuda a personalidade dos juízes, não se despistam preconceitos, não se dá formação sobre enviesamentos inconscientes. Em resultado, acumulam-se más sentenças.
31 de Março de 2021, 0:10
Não alinho em populismos que dão os políticos como todos
péssimos, medíocres sedentos de poder e de tirarem benefícios próprios. Não
são. A maioria tem uma genuína preocupação com o bem comum. Levo a mesma
opinião para os juízes. Julgo que a maioria trabalha, e muito, com toda a
dignidade, procurando servir e dispensar justiça.
No entanto, temos de reconhecer que algo de podre se passa
no reino da Dinamarca. Ou da Boa Hora ou do Campus da Justiça. E os juízes que
trabalham com dignidade e espírito de serviço terão de ser os primeiros
interessados em alterar radicalmente o estado de coisas.
O episódio do juiz Rui Fonseca e Castro, fundador de um
grupo de negacionistas com nome Juristas pela Verdade é só mais um caso que
mostra os critérios desafinados de seleção de pessoas na magistratura e, pelo
menos, deficiente formação. Um juiz incentivando milhares de pessoas a
rebelarem-se contra a lei. O
mesmo juiz desafiando o diretor nacional da PSP para um duelo moderno, e
com tiradas de masculinidade tóxica do calibre ‘parece uma menina a chorar’ ou
‘resolver isto como homens’. É todo um programa de alucinação. Como pode alguém
assim ser juiz?
Claro que o episódio é ridículo. Feito para agitar as redes
sociais. Mas é também indício do mal que grassa. Recordemos as sentenças de
violência sobre mulheres que continuam a sancionar agressores com leves penas
suspensas, no máximo. Nos últimos meses tivemos mais casos.
A Relação de Guimarães puniu
com pena suspensa trinta e dois anos de maus tratos e de violência doméstica.
Usou-se o argumento iníquo do costume: não havia antecedentes criminais e
estava profissionalmente inserido. Um homem bate numa mulher por trinta e dois
anos. Mas não tinha batido antes em ninguém, pelo que não se vai tratar como
criminoso. Toda a gente sabe como as mulheres conseguem ser insuportáveis. E
tem emprego. Também não se espatifa a vida profissional de um homem só por
trinta e dois anos de agressões a uma mera pessoa do sexo feminino. Se tivesse
insultado um juiz, o caso seria grave. Mas foi só pancada numa mulher, calhando
pouco escolarizada.
Em Alcobaça, um condenado com pena suspensa por violência doméstica voltou,
oh surpresa, a agredir a ex mulher. No dia 21 de dezembro de 2020 a
sentença de pena suspensa transitou em julgado e poucos dias depois já
reincidia. Normal: se não teve punição da primeira vez, por que teria medo de
reincidir?
Há poucos dias, em Aveiro, um homem que
violou e agrediu a ex companheira foi condenado – adivinhem – mas com suspensão
de pena. Saindo do arco da violência doméstica, há meses escrevi aqui no
jornal sobre a
perseguição que se faz às mães nos tribunais de família – ao contrário
do mito muito divulgado de favorecimento das mães.
A masculinidade tóxica pode não ser tão histriónica em todos
os juízes como no caso do juiz negacionista, mas é impossível não concluir que
a magistratura padece de um machismo gritante. E não isento totalmente as
mulheres juízes deste mal. Ainda que se verifiquem diferenças significativas
por sexo de juízes em se tratando de casos de violência sobre mulheres. As
juízas condenam em 71% dos julgamentos de violência doméstica, enquanto os
juízes homens só condenam 45,5% dos réus. Donde, há uma desvalorização clara
dos homens juízes dos crimes violentos sobre mulheres. É o que concluiu um
estudo da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto. Em todo o caso, as pensas são suspensas em 88% das condenações por
violência doméstica.
O que me traz de novo à seleção e formação de juízes. Para
se entrar no curso do CEJ é necessária uma avaliação psicológica com parecer
‘favorável’. Não tenho meios de saber se tal avaliação psicológica é bem feita
ou se somente um pro forma. Apostaria na segunda alternativa, num estudo que
verifique só capacidades cognitivas.
De qualquer modo, estes testes estão a falhar. Nas polícias,
a IGAI apresentou recentemente um plano para, logo na fase de
recrutamento, despistar tendência para ideias intolerantes e extremistas ou
níveis reduzidos de empatia. Talvez fosse bom estender algo semelhante a
juízes. Avaliar níveis de simpatia/antipatia pela ideia de igualdade de género.
Aferir preconceitos sobre imigrantes ou membros de minorias. E por aí em
diante.
Refira-se que os testes psicológicos de seleção para a
polícia já são extensos, bem feitos e orientados por profissionais competentes.
Pretende-se aumentar-lhes a exigência. O contraste do escrutínio a que são
submetidos os candidatos à polícia versus o
aplicado aos potenciais juízes é avassalador. Mais um sintoma do vício tão
português de devassar à vontade na base da pirâmide, porém um respeito
reverencial pelo topo da pirâmide.
A formação contínua de juízes é outro campo propenso a
alucinação. Há uns anos houve uma formação promovida pelo CEJ sobre
‘alienação parental’. Conceito sem qualquer fundamento científico,
rejeitado por todas as organizações relacionadas com saúde, mas conveniente
porque dá cobertura aos abusos judiciais às mães nos conflitos parentais: são
assim facilmente despachadas como bruxas alienadoras. Uma espécie de ‘vacinas,
salvação ou perigo para a humanidade, você decide’ em versão Direito da
Família.
Comparando novamente com as polícias. Há estudos feitos por
bons psicólogos sobre os traços de personalidade dos polícias e as suas
motivações. Não são públicos, mas a polícia usa-os. Para os juízes, claro, nada
disto se faz. Não se estuda a personalidade dos juízes – apesar do poder
avassalador que têm sobre a vida de terceiros. Não se despistam preconceitos.
Nem doenças – imaginem o mal que pode causar um juiz sofrendo de uma leve depressão.
Não se dá formação sobre enviesamentos inconscientes. Em resultado, acumulam-se
más sentenças, por vezes com tiradas profundamente injuriosas para as vítimas.
O poder político vai a eleições regularmente. O poder
económico está limitado pela lei, reguladores, estado, sindicatos – e, em
última instância, pelo mercado e pelos clientes. O poder judicial tem somente o
Conselho Superior de Magistratura a escrutiná-lo – e manifestamente não chega
para as encomendas.
A mudança e a saída deste mal geral tem de partir dos
próprios juízes. Caso nada façam, continuará o rol de más sentenças correndo
os media e as redes
sociais. Proliferarão juízes como o negacionista Rui Castro, à procura de
mediatismo. Até estarem totalmente desacreditados.
A autora escreve segundo
o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2021/03/31/opiniao/opiniao/juizes-falar-1956548
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