quarta-feira, 31 de março de 2021

Maria João Marques - Juízes, temos de falar

OPINIÃO

Não se estuda a personalidade dos juízes, não se despistam preconceitos, não se dá formação sobre enviesamentos inconscientes. Em resultado, acumulam-se más sentenças.

Maria João Marques

31 de Março de 2021, 0:10

Não alinho em populismos que dão os políticos como todos péssimos, medíocres sedentos de poder e de tirarem benefícios próprios. Não são. A maioria tem uma genuína preocupação com o bem comum. Levo a mesma opinião para os juízes. Julgo que a maioria trabalha, e muito, com toda a dignidade, procurando servir e dispensar justiça.

No entanto, temos de reconhecer que algo de podre se passa no reino da Dinamarca. Ou da Boa Hora ou do Campus da Justiça. E os juízes que trabalham com dignidade e espírito de serviço terão de ser os primeiros interessados em alterar radicalmente o estado de coisas.

O episódio do juiz Rui Fonseca e Castro, fundador de um grupo de negacionistas com nome Juristas pela Verdade é só mais um caso que mostra os critérios desafinados de seleção de pessoas na magistratura e, pelo menos, deficiente formação. Um juiz incentivando milhares de pessoas a rebelarem-se contra a lei. O mesmo juiz desafiando o diretor nacional da PSP para um duelo moderno, e com tiradas de masculinidade tóxica do calibre ‘parece uma menina a chorar’ ou ‘resolver isto como homens’. É todo um programa de alucinação. Como pode alguém assim ser juiz?

Claro que o episódio é ridículo. Feito para agitar as redes sociais. Mas é também indício do mal que grassa. Recordemos as sentenças de violência sobre mulheres que continuam a sancionar agressores com leves penas suspensas, no máximo. Nos últimos meses tivemos mais casos.

A Relação de Guimarães puniu com pena suspensa trinta e dois anos de maus tratos e de violência doméstica. Usou-se o argumento iníquo do costume: não havia antecedentes criminais e estava profissionalmente inserido. Um homem bate numa mulher por trinta e dois anos. Mas não tinha batido antes em ninguém, pelo que não se vai tratar como criminoso. Toda a gente sabe como as mulheres conseguem ser insuportáveis. E tem emprego. Também não se espatifa a vida profissional de um homem só por trinta e dois anos de agressões a uma mera pessoa do sexo feminino. Se tivesse insultado um juiz, o caso seria grave. Mas foi só pancada numa mulher, calhando pouco escolarizada.

Em Alcobaça, um condenado com pena suspensa por violência doméstica voltou, oh surpresa, a agredir a ex mulher. No dia 21 de dezembro de 2020 a sentença de pena suspensa transitou em julgado e poucos dias depois já reincidia. Normal: se não teve punição da primeira vez, por que teria medo de reincidir?

Há poucos dias, em Aveiro, um homem que violou e agrediu a ex companheira foi condenado – adivinhem – mas com suspensão de pena. Saindo do arco da violência doméstica, há meses escrevi aqui no jornal sobre a perseguição que se faz às mães nos tribunais de família – ao contrário do mito muito divulgado de favorecimento das mães.

A masculinidade tóxica pode não ser tão histriónica em todos os juízes como no caso do juiz negacionista, mas é impossível não concluir que a magistratura padece de um machismo gritante. E não isento totalmente as mulheres juízes deste mal. Ainda que se verifiquem diferenças significativas por sexo de juízes em se tratando de casos de violência sobre mulheres. As juízas condenam em 71% dos julgamentos de violência doméstica, enquanto os juízes homens só condenam 45,5% dos réus. Donde, há uma desvalorização clara dos homens juízes dos crimes violentos sobre mulheres. É o que concluiu um estudo da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Em todo o caso, as pensas são suspensas em 88% das condenações por violência doméstica.

O que me traz de novo à seleção e formação de juízes. Para se entrar no curso do CEJ é necessária uma avaliação psicológica com parecer ‘favorável’. Não tenho meios de saber se tal avaliação psicológica é bem feita ou se somente um pro forma. Apostaria na segunda alternativa, num estudo que verifique só capacidades cognitivas.

De qualquer modo, estes testes estão a falhar. Nas polícias, a IGAI apresentou recentemente um plano para, logo na fase de recrutamento, despistar tendência para ideias intolerantes e extremistas ou níveis reduzidos de empatia. Talvez fosse bom estender algo semelhante a juízes. Avaliar níveis de simpatia/antipatia pela ideia de igualdade de género. Aferir preconceitos sobre imigrantes ou membros de minorias. E por aí em diante.

Refira-se que os testes psicológicos de seleção para a polícia já são extensos, bem feitos e orientados por profissionais competentes. Pretende-se aumentar-lhes a exigência. O contraste do escrutínio a que são submetidos os candidatos à polícia versus o aplicado aos potenciais juízes é avassalador. Mais um sintoma do vício tão português de devassar à vontade na base da pirâmide, porém um respeito reverencial pelo topo da pirâmide.

A formação contínua de juízes é outro campo propenso a alucinação. Há uns anos houve uma formação promovida pelo CEJ sobre ‘alienação parental’. Conceito sem qualquer fundamento científico, rejeitado por todas as organizações relacionadas com saúde, mas conveniente porque dá cobertura aos abusos judiciais às mães nos conflitos parentais: são assim facilmente despachadas como bruxas alienadoras. Uma espécie de ‘vacinas, salvação ou perigo para a humanidade, você decide’ em versão Direito da Família.

Comparando novamente com as polícias. Há estudos feitos por bons psicólogos sobre os traços de personalidade dos polícias e as suas motivações. Não são públicos, mas a polícia usa-os. Para os juízes, claro, nada disto se faz. Não se estuda a personalidade dos juízes – apesar do poder avassalador que têm sobre a vida de terceiros. Não se despistam preconceitos. Nem doenças – imaginem o mal que pode causar um juiz sofrendo de uma leve depressão. Não se dá formação sobre enviesamentos inconscientes. Em resultado, acumulam-se más sentenças, por vezes com tiradas profundamente injuriosas para as vítimas.

O poder político vai a eleições regularmente. O poder económico está limitado pela lei, reguladores, estado, sindicatos – e, em última instância, pelo mercado e pelos clientes. O poder judicial tem somente o Conselho Superior de Magistratura a escrutiná-lo – e manifestamente não chega para as encomendas.

A mudança e a saída deste mal geral tem de partir dos próprios juízes. Caso nada façam, continuará o rol de más sentenças correndo os media e as redes sociais. Proliferarão juízes como o negacionista Rui Castro, à procura de mediatismo. Até estarem totalmente desacreditados.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2021/03/31/opiniao/opiniao/juizes-falar-1956548


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