Os problemas que marcam este
século, o que nos espera e o que podemos mudar. Boaventura de Sousa Santos,
sociólogo, conversa com o SAPO24 sobre os temas que dominam a atualidade. E o
futuro também.
Boaventura de
Sousa Santos -
Doutorou-se na reputada
Universidade de Yale e até à pandemia dividia o seu tempo entre Portugal e os
Estados Unidos, há já 35 anos. Tempo suficiente para muitas aulas, mas incapaz
de trair o sotaque de Coimbra, onde por estes dias se refugia.
E foi lá, em Quintela, que
Boaventura de Sousa Santos, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais e
coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça, escreveu o seu
mais recente livro, “O Futuro Começa Agora – Da Pandemia à
Utopia”. E já tem outros na calha.
Foi também a partir da sua casa
de família na aldeia que nos encontrámos, via Skype, para uma conversa que deu
a volta ao mundo. Aos 80 anos, o sociólogo faz um breve retrato da sociedade
portuguesa e dos políticos que a guiam: "A sociedade civil portuguesa é
fraca. Temos falta de cultura democrática e os 48 anos de ditadura
habituaram-nos a confiar no poder". "Com Marcelo [Rebelo de Sousa]
não haverá nenhuma transformação estrutural, porque ele é um homem que pensa
que a sociedade está estruturalmente bem".
Mas é preciso contextualizar, não
basta ler "as gordas". "Em Portugal, se uma pessoa tem uma
posição discordante, ou se insulta ou se ignora, raramente se discute com
argumentos", diz. E foi a desfilar sobre eles, do ambiente à mulher, da
velhice à regionalização, das vacinas à justiça, da fé às desigualdade sociais,
que foi conduzida a entrevista com Boaventura de Sousa Santos, que receia que o
dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência destinado à ciência vá todo para
a inovação e "acabe nas mãos dos bancos". Mas essa terá de ser outra
conversa.
"O Futuro Começa
Agora". É uma espécie de mantra ou é mais fatalismo?
Se analisarmos historicamente, há
certo tipo de acontecimentos que vão repercutir-se nos anos seguintes, ou no
século seguinte, e que são particularmente importantes, por isso assumem um
estatuto diferente. Foi o caso da Revolução Industrial, que veio determinar
toda a vida do século XIX, ou da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa
de 1917, os dois acontecimentos que marcaram o século XX. Para o século XXI já
houve vários candidatos, como o ataque às Torres Gémeas ou a crise financeira
de 2008. Atribuo a esta pandemia um significado particular e condicionador de
muito do que vai acontecer, fundamentalmente porque veio para ficar, não vamos
ver-nos livres dela nos próximos tempos.
Será condicionadora em que
aspeto?
Em muitas partes do mundo - cá
também, mas noutras partes do mundo de maneira mais forte - esta pandemia foi
também um grande pretexto para se introduzirem medidas de intromissão e de
vigilância na vida privada das pessoas, controlo da população, controlo de
movimentos, que não vão desaparecer de maneira nenhuma. A pandemia foi o
primeiro grande ensaio a nível global de como se pode controlar populações.
Sempre defendi e apoiei o confinamento. Quando comparo internacionalmente, vi
na forma como o Estado português conduziu o processo, no domínio dos estados de
emergência, a procura de proteger a privacidade, a intimidade e a autonomia dos
cidadãos, basta ver o que sucedeu com a aplicação Stayaway Covid, que é
voluntária. Não foi assim noutros lugares, na China, Taiwan, Singapura, Coreia
do Sul houve muito mais vigilância do que em Portugal. Por outro lado, a
pandemia está muito ligada ao modelo de desenvolvimento que temos hoje, de
consumo e de produção, e à degradação da natureza e iminente catástrofe
ecológica, cada vez mais notória.
"É NESTA DICOTOMIA ENTRE A ALTA ARROGÂNCIA TECNOLÓGICA E A IMENSA
FRAGILIDADE HUMANA QUE ESTE SÉCULO SE VAI CARACTERIZAR"
É isso que vai produzir a
recorrência de pandemias?
Sim. Vamos ter de viver com outra
dimensão da fragilidade. A fragilidade que surgiu das Torres Gémeas é a
fragilidade do império, do país mais forte, mais desenvolvido, que pode invadir
os outros e que, de repente, não consegue proteger o seu espaço aéreo. Agora,
os Estados Unidos é o país com maior incidência de mortes por Covid, mas o
mundo inteiro está na mesma situação. É um fenómeno que vai ficar connosco
durante este século e que vai condicionar muitas políticas, inclusivamente as
políticas públicas. Sabemos agora, pela pressão das vacinas, por exemplo, o que
isto significa a nível mundial, a dependência que cria e a insegurança que se
instala a cada momento quando aparece uma variante. Neste momento nem sabemos
se terá de haver uma vacina sazonal, como acontece para a gripe. Há um elemento
de incerteza que vai continuar a condicionar o século, articulado com outros de
sinal contrário, como a ideia de domínio total, da inteligência artificial, o
anúncio de uma quase utopia tecnológica que mostrava o poder do ser humano
sobre a vida.
"A BIG PHARMA INVESTE POR ANO ENTRE 15 E 17 MILHÕES DE EUROS PARA
PRESSIONAR DECISÕES DA UNIÃO EUROPEIA"
Até que a pandemia nos
separe...
De repente, temos a pandemia a
mostrar exatamente o contrário. É nesta dicotomia entre a alta arrogância
tecnológica e a imensa fragilidade humana que este século se vai caracterizar.
Sobre a dependência das
vacinas, como reage à declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto
Santos Silva, que disse na Assembleia da República que comprar vacinas a outros
países é "traição" à Agência Europeia do Medicamento?
Começa na péssima negociação que
a União Europeia fez com as farmacêuticas. Não sabemos o mais importante dos
contratos, mas as farmacêuticas têm a faca e o queijo na mão. Os tribunais
arbitrais são amigos das grandes empresas e decidem normalmente a favor delas,
porque estes contratos têm cláusulas usurárias de confidencialidade. Há uma
certa chantagem, os contratos não deviam ser tornados públicos, houve até o
caso da governante belga [secretária de Estado do Orçamento, Eva De Bleeker]
que publicou os preços das vacinas no Twitter, o que gerou receio de punições.
Muito do que se tem vindo a saber é por pressão do Parlamento Europeu. Repare
que pela primeira vez certos países do sul podem ficar mais bem protegidos
contra o vírus do que os do norte, que estão presos a multinacionais e não
aceitam o que está a ser criado fora. A União Europeia só quer favorecer as
suas grandes empresas, por isso não abriu às vacinas de Cuba, da Rússia ou da
China. Porque não faltam vacinas. Este é um negócio muito sujo: a Big Pharma
investe por ano entre 15 e 17 milhões de euros para pressionar decisões da
União Europeia e o conjunto da indústria farmacêutica tem 175 lobistas em
Bruxelas, de acordo com o Corporate Europe Observatory. O ministro Santos Silva
assume a tradição do bom aluno, é produto de um europeísmo mais ou menos
conservador.
A questão é que as
farmacêuticas estão a falhar nas quantidades e nos prazos de entrega, haverá
sempre países beneficiados e prejudicados.
E há a suspeita de que as
empresas podem estar a fazer reserva, porque os preços só estão garantidos até
final de junho, depois podem explodir. Por outro lado, há o COVAX, da
Organização Mundial de Saúde [mecanismo que tem como objetivo acelerar o
desenvolvimento e fabrico de vacinas e garantir o acesso justo e equitativo a
todos os países do mundo]. Mas, para funcionar, é preciso que as farmacêuticas
abdiquem dos direitos de patente. Traição ou crime contra a humanidade é o que estamos
a fazer ao congelar reservas financeiras da Venezuela, por ordem dos Estados
Unidos, fundamentais para o país fazer face às suas despesas sanitárias. O
embargo é cruel e impede o país de comprar material com o dinheiro que está
depositado nos nossos bancos, em Portugal e em Inglaterra. E há outras
questões, como a Pfizer estar a testar a sua vacina nas grávidas de Manhiça.
Podia estar a fazê-lo em mulheres europeias, mas não, fá-lo em Moçambique.
Voltando um pouco atrás:
nasceu durante a Segunda Guerra Mundial...
Nasci em 1940. Lembro-me muito
bem de ir com a minha mãe, era pequenino, para a fila do racionamento, porque
não havia arroz, manteiga - um dos produtos que faltou mais depois da guerra.
Para mim, o que marcou o século XX foi a Primeira Guerra Mundial, e a Segunda
Guerra é a continuação disso: morreram 78 milhões de pessoas, das quais cerca
de 25 milhões eram soldados russos - foi o país que mais mortos teve de sofrer
para vencer Hitler. Vivemos num continente extremamente violento, nunca se matou
tanta gente como na Europa no século XX. A Europa hoje apresenta-se como o
continente dos direitos humanos, da paz e da democracia, mas isso é uma coisa
muito recente.
"ESTE MODELO DE DESENVOLVIMENTO, COM A ECONOMIA ASSENTE NO
PETRÓLEO, NO GÁS, NA MINERAÇÃO A CÉU ABERTO, NA DESTRUIÇÃO DAS FLORESTAS, NA
CONTAMINAÇÃO DOS RIOS, NO CONSUMO OBSOLESCENTE, TEM DE TERMINAR"
Ia perguntar-lhe, porque
passou por diversas guerras e várias crises, se as compara com a pandemia e
como?
Em Portugal tivemos até populações
ligadas a nós, que não eram portugueses, que sofreram condições extremamente
difíceis, impostas pelo colonialismo. Houve uma Guerra Colonial, que em África
se chama Guerra de Libertação, desde 1961 até 1974. São anos de guerra com
muitos mortos de parte a parte, mas sobretudo de populações africanas, onde
houve muita violência. Só que essa foi uma guerra que exportámos, digamos
assim. No continente, o que tivemos neste período foi a ditadura salazarista.
Para os portugueses em particular, o século passado tem o facto de em 1974
termos posto fim a meio século de ditadura. Na Europa não tiveram isso, tiveram
guerra. E tiveram as democracias mais ou menos consolidadas, com exceção do
bloco soviético, até 1989. Acredito que para muita gente da Europa oriental a
transformação mais profunda tenha ocorrido com o colapso do sistema soviético.
A nível regional as coisas têm sempre uma leitura muito específica: se formos
para a América Latina as datas são outras, muito diferentes de país para país:
ditadura no Chile, guerra na Guatemala, 50 anos em guerra (até 2016) na
Colômbia - sou membro do conselho assessor da Comissão de Verdade e de
Reconciliação. Cada país tem os seus traumas. A pandemia, no entanto,
condiciona há um ano a abertura de noticiários e a vida pública em todo o
mundo, o que não aconteceu com os outros fenómenos.
"ENTRE 2030 E 2050 METADE DA POPULAÇÃO NÃO TERÁ ÁGUA POTÁVEL"
Falou nas guerras, nas
questões do ambiente, nos diversos traumas. Em tantos séculos ainda não
aprendemos a viver. O que nos trava?
Há uma coisa que não gostamos
muito de enfrentar: este modelo de desenvolvimento, com a economia assente no
petróleo, no gás, na mineração a céu aberto, na destruição das florestas, na
contaminação dos rios, no consumo obsolescente, tem de terminar. Lembro-me de
os meus pais me darem um relógio quando fiz dez anos, e foi o relógio que usei
praticamente durante 50 anos. Agora os relógios mudam-se consoante o vestuário.
A moda Outono/Inverno e Primavera/Verão são formas de obsolescência programada,
como os telefones ou as lâmpadas. Um carro que devia durar 20 anos, agora dura
dois. Tudo isto está programado para não durar e para alimentar o consumo e
isso é extremamente desgastante. É evidente que não temos aprendido - só
aprendemos na desgraça, digamos assim. Há notícias assustadoras e, no entanto,
sentimo-las como despercebidas. António Guterres, como secretário-geral da ONU,
tem vindo a alertar para a crise climática iminente: corremos o risco de neste
século a temperatura aumentar três graus. E se a temperatura aumentar três
graus, a vida vai ficar impossível para muitas populações do mundo; os oceanos
vão subir, países vão desaparecer. Além de que vamos ter, como previsto pelas
Nações Unidas, uma leva de refugiados ambientais, outra característica deste
novo século, porque vivemos numa amplitude térmica relativamente limitada,
mesmo com ares condicionados e aquecimentos.
Portugal será um dos países
afetados, é considerado de risco elevado.
Portugal está ameaçado de
desertificação em toda a zona sub-Lisboa. Mas estas notícias emergem e não
acontece absolutamente nada. Os cientistas da ONU estão a dizer-nos que entre
2030 e 2050 metade da população não terá água potável. Quem está a acreditar
nisto são as grandes empresas multinacionais. A Nestlé está a comprar água por
todo o mundo, a comprar aquíferos nos países onde pode. Sabe que vamos precisar
desta água. O cidadão comum não está a acreditar, as políticas não estão
orientadas para isso, numa sociedade que é capitalista, onde tudo é negócio. A
água já está no mercado de futuros.
No entanto, não está
salvaguardada na Constituição da República Portuguesa. Devia?
Penso que, na altura, os
constituintes estavam tão preocupados em segurar a democracia e os direitos
sociais, dado o tipo de revolução por trás da Constituição, que não tiveram uma
preocupação ecológica. O Uruguai e outros países têm na sua constituição que os
aquíferos não podem ser vendidos, são património nacional. Portugal não tem
garantias deste tipo - podemos lá chegar através de algumas interpretações, se
o Tribunal Constitucional estiver a fim, mas não é certo. E as empresas estão a
criar não só reservas de água, como reservas agrícolas. Alguns países também
consideram que a terra é um bem público, que não pode ser alienado a
estrangeiros. Vai a África ou à América Latina e vê os países da Ásia a comprar
terra para reserva alimentar - a Coreia do Sul tem comprado muito, a Arábia
Saudita tem comprado muito. Para reserva alimentar para os seus, não é para os
africanos. Agora, é verdade que vivemos num mundo de miopia programada, isto é,
não queremos enfrentar os grandes problemas porque eles extravasam muito os
ciclos eleitorais.
"UMA DAS COISAS QUE PODE VIR A CARACTERIZAR AS PRÓXIMAS DÉCADAS É
A GUERRA COM A CHINA"
É uma das imperfeições da
democracia?
O nosso sistema democrático, que
é bom a outros níveis, neste caso é fatalmente deficiente, porque os políticos
que estão no poder ou na oposição pensam sempre em termos de ciclos de quatro
anos. O que também é bom, porque se for por muito mais tempo pode ser uma
ditadura. Mas devia haver pactos democráticos ambientais. Hoje fala-se muito de
um pacto ambiental sul-sul, são muitos os países do sul que estão preocupados e
a tentar encontrar formas de se proteger, porque são eles que estão a pagar a
fatura da degradação ecológica e não foram eles que degradaram o meio ambiente,
os Estados Unidos e a China são os grandes responsáveis pela degradação
ambiental do mundo. Mas não há maneira, porque o sistema das Nações Unidas
nunca esteve tão fraco como hoje, dada a posição dos Estados Unidos, que desde
há quatro anos entrou numa vertigem unilateralista. Aliás, uma das coisas que
pode vir a caracterizar as próximas décadas é a guerra com a China.
Onde vai normalmente buscar a
informação para fazer o tipo de análise e previsões que faz?
Normalmente, para fazer estas
previsões leio os documentos das forças militares norte-americanas, da CIA [Central
Intelligence Agency], documentos fiáveis, feitos com grande rigor, onde já
estão a pensar o que vai ser o futuro. Se ler o documento da CIA de quando
Obama chegou ao poder, já lá vão mais de oito anos, está lá que em 2030 a
China seria a maior economia do mundo e que os Estados Unidos tinham de
começar a defender-se e impedir que isso ocorresse. Acabo de ler na revista
"Foreign Affairs" que na próxima década a guerra com a China pode
estalar, uma guerra no Pacífico. E não é uma guerra fria, essa já está, é uma
guerra a sério. Segundo dizem, a China tem de ser travada na sua arrogância
globalista. Obviamente os Estados Unidos veem a China como sua concorrente,
estão muito agressivos, de outra maneira não se percebe como é que um
embaixador dos Estados Unidos ameaça um país como Portugal, agora na
presidência do Conselho da União Europeia, com represálias económicas caso
aceite o 5G da Huawei. Mas mostra a que nível está a concorrência.
"O AVANÇO DA CHINA NÃO É APENAS MÉRITO DA CHINA, É DEMÉRITO DO
MUNDO OCIDENTAL"
Falam na arrogância globalista
da China, mas não da sua, porque os EUA "nunca foram nem voltarão a
ser" arrogantes, como dizia o outro.
O trágico é isso. Ao longo do
último milénio o país dominante no mundo foi a China. Era responsável por mais
de 20% de toda a economia mundial: os nossos reis vestiam-se com têxtil que
vinha da China, a loiça para a corte vinha da China, tudo vinha da China, até
1830. A grande mudança foi a Revolução Industrial. Só há pouco mais de um
século o ocidente superou a China, que em 2030 poderá ser a maior economia
mundial e que neste momento é a fábrica do mundo, como vimos com a pandemia,
porque o país mais desenvolvido do mundo não produzia nem máscaras, nem luvas.
Mais de 80% dos medicamentos à
venda na Europa e nos Estados Unidos são fabricados na China e na Índia. Mas
neste período de um ano, nada foi feito para mudar esta realidade.
O avanço da China não é apenas
mérito da China, é demérito do mundo ocidental, capitalista. Como é que a China
se desenvolveu? Desenvolveu-se porque as grandes tecnológicas, Google e Apple,
decidiram produzir os seus computadores na China, onde o trabalho é mais
barato. Por isso, quando há uns tempos houve uma ameaça de "fechar" a
China, num daqueles tweets completamente descontrolados de Trump, a China
respondeu imediatamente: são um milhão e meio de trabalhadores da Apple no
país. Deixam de trabalhar e no dia seguinte a empresa fecha. A Europa ainda
procurou resistir, porque depois da guerra ficou com direitos sociais dos
trabalhadores mais avançados do que os Estados Unidos. O capitalismo europeu, a
que chamámos social-democracia, procurava maior equilíbrio entre ganhos de
capital e do trabalho, e foi assim que surgiu uma classe média na Europa.
Simplesmente, depois de 1989 os Estados Unidos impuseram a deslocalização à
indústria automóvel e a todas as tecnológicas. O NAFTA [Tratado Norte-Americano
de Livre Comércio] foi assinado com o México [e Canadá] basicamente à procura
de mão-de-obra barata. Agora queixam-se de que é a China que está na
concorrência, mas, se há um monstro, foram eles que o criaram.
Das 15 maiores empresas do
mundo, sete são dos EUA e cinco são já da China.
A China tem duas vantagens
enormes em relação ao mundo capitalista ocidental. A primeira é que globalizou
toda a sua economia exceto o capital financeiro. O capital é estatal, não tem
esta ideia dos bancos centrais independentes que nós aceitámos e por isso
deixámos de controlar a política monetária. A China está a defender-se do que
prevê ser uma crise do dólar e da economia mundial comprando ouro (a China e a
Rússia são os países que mais ouro compraram nos últimos dez anos). A segunda
grande vantagem é que são 2 mil milhões de pessoas. Se ler as decisões do
comité central do Partido Comunista da China - é chato, mas tem de ser -, são
muito claros a este respeito. A China prevê que vai haver no ocidente
resistência e, portanto, está a seguir duas estratégias: alimentar o mercado
interno, orientando-se para ele, criando uma classe média, mais consumo (sem
preocupações ecológicas, não as vejo), e depender tecnologicamente menos do
ocidente. Não é por acaso que os grandes inovadores de Silicon Valley têm nomes
chineses.
"UMA ECONOMIA DE MERCADO É TOTALMENTE LEGÍTIMA, UMA SOCIEDADE DE
MERCADO É REPUGNANTE DO PONTO DE VISTA MORAL"
De que estamos dispostos a
abdicar, no meio de tudo isto?
Parece-me que os acordos têm de
ser feitos a nível mundial. Os acordos ambientais de Quioto e de Paris não
fazem sentido se uns avançarem e outros não. Mas a posição dos Estados Unidos é
tão retrógrada que a Europa decidiu descolar-se e está a preparar uma transição
energética que, apesar de débil, vai além da dos Estados Unidos. O que talvez
também seja novo no milénio, não no século, é que muita coisa vai depender do
cidadão e da cidadã individualmente, não pode ser por imposição. No caso da
pandemia, como aconteceu noutros contextos, mudanças abruptas por lei criaram
muita resistência. Em Portugal, em vez de haver regras e medidas compulsórias
está a haver uma divulgação dos riscos que corremos se desrespeitarmos as
regras. A comunidade científica tem sido unânime nesta pedagogia. Há uma
responsabilidade que os cidadãos têm de assumir, não podem ser só políticas
públicas. Claro, podemos querer um carro elétrico, mas é preciso ter em
conta o preço, a autonomia e a forma como o podemos adquirir. E já tivemos
políticas públicas muito mais avançadas em Portugal, foi das primeiras coisas
que Passos Coelho liquidou com a troika, os incentivos.
Este governo já está no poder
há mais de seis anos.
É verdade.
Voltando um pouco atrás: no
livro defende que as vacinas devem ser gratuitas para todos.
Muitos como eu estão a propor que
a vacina seja um bem público universal, gratuito - uma luta perdida, mas muitas
das minhas lutas têm sido perdidas, por isso, não é para admirar. Está a ser
gratuita para os países que podem gastar dinheiro a comprar, mas as doses da
vacina variam entre 2 e 14 euros, imagine o dinheiro que vai para as empresas,
quando isto devia ser vendido a preço de custo, se houvesse uma consciência
social de que é preciso salvar a humanidade. No livro mostro como, do ponto de
vista capitalista, uma pandemia é um negócio.
"NO PRINCÍPIO DO SÉCULO A DIFERENÇA ENTRE O SALÁRIO MAIS ELEVADO
DO DIRIGENTE DE UMA EMPRESA E O TRABALHADOR ERA DE DEZ, AGORA É DE DOIS
MIL"
E não é legítimo ou justo que
seja também um negócio, pelo que investe, pelo emprego que cria?
Uma economia de mercado é
totalmente legítima, uma sociedade de mercado é repugnante do ponto de vista
moral. Há bens que não deviam estar no mercado: a educação, a saúde, a água. Há
coisas de que precisamos e que, em meu entender, deviam ser realmente pagas
pelos impostos. Posso estar em desacordo com o facto de ser muito mais
tributado - e como ex-funcionário público, altissimamente tributado - do que a
Amazon, a diferença é entre 40% e 1% ou menos. É repugnante, porque a minha
crítica é que o Estado não utiliza o dinheiro da forma que eu gostaria, se
utilizasse era muito mais eficiente. Não é imaginável que oito pessoas tenham
tanta riqueza quanto a metade mais pobre da humanidade - estamos a falar de 3,5
mil milhões de pessoas. São oito homens (por acaso não há nenhuma mulher nesse
grupo). Isto é um estudo da Oxfam [Comissão de Combate à Fome de Oxford, 2018]
preparado para Davos.
São eles Bill Gates, Amancio
Ortega, Warren Buffett, Carlos Slim, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison
e Michael Bloomberg, para quem quiser saber.
É curioso, porque este número
costumava ser os 100 mais ricos. Vinte anos depois era os 30 mais ricos, agora
os oito mais ricos. Quem publicou estes números mais recentemente foi Thomas
Piketty, num artigo de opinião no "Le Monde". Se fossem trinta
continuava a ser mau, mas isto mostra o nível de concentração de riqueza que
tornou o mundo extremamente injusto. No princípio do século não havia esta
discrepância, a diferença entre o salário mais elevado do dirigente de uma
empresa e o trabalhador era de dez, agora é de dois mil. Na questão do Estado e
do mercado, a pandemia veio mostrar exatamente que o Estado é corrupto e
ineficiente, porque vem uma pandemia e ninguém vai para o mercado, isso
notou-se muito bem no serviço privado de saúde, até com a recusa em aceitarem
doentes Covid, depois é que a coisa se foi modificando. Mas isto não foi só em
Portugal, nos Estados Unidos também, o Estado teve de completar os seguros,
digamos assim.
"[NOS EUA] PASSAR UMA MANHÃ NAS URGÊNCIAS, FORA TRATAMENTO, PODE
CUSTAR ENTRE MIL E TRÊS MIL DÓLARES"
Conhece bem a realidade do
Estado Unidos, imagino?
Vivo há 35 anos metade do meu
tempo nos Estados Unidos, conheço bem como o sistema funciona. Eu, claro, sou
um dos privilegiados, porque tenho seguro da universidade, mas se não tivesse,
estava frito. São as contradições. Não pode imaginar o que pode significar para
o cidadão comum ir a uma urgência hospitalar - já tive de passar por isso e foi
a universidade que pagou, cerca de três mil dólares. Passar uma manhã nas
urgências, fora tratamento, pode custar entre mil e três mil dólares. É por
isso que vemos na população negra tanta mortalidade nesta pandemia,
fundamentalmente porque muitos já estão doentes, têm pouco acesso à saúde, são
mais pobres. Não são negros porque são pobres, são pobres porque são negros. Há
muita coisa que os governos podiam e deviam fazer e que está ao seu alcance.
O quê, por exemplo?
Penso que o Serviço Nacional de
Saúde tem de ser revalorizado. Este governo tem tentado alimentar o SNS, mas
apenas para responder à pandemia, não está a fortalecê-lo em termos de
carreiras, de exclusividade, de aumento de salários, porque tem muito medo da
conta daqui a uns anos, mas isto é que seria fundamental. Como seria
fundamental alterar a nossa política urbana de imediato. Veja, está a falar
comigo e eu estou numa aldeia, Quintela, a 30 quilómetros de Coimbra, onde
nunca uso máscara, praticamente não sei o que isso é, só quando vou a algum
lado. É a casa dos meus pais, foi sempre aqui que escrevi parte dos livros -
não lhe posso mostrar, mas tenho uma vista maravilhosa para as serras. São umas
doze famílias no total, o que não quer dizer que não haja riscos (Penacova,
aqui ao pé, é uma zona de risco). Mas tínhamos de voltar a criar um equilíbrio
entre a cidade e o campo, criar incentivos para que os professores e médicos
voltem aos lugares menos povoados, não se concentrem, como está tudo
concentrado em Portugal, numa faixa de terra de 50 quilómetros entre o mar e o
interior. É completamente errado.
O que é que isso exigiria?
Exigia o que tínhamos depois da
Revolução do 25 de Abril, que não o destruíssem. A revolução teve esse aspeto
fundamental de levar um pouco de democracia para o país do interior, que em
Lisboa se chama a província, e que são os direitos sociais, os equipamentos, as
escolas, os CTT, os centros de saúde, a renovação urbana. Quem viaja pelo
interior vê um país bonito, cidades pequenas, mil habitantes, todos têm o seu
jardim, têm equipamentos, só não têm é gente. Os mais jovens já não tinham o
liceu, a certa altura tiraram-lhes os CTT, passaram a concentrar tudo em lógica
de rentabilidade do capital. E não pode ser. Era preciso ter uma política de
descentralização muito mais forte. Ninguém gosta de ir viver - estou a discutir
isto todos os dias com os meus colegas da América Latina e também de África e
dos Estados Unidos, que me perguntam - para as grandes cidades, que são zonas
de risco nas pandemias. Desde o século XIV que os escritores fugiam da cidade:
Shakespeare fez grande parte das suas peças em Stratford, precisamente a
fugir da pandemia, Ibne Caldune (Ibn Khaldun), intelectual islâmico, foi para
uma aldeia fora de Tunis para escapar à pandemia.
No seu caso em particular,
quando ou para o que precisa de sair da aldeia?
Preciso de ir a Coimbra para
comprar um vinho do Porto especial para a ceia de Natal [ri]. As aulas são por
Zoom, nos Estados Unidos a minha universidade está fechada, nem sequer poderia
entrar no meu gabinete se quisesse lá ir. Mas, de facto, não preciso muito
de sair. Ainda há pouco dizia que o país, apesar disso, tem um nível de
equipamentos que me surpreendeu. Em São Pedro de Alva, que é um pequeno
povoado, todos os supermercados têm as comidas saudáveis que não encontro nas
grandes superfícies, em Coimbra ou em Lisboa. E as grandes superfícies são
capazes de ir buscar a Espanha produtos que eu tenho aqui produzidos localmente
e que até são exportados, não chegam às nossas grandes superfícies porque são
produtos gourmet: queijo da serra e todos os tipos de queijo, framboesas, etc.
Praticamente não preciso de ir a Coimbra. Mas sou um privilegiado, muita gente
que aqui vive trabalha em Coimbra. As cidades não podem ser tão grandes, os
transportes públicos têm de ser redimensionados. Não podemos viver nesta ideia
que o capitalismo criou para a sociedade contemporânea em geral - e no mundo
socialista foi o mesmo - de zonas para comércio, zonas residenciais, zonas
para empresas e escritórios e zonas para habitação muito distantes. Tem de
haver outro tipo de ordenamento urbano que não apenas pela rentabilidade que os
terrenos dão aos proprietários, mas aí a terra urbana tinha de ser pública. Em
Portugal é muito difícil fazer valer este argumento, mas a gente normalmente
tem razão fora do tempo, pode ser que um dia...
"SOMOS PROGRAMADOS PARA PENSAR SÓ O QUE ESTÁ À NOSSA FRENTE,
DEIXAMOS PARA A RELIGIÃO O INVISÍVEL"
Fez 80 anos em novembro
passado. O que é que a idade nos dá, o que lhe trouxe?
[ri] Obviamente dá muitas coisas
negativas; tenho muito mais medo dos riscos. E talvez dê a possibilidade,
sobretudo em tempo de pandemia, de fazer coisas que estaria em boas condições
de fazer, mas que a minha vida de todos os dias me impedia. Até fevereiro de
2020, devido ao reconhecimento internacional do meu trabalho, estava
permanentemente em viagem, em conferências, a abrir congressos. E, devo
dizer-lhe, sei que não vai tomar como vaidade estúpida, recuso mais de 90% dos
convites que me fazem. Mesmo assim, tinha de fazer pelo menos uma viagem
transcontinental por mês, que são viagens de 10 ou 12 horas. Isto significava
que estava a escrever os meus livros com muito mais dificuldade. Assim não, já
estou a terminar o próximo, que será publicado em breve e que também é uma
reflexão sobre a sociedade em que vivemos.
Já tem título?
Sim, "Da Miopia à
Utopia". É o meu tema. Por que motivo pensamos sempre em função daquilo
que existe e não pensamos as alternativas? Acredito que a pandemia nos vai
obrigar a pensar diferente sobre coisas simples: Portugal terá de produzir mais
máscaras e gel, não pode estar a importar tudo da China. Os centros comerciais
não deviam ter a dimensão que têm, porque são zonas de risco piores do que os
aviões. Na América Latina os centros comerciais têm 30 mil pessoas a cada
momento a respirar o mesmo ar. São coisas que temos de repensar. Penso que a
idade nos dá mais experiência, e eu tenho essa experiência, conheço diversos
exemplos, e posso ter um olhar panorâmico, ver as contradições, as
possibilidades, o que houve e deixou de haver. E sempre com esta atitude, que é
a de um otimismo trágico. Trabalho muito com movimentos sociais, organizações
de bairros urbanos, em Portugal e fora, e essas populações são aquelas que não
podem viver sem alternativa, porque a vida é horrível para muitas delas. Ainda
outro dia estive uma hora por Zoom a falar com povos indígenas do Maranhão, no
Brasil, e eles dão-me força; a forma como se organizam, nas suas condições tão
precárias, como se protegem, como se defendem, como vão buscar imunidade às
suas ervas, às plantas medicinais. O ser humano tem esta capacidade. Mas somos
programados para pensar só o que está à nossa frente, deixamos para a religião
o invisível.
Esse não é um problema de
educação, até de como as escolas formam os seus alunos?
O último capítulo do próximo
livro é exatamente dedicado à educação. Chego à conclusão que, no fundo, é
sempre na educação que as coisas vão bater.
A forma como tratamos os
velhos anima-o ou dececiona-o?
É muito interessante ver a
evolução da sociedade em tempo recente. Portugal, dentro da Europa, era até
final dos anos 70 o país com mais família extensa: pais, filhos e avós. Isto
era a característica de uma família ainda com traços camponeses. A partir dos
anos 80 a família nuclear intensifica-se: começa a haver maior pressão sobre as
famílias, as casas passam a ser mais caras, torna-se problemático alojar tantas
pessoas e começa uma tendência, em muitos países secular, de pôr os idosos em
depósitos, porque os lares são depósitos, alguns, cofres de ouro. Conheço bem o
caso dos Estados Unidos, onde encontra esta classe mais alta que vai para casas
de repouso altamente luxuosas, onde a pessoa quase reconstrói a vida como se
estivesse em sua casa. Mas há sempre um elemento de alienação muito forte. A
maioria não é desse tipo, são residências onde, com alguma dignidade, se alojam
pessoas sem nenhuma preocupação com os seus cuidados de saúde, porque estão
todos remetidos para o SNS. É uma área onde as instituições particulares de
solidariedade social investiram tremendamente, porque é um serviço social muito
importante, mas nalguns casos é também um negócio. Há um setor privado muito
forte, muitas vezes a receber pensões inteiras dos idosos.
"A VELHICE PASSOU A SER UM ESTIGMA NA NOSSA SOCIEDADE, E MUITAS
MEDIDAS SUPOSTAMENTE PROTETORAS ATACAM A AUTOESTIMA"
E por que motivo se depositam
os velhos em lares?
Isto é feito na base de,
primeiro, os idosos já não terem nada a dizer à sociedade. São inativos, não
têm de ajudar os netos ou passar-lhes um pouco de sabedoria. Ao contrário do
que acontece em algumas sociedades, em que os mais velhos são os depositários
da sabedoria, porque é neles que está a história do país, a cultura, nós
entrámos no culto de juventude. Por isso perdemos tanto tempo a tentar
disfarçar a velhice, com gel, com exercícios, com jogging, e o melhor disfarce de todos é esconder os velhos, pô-los
em lares. Funciona bem para a sociedade, não funciona bem para eles, que têm de
perder muita auto-estima para ir para aqueles espaços. E em situações de
emergência, como esta ou como no caso das ondas de calor, morrem muitos idosos
em toda a Europa. É outra área onde o Estado tem de intervir, porque não
acredito que as organizações sociais ou privadas o vão fazer por alta
recreação. Fizemos da necessidade uma opção e começámos a pensar que era melhor
estar longe dos idosos.
Como é que se conjuga isso a
longevidade? Quero dizer, vale a pena envelhecer assim, sem qualidade?
O conceito de velho é totalmente
sociológico. A velhice passou a ser um estigma na nossa sociedade, e muitas
medidas supostamente protetoras atacam a autoestima das pessoas. E fazem-no de
uma maneira mais ou menos leviana, por lógicas de eficácia económica. Criou-se
um certo egoísmo social, que em meu entender não é inclusivo, de maneira
nenhuma. Isto é um alerta imenso. Há muitas famílias que preferem manter os
seus idosos e deviam ter apoio estatal para isso, por exemplo sob a forma
isenção de impostos. Não imagina o que há de força a partir dos 65 anos, e
muitos podiam contribuir com conhecimento, ideias, mas ninguém os ouve. Os que
estão em lares, ao fim de um ano já não têm nada a dizer aos outros, ficam
idiotas, em frente a um canal de televisão um dia inteiro. Aí é que eles
envelhecem. Os lares não são para velhos, são lares de envelhecimento. É uma
solução extremamente injusta que a sociedade encontrou para quem tanto
contribuiu.
"EU PENSAVA QUE ERA BRANCO, MAS QUANDO CHEGUEI AOS ESTADOS UNIDOS
CHEGUEI À CONCLUSÃO DE QUE NÃO ERA BRANCO, ERA LATINO"
Viajou por outros países,
chegou a viver em alguns deles. O que retira de cada um desses lugares?
Tenho as minhas raízes em
Quintela, mas as minhas opções voaram pelo mundo inteiro. Talvez a maior
aprendizagem, até pelo tempo que aí vivi, entre agosto e dezembro, todo o
semestre de Outono/Inverno ao longo de 35 anos, tenha sido nos Estados Unidos.
Primeiro a aprendizagem do bom, quando fui fazer o doutoramento, em 1969, e saí
de uma ditadura para uma democracia, uma sociedade extremamente ativa em direitos,
lutas e protestos contra a Guerra no Vietname. A pouco e pouco fui reconhecendo
que era também o cúmulo do racismo, da violência. Que também não conhecia. Eu
pensava que era branco, mas quando cheguei aos Estados Unidos cheguei à
conclusão de que não era branco, era latino. Era assim que eram vistos os
originários de Portugal ou de Espanha, mas nunca fui vítima de racismo. A
sociedade ensinou-me muito sobre como podia ser a libertação das mulheres, da
educação. Foi nos Estados Unidos que li Marx...
"LEVEI MUITAS VEZES CHOCOLATES E MEIAS DE VIDRO PARA O OUTRO LADO,
QUE NÃO TINHA, E TRANSPORTEI CARTAS NOS SAPATOS, NAS MEIAS,
CLANDESTINAMENTE"
Foi lá que consolidou as suas
ideias à esquerda?
Posso dizer que o primeiro país
que me ensinou alguma coisa, talvez o amor à democracia, foi a Alemanha. Antes
de ir para os Estados Unidos fui estudar em Berlim Ocidental, e a minha
namorada era de Berlim Oriental, de maneira que eu atravessava o muro todos os
dias, quando estava mais apaixonado, porque nós estrangeiros podíamos
atravessar o muro desde que não pernoitássemos. E via a sociedade do lado de cá
e a sociedade do lado de lá e não era aquilo que eu queria. Já estava a
alimentar as minhas ideias mais para a esquerda do que para a direita, muito
oposto ao sistema colonial, mas aquela sociedade era muito estalinista, muito
de concentração... Levei muitas vezes chocolates e meias de vidro para o outro
lado, que não tinha, e transportei cartas nos sapatos, nas meias,
clandestinamente, para pessoas que queriam criar ligações para depois fugirem
para a Alemanha Ocidental. Não era o regime que eu queria, e eu vinha de uma
ditadura.
E foi isso que encontrou nos
Estados Unidos?
Os Estados Unidos ofereceram-me
isso de uma maneira muito avançada. Depois aprendi o mau, porque vivi lá tanto
tempo que fui aprendendo como se destrói uma democracia. Para mim Trump não é
uma novidade, tenho vindo a assistir à degradação da sociedade americana nos
últimos 20 anos, ela é óbvia desde que chegou o neoliberalismo, e depois de ter
deixado de haver a concorrência do bloco soviético tornou-se mais violenta. Até
então não era possível deslocalizar as boas empresas de automóveis dos Estados
Unidos para o México, só depois. Eu, no país mais desenvolvido do mundo, no meu
escritório e na minha casa, numa cidade encantadora de classe média, Madison,
no Wisconsin, passei a cruzar-me com pessoas a dormir na rua - e são brancos,
não são negros -, sobretudo a partir de 2008, por causa dos despejos, pessoas
que perderam a casa por não pagarem os empréstimos. E vi quando, há uns dez
anos, uma decisão do Supremo Tribunal permitiu às empresas passarem a financiar
os partidos, sem limites e sem transparência. A partir daí os super-ricos
passaram a controlar a política, não existe política democrática nos Estados
Unidos. Dou-lhe um número: Trump, só para montar o escritório de advocacia para
mostrar que a eleição foi uma fraude, precisou de 170 milhões de dólares.
E o Brasil?
O Brasil é outro país que me
ensinou bastante, porque apesar de estar a fazer o meu doutoramento numa
universidade de elite nos Estados Unidos, a Universidade de Yale, o meu
trabalho de campo foi numa favela no Rio de Janeiro. Vivi aí uns meses e nunca
tinha visto a miséria até alugar uma divisão numa favela, e como a gente era
digna, a viver em condições indignas. Não eram bandidos, era gente de uma
sabedoria enorme; falavam da vida, de Deus e da natureza com conhecimento,
alguns analfabetos, mas com sabedoria de vida. Comecei a aprender aí que as
pessoas não precisam de doutoramentos para serem sábias.
É católico?
Tenho respeito e aprendi muito
nas minhas pesquisas sobre o caráter sagrado, e não tenho hoje tanta
dificuldade como já tive em entender um líder indígena quando me diz que um rio
é sagrado. Para mim o sagrado estava lá em cima, para eles o Deus está no
fundo. Fui católico praticante até aos 17 anos, produto de um família operária
de Coimbra, a minha mãe era muito religiosa, o meu pai também, e tive aí alguma
consciência social, porque pertencia a uma obra, a obra de São Vicente de
Paulo, que consistia em darmos pequenos donativos às famílias mais pobres da
minha freguesia. E eu aí via condições que eram muito mais pobres do que a
minha, apesar de nós não sermos ricos, de maneira nenhuma. Mas aos 17 anos,
quando cheguei à universidade, as dúvidas aumentaram — ainda fui do movimento
católico estudantil até 1960/62. A Igreja católica era extremamente
conservadora aqui em Coimbra, estávamos organizados numa instituição fundada
pelo cardeal Cerejeira e por Salazar, o Centro Académico da Democracia Cristã,
que estávamos a tentar mudar e que a Igreja boicotava e tinha dificuldades em
aceitar. Depois veio a questão colonial e afastei-me completamente.
Escreveu o livro "Se Deus
fosse um ativista de Direitos Humanos"...
Não sou um ateu praticante, até
escrevi esse livro, uma tentativa de ligar a filosofia dos direitos humanos à
teologia da libertação. Trabalhei bastante com D. Hélder Câmara e com bispos
progressistas, que João Paulo II fez todo o possível por marginalizar, porque
era um anti-comunista ferrenho. Podia contar-lhe histórias tenebrosas, o modo
como se aliou a Reagan para liquidar a teologia da libertação na América
Latina... Claro que na Europa não vivemos muito isso, mas quem viveu nas
favelas, nos bairros onde estavam estes bispos, sentiu. E é por isso que temos
agora os evangélicos conservadores a dominar, a Igreja católica perdeu o pé.
"OS MELHORES DESEMPENHOS NA PANDEMIA TÊM COMO PRIMEIROS-MINISTROS
MULHERES"
Ao longo desta conversa já se
referiu às mulheres três vezes. Se as mulheres tivessem mais poder, o mundo
seria melhor, ou nem por isso?
Potencialmente, seria. Tenho uma
convicção feminista muito grande. Por observação. Não quer dizer que a mulher
seja feminista só por ser mulher - uma das mais famosas até há pouco era
extremamente conservadora, uma mulher com a qual não concordei em nada,
Margaret Thatcher. Mas a verdade é que quando as mulheres juntam uma cultura
feminista e a sua personalidade de mulher, isso tem efeitos. Por exemplo, os
melhores desempenhos na pandemia têm como primeiros-ministros mulheres. A
primeira-ministra da Nova Zelândia, que para mim é a política mais extraordinária
que temos no mundo, depois do papa Francisco - veja, não sou católico [ri], mas
ele é um político progressista. Porque quando as mulheres assumem essa
especificidade feminina de uma perspetiva feminista, isto é, não para cuidar
delas, mas para cuidar do mundo, têm uma lógica de cuidado que os homens não
têm. Porque viveram, foram socializadas na economia do cuidado, da casa, da
família. Ela tratou os neozelandeses como se fosse uma família a passar por uma
crise; chegava a casa, com transmissões em direto, a explicar como ia mudar de
roupa, como ia tratar do filho, que teve durante a pandemia, as medidas que
estava a tomar para se proteger.
Tem no livro uma secção sobre
a pandemia e as mulheres, aliás.
Conto no livro que quer ela, quer
a primeira-ministra da Dinamarca, quer a primeira-ministra da Finlândia tiveram
mais êxito no combate à pandemia. As mulheres tiveram mais atenção à proteção
da vida, ao cuidado das famílias e ao problema dos pais quando as escolas estão
fechadas, porque sabem por experiência quem aguenta com o trabalho quando isto
acontece. Portanto, acho que se o mundo entrar num período de maior fragilidade
do quotidiano devido à instabilidade que as pandemias podem vir a causar - e
outros fenómenos ecológicos que penso que irão suceder, acontecimentos extremos
como tsunamis, ondas de calor -, governantes mulheres saberão pôr na política
uma economia de cuidado mais eficaz do que os homens. Isto não que dizer que os
homens não possam ser femininos e as mulheres não possam ser masculinas.
Se tivesse de eleger os três
principais problemas de Portugal, quais seriam?
Um problema é que não
descolonizámos a sociedade depois do 25 de Abril. Não descolonizámos
devidamente e não fizemos uma análise histórica e o julgamento do terrorismo de
Estado e dos crimes da ditadura. Porque a nossa revolução foi inicialmente um
golpe de militares, quando eles próprios foram os grandes sustentáculos do
regime, e quando chegaram à conclusão que não podiam aguentá-lo, porque não
aguentavam a guerra, viraram-se contra ele. Foi ótimo para a democracia, mas
impediu que se fizesse um julgamento sobre o período anterior. E é por isso que
temos o André Ventura. Fizemos uma grande ambiguidade. Só um país que não fez
um julgamento político do que foi Salazar ao longo de 48 anos pode permitir-se
colocar Salazar ao nível de um Álvaro Cunhal ou de um Mário Soares. E nunca fui
comunista nem estive de acordo com Álvaro Cunhal, respeitei-o apenas - também
nunca fui do Partido Socialista e fui muito amigo de Mário Soares na fase final
da sua vida. Procurei ser independente. Mas não se pode esquecer os crimes da
ditadura, o atraso que produziu; fomos o único país que entrou numa Guerra
Colonial extremamente mortífera, que atrasou Portugal e que atrasou as
ex-colónias. Tudo isso não foi analisado em Portugal por uma razão muito
concreta, é que os responsáveis pela parte final do colonialismo foram também
os nossos libertadores, digamos assim, do 25 de Abril.
O PCP fez 100 anos. Portugal
é, na Europa e com exceção da Grécia, dos poucos países onde o comunismo se
mantém. Por que razão sobrevive o comunismo no país?
Penso que uma das razões é porque
foi o único partido comunista da Europa que não fez mudanças em função do aggiornamento, e que com
acontecimentos como a transição para democracia ou a queda do muro de Berlim
manteve a linha ortodoxa, ao contrário dos grandes partidos comunistas da
Europa, como na Itália, Espanha e França. Todos foram para a solução de
eurocomunismo, uma tentativa de o comunismo renunciar a parte do passado,
autoritária, ditatorial, e ligar-se ao projeto social-democrata. Praticamente
desapareceram, os que se mantiveram são residuais. Depois, afinal, a
social-democracia, que era o sonho, começou a entrar em crise na mesma altura:
neoliberalismo, salários, luta contra sindicatos, negociação coletiva. Os
países da Europa de leste começaram a fazer uma reavaliação de tudo o que se
passou, o que se fala do tempo soviético não é o que se passa agora. Depois da
liberdade não tinham formação, saúde, educação, habitação gratuita, a
desigualdade social passou a ser imensa, com uma estratificação social grande.
Aqui, o ter-se mantido fiel a uma ideologia contrária à euforia capitalista dos
anos 90 deu-lhe crédito junto das classes populares. Por outro lado, a estrutura
da economia portuguesa semi-periférica permitiu o operariado que sustentava as
forças tradicionais - acabou a grande metalomecânica e os estaleiros navais,
mas ficou o têxtil, o calçado, etc. Ao contrário do que tem sido dito, dada a
heterogeneidade da classe operária, há jovens que podem ter aderido ao PCP como
opção anti-sistema, alguns pela via ecológica. O PCP manteve a integridade.
Voltamos aos problemas de
Portugal, ia para segundo. Qual é?
O segundo problema é que não
soubemos até agora encontrar o nosso lugar na Europa de uma maneira que seja
condizente com aquilo que somos e que somos capazes de fazer. Neste momento
ainda estamos com um problema difícil de estarmos a pautar o nosso caminho na
Europa pelo que pensam os países ditos frugais: Países Baixos, Alemanha,
Dinamarca, etc. Não devíamos fazer isso, eles não têm nenhuma autoridade para
isso, têm um sistema público muito mais robusto que o nosso, têm um Estado
muito mais presente na economia, em alguns desses países até as bebidas são
controladas pelo Estado. E nós temos de pedir desculpa se vamos fortalecer o
SNS e criar uma carreira de exclusividade com bons salários, que é o que
precisávamos de fazer. Portugal assume uma menoridade que não é justificada,
pode ousar muito mais. Penso que esse é o grande problema de um país que, sendo
europeu, nunca se sentiu como tal. Não é por acaso que o maior projeto de
ciências sociais, financiado pelo European Research Council, foi dar a esta
humilde pessoa 2,4 milhões para o ALICE, um projeto para a Europa aprender a
lidar com o mundo. Portugal teve mais contacto com o mundo durante mais séculos
e mais mundo, foi o único país que esteve na América Latina, na África e na
Ásia, três impérios, com parte gerida a partir e Goa.
Se é assim, porquê o complexo
de inferioridade?
Mediocridade da nossa classe
política, mais nada. Não leram história, não apreciaram. A nossa educação tem
muita deficiência para dar uma perspetiva histórica sobre Portugal, que não
deve ser triunfalista, mas deve valorizar o que tem de ser valorizado e
criticar o que tem e ser criticado. O primeiro problema foi que não somos
capazes de criticar suficientemente, o segundo é que não somos capazes de
valorizar suficientemente.
Terceiro problema?
O terceiro problema é que
estivemos 48 anos em ditadura, isto foi extremamente danoso para a sociedade
portuguesa, porque não criou culturas democráticas. Isto é, Portugal não só é
dos países mais injustos da Europa em termos de desigualdade social, como
também não foi capaz de criar, apesar de ser um país pequeno, uma harmonia
territorial - agora temos o Ministério da Coesão Territorial, mas é porque não
há coesão, senão nem precisávamos de um ministério, um país tão pequeno nem
precisava de se pôr esta questão, se precisa é porque não se fez nada nesse
sentido. Portanto, foi um país que não aprendeu que a democracia não são apenas
as eleições, é a maneira como se tratam as pessoas, nas empresas, nos locais de
trabalho, nos lugares onde vivem, nas formas alternativas como querem viver. O
facto de termos uma economia camponesa extremamente rica, apesar de tudo, e
termos aceitado que a política económica europeia fosse apenas para as grandes
empresas agrícolas e deixasse o pequeno camponês de fora, ou que o senhor
Cavaco Silva aceitasse que se destruísse parte dos barcos de pesca, quando
tínhamos uma pesca artesanal riquíssima, para agora dependermos do peixe
pescado pelos espanhóis. Tudo isto é um país que não só não soube estar com a
Europa, mas também não soube estar consigo mesmo de modo democrático. Por isso
é que os turistas vêm para aqui, não é só o sol, é uma sociedade que, apesar de
toda a desigualdade, tem uma das mais baixas taxas de criminalidade da Europa.
Isto não é pouca coisa.
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São vários os observatórios em
Portugal. É coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça, do
Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Que trabalho tem apresentado ao longo dos anos e com que resultados?
Temos vários observatórios no
CES, talvez o mais conhecido seja o observatório da crise e das alternativas,
que funciona em Lisboa. Temos uma sede em Lisboa que foi durante muito tempo
liderada por Manuel Carvalho da Silva [ex-secretário-geral da CGTP-IN], e
muitas políticas públicas, inclusivamente na área da segurança social, foram
estudadas no centro. Não é por acaso que alguns governantes vieram de lá, a
Graça Fonseca [ministra da Cultura] foi investigadora do CES. No
caso do Observatório da Justiça, temos tido um papel muito relevante desde
1984, fomos muito animados por Laborinho Lúcio [ex-ministro da Justiça], que
foi diretor do Centro de Estudos Judiciários, e criámos uma relação com o
Ministério da Justiça e com os operadores; trabalhámos muito com o Conselho
Superior da Magistratura, com o Ministério Público, e somos muito responsáveis
pela formação de milhares e milhares de procuradores e juízes em Portugal e
também no Brasil.
Juízes parece que em Portugal
só há dois, Carlos Alexandre e Ivo Rosa...
Não, trabalhamos com os 99% que
fazem a justiça das pessoas como nós, não são casos para ir para as primeiras
páginas dos jornais. Trabalhamos muito no mapa judiciário, temos uma grande
competência técnica instalada, e agora há uma reforma a ser pensada,
inclusivamente ao nível do sistema judicial nas carreiras, vamos intervir
diretamente na reforma no sistema processual, num tema que nos é muito caro,
que é uma tentativa de importar do Brasil a delação premiada, obviamente nociva
- o livro em que estou a trabalhar com assistentes vai mostrar como é
destrutiva para a justiça. É uma inovação norte-americana que foi para o Brasil
e que se quer trazer para Portugal, uma forma de os procuradores do Ministério
Público terem o direito à preguiça, porque a informação é-lhes fornecida por
denúncias e eles não têm de investigar. Pode ser muito perigosa: estamos a ver
que no Brasil parte das delações, no caso que levou Lula da Silva à prisão,
foram mentirosas. Sei que em Portugal se está a tomar todos os cuidados para
que isso não aconteça, mesmo assim tenho algumas dúvidas. Acompanhamos muito o
sistema de justiça no concreto, por exemplo, o sistema de Moçambique foi
construído muito com o nosso apoio, continuamos a apoiar o de Angola, apesar de
todas as dificuldades, e agora vamos trabalhar mais para o Brasil, porque
devido a toda esta deriva autoritária os juízes e os magistrados democráticos
estão a virar-se para nós, porque o nosso observatório é muito conhecido entre
eles como uma tentativa de mostrar o que pode ser uma justiça cidadã.
Em 2010 foi feito um plano
contra a corrupção, em 2015 novo plano e, no final de 2020, mais um. Mas
continua tudo igual. É uma condenação?
Não, de maneira nenhuma. Também
temos posto essa questão, porque temos muitas reformas planeadas, mas que
depois não são executadas. No Observatório da Justiça temos tido esse cuidado,
é um trabalho que não sai nas notícias. Quando se promulga uma lei vamos ver
se, na prática, foi aplicada. Muitas vezes não foi, e mostramos as
deficiências. Temos muitas vezes um país muito mais avançado no papel do que na
realidade. É um dos problemas que está em nós: a falta de cultura democrática.
Isso repercute-se muito na justiça. Nunca assumimos bem que quem tem poder na
sociedade possa ser posto num papel de igual perante a justiça, como qualquer
cidadão comum. Temos um respeito por quem tem poder, seja económico, seja
político, somos uma sociedade hierárquica.
Uma certa subserviência?
Exato, uma certa subserviência,
uma ideia de que o poder é opaco porque as elites é que sabem. Tudo isto é
falta de cultura democrática e resultado de 48 anos de ditadura. Criou-se esta
ideia de opacidade, e os nossos serviços de investigação criminal têm ainda
hoje muita dificuldade, porque os crimes de corrupção são difíceis de
investigar, até pela alta tecnologia envolvida, além das leis de sigilo
bancário, dos paraísos fiscais. É muitas vezes através de whistleblowers como Rui Pinto ou
como [Edward] Snowden que vamos sabendo as coisas. Sabemos o que se passou na
condenação de Lula da Silva, na operação Lava-Jato, porque a Intercept nos deu
à luz as conversas telefónicas, que são de pôr os cabelos em pé. O sistema da
opacidade contribuiu para que não se investisse muito na dificuldade enorme que
há em investigar estes temas, procurou-se muitas vezes o lado fácil, que é
o outro lado da incompetência, de condenar os jornais. Há falta de cultura
democrática e reverência pelo poder. Depois, quem é corrupto ou suspeito de
corrupção nestes lugares tem dinheiro, tem bons advogados, que sabem explorar
as fraquezas do sistema. O sistema de recursos, por exemplo, é demasiado
liberal, porque permite prolongar os processos indefinidamente.
Treze anos, 18 propostas para
legislar sobre o enriquecimento ilícito e zero leis aprovadas. Porquê?
Tem de ver as ligações de alguns
dos nossos deputados à Assembleia da República. Temos na Assembleia deputados
que são grandes advogados ou que trabalham com grandes advogados que são os
técnicos a escrever aquela letra pequenina nos decretos que deixam lá a
cláusula de fuga para as empresas de que amanhã são eles os consultores. Nada é
feito por acaso.
O que impede os processos de
avançar e ter uma conclusão em tempo útil, por que motivo temos uma justiça tão
lenta?
É uma das grandes enfermidades.
Segundo todos os inquéritos que fizemos, a justiça portuguesa não é corrupta, é
lenta e ineficaz. Tem havido casos de juízes corruptos, vários apareceram na
imprensa ultimamente, mas, ao contrário de outros países, não é uma situação
comum. Mas justiça demorada é justiça negada e temos um sistema extremamente
burocrático que nunca foi trabalhado, mesmo a informatização tem sido lenta e
com atropelos, com sistemas informáticos que não são compatíveis uns com os
outros, o do Ministério Público com o da Polícia Judiciária, coisas muito
concretas que tornam tudo mais difícil. Mas, mais uma vez, falta cultura
democrática. A justiça portuguesa tem um conceito de independência mais corporativa
(dos seus privilégios, dos seus direitos) do que democrática. Quando são
independentes exatamente para servir os interesses dos portugueses, para servir
a justiça. Esta pressão vem de uma cultura democrática que não lhes é dada nas
faculdades de Direito, que nunca se reformaram depois do 25 de Abril. Os
professores, os estudantes não aprendem uma cultura de direitos humanos, que é
a coisa mais básica, o acesso à justiça célere. Depois, há uma cultura jurídica
que é deficiente, por outro lado uma cultura burocrática que impede, não só em
relação aos magistrados, mas também aos funcionários. Esta é uma enfermidade da
nossa justiça que raramente tem sido uma prioridade da política portuguesa.
Não deixa de ser irónico, numa
altura em que o primeiro-ministro e o presidente da República são da área do
Direito.
É estranho, não é? Não digo que a
culpa seja deles, mas nunca foi prioridade. Só quando há uma reforma e um
conflito entre o sistema judiciário e o poder político.
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