sábado, 6 de março de 2021

Adriano Miranda - 100 anos sem perder um dia

* Adriano Miranda 

OPINIÃO -  

Portugal é um país de sorte por ter na sua família política um partido assim, feito de portugueses lutadores e abnegados.

Pelo gradeamento do Jardim da Estrela vi corpos nus deitados na pedra no hospital militar. Era criança. A minha mãe colocou a palma da sua mão sobre os meus olhos. O meu pai ficou por breves minutos agarrado ao gradeamento. Não fiz perguntas, e durante muito tempo aquela imagem assaltou os meus pensamentos na escuridão do meu quarto. Era uma criança feliz. Com uma família aparentemente normal. Julgava eu. Até ao dia em que a telefonia não se desligava e se falava baixinho num nervoso contido. Não fui à escola. Depois, vieram os abraços, o champanhe, a alegria, os novos amigos e as novas palavras. Na curiosidade dos meus oito anos, andei às cavalitas do meu tio para ver a multidão. Liberdade, fim à guerra, democracia, socialismo. E uma bandeira vermelha com uma estrela, uma foice e um martelo.

Chegou depois a hora de perceber porque nunca conheci o meu avô paterno. Foi assassinado pela ditadura. De descobrir porque o meu tio José foi preso — tinha uma tipografia clandestina. O porquê de o meu avô materno não querer que eu mexesse nos embrulhos de papel pardo — eram propaganda clandestina. De sentir homens a sair de casa de madrugada — eram camaradas. E de perceber que corpos eram aqueles deitados na pedra fria. Sentir o aconchego quente dos braços da minha mãe — filho, já não vais para a guerra.


Cresci no Partido. Rodeado de amigos. De talentos. Tanta e tanta coisa boa vivi e aprendi. Principalmente a tenacidade e a audácia. E a solidariedade. Guardo na minha memória e nas minhas convicções, homens e mulheres combativos e íntegros. Guardo o Samy que me ensinou a desenhar. Guardo o Marco que me ensinou francês. Guardo o Tó Zé que se fez pescador e por eles lutou. Guardo o Albino que sempre lutou pelos agricultores. Guardo o João Pereira que só abandonou as fábricas na hora da sua morte. Guardo a Arinda que sempre me viu quando alguma dor me inquietava. Guardo a Eurídice que sempre me visitou no hospital enquanto os pulmões recuperavam. Guardo o António e as viagens loucas na sua Jawa. Guardo o Vasco pela amizade. Guardo o Vidal pela sua combatividade. Guardo tantos e tantas. Gente de coração grande de utopia e realidade.


Vi depois gente a sair que nunca devia ter saído. Vi laivos de falta de democracia interna. Vi também desalento. Vi cristalização no discurso. Mas vi também que um comunista português é coisa ímpar no mundo. Contra ventos e marés, não se desvia um milímetro que seja, na luta em prol dos mais desfavorecidos. E curioso — sabem bem os comunistas portugueses que muitos desses desfavorecidos nunca transformarão o seu voto em agradecimento. É desproporcional a força dos comunistas na sociedade e nas urnas. Mas os comunistas portugueses não se cansam. Dou por mim a pensar de onde vem tanta energia.

São 100 anos de energia. Sem ter encerrado para balanço um dia que seja. Uma vida cheia. Cheia de erros e contradições. Cheia de virtudes e conquistas. Uma história que atravessa os maiores tumultos mundiais e as maiores conquistas civilizacionais. E Portugal é um país de sorte por ter na sua família política um partido assim, feito de portugueses lutadores e abnegados.

No Jardim da Estrela já não se avistam os corpos frios. Há muito tempo. Para todo o sempre. No Jardim da Estrela já não se fala à surdina. No Jardim da Estrela já não se trocam senhas clandestinas. No Jardim da Estrela sente-se a liberdade pela manhã. A manhã de um país livre e democrático. E os comunistas portugueses, entre outros, foram os seus obreiros. E continuam a ser. Como sempre. Sem fechar para balanço.

6 de Março de 2021, 6:32

tp.ocilbup@adnarima


https://www.publico.pt/2021/03/06/politica/opiniao/100-anos-perder-dia-1953215


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