quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Carlos Matos Gomes - Uma eleição livre e justa é possível num regime de mentira e de canalhas, de pós-verdade?

 * Carlos Matos Gomes

Nós, a multidão, passámos estes últimos anos a ser bombardeados com um novo léxico político: “desinformação”, “fakenews”, “nova normalidade”, “intrusão”.

A relação dos seres gregários funda-se na confiança. É assim num formigueiro, numa colmeia, numa alcateia, numa tribo, numa formação militar, num gangue. Na constituição de equipas para operações especiais uma das perguntas aos candidatos era: quem escolhias para te acompanhar na travessia de um rio perigoso? Isto é, em quem confias.

A organização social e a organização política que dela decorre assenta na relação entre autoridade e fiabilidade. As notas de banco são credibilizadas pela assinatura do governador, os decretos reais continham um selo de chumbo e lacre com as armas do soberano. As mobilizações para uma guerra são assinadas pelo comandante-chefe. As grandes campanhas, as fatwa, as cruzadas, as descobertas dos europeus foram decretadas com base numa verdade que as tornava imperiosas. Acreditámos no segredo profissional de médicos e advogados. Na reserva da nossa correspondência. Acreditámos nos editais e nos calendários. Eram a verdade. Hoje a verdade é uma ratoeira. É um som transmitido por um karaoke, é uma mercadoria. As nossas doenças, as nossas confissões, as nossas escolhas são vendidas, na melhor das hipóteses. Na pior, matam, como os pagers que uma empresa de telecomunicações vendeu a Israel para assassinar eventuais inimigos.

Na Bíblia, Cristo, a figura de referência civilizacional do Ocidente, proclamou: Eu sou a verdade! Maquiavel, com os pés na terra e rodeado de semelhantes, adaptou um estado ideal que de facto nunca existiu e preferiu escrever sobre a realidade concreta, estabelecendo o conceito de verdade efetiva das coisas (veritá effetuale), fundamental para compreendermos o interesse pela realidade como ela é e não como uma projeção idealizada. A verdade efetiva serviu de padrão para aferir a correspondência entre o “discurso público” dos políticos e dos dirigentes e a necessidade de obter a adesão a uma realidade. Mas a palavra continha sempre uma intenção de verdade. Os membros da sociedade continuavam a jurar. A honra continuava a ser um valor e a desonra uma nódoa infamante.

A justificação da existência de armas de destruição em massa por parte do governo de Saddam Hussein para George Bush Jr decretar a invasão do Iraque terá sido o exemplo mais próximo e mais marcante da passagem da “verdade efetiva” para a pós-verdade. Pós verdade é um eufemismo para um tipo de mentira, que pode percorrer vários patamares, da pura invenção, por mais inverosímil que seja, à manipulação de factos que podem ser plausíveis e às promessas irrealizáveis de salvação. A pós verdade é o sinónimo do logro declinado nos vários significados, de burla, de engano com dolo, de fraude, de intrujice, ludíbrio, de trampolinice, de trapaça. Vivemos no reino do logro. Do tipo das barras batizadas de “delícias do mar” e que não são nem peixe, nem marisco e que nem passaram pelo mar.

A invasão do Iraque marca uma nova era no Ocidente na relação entre governantes e governados: a vitória dos grandes aparelhos de manipulação sobre a realidade, a transformação dos cidadãos em espetadores de espetáculos de efeitos especiais, a purificação dos canalhas e a sua transmutação em exemplos, como é o caso de Paulo Portas ou Durão Barroso, os videntes que viram as provas da mistificação que justificou a invasão do Iraque e que são hoje criaturas tidas por decentes e respeitáveis. A política passou a replicar os jogos da Marvel e os políticos surgiram como “transformers” e vendedores de delícias do mar como se fossem lagosta.

Do mesmo modo que a metralhadora alterou o modo de fazer a guerra na Grande Guerra, que a arma atómica alterou a a forma de as grandes potencias se relacionarem após a Segunda Guerra, a guerra da comunicação da era da informação proporcionada pelas novas tecnologias alterou de novo as táticas e acentuou a insídia na guerra. A pós-verdade são as imagens mais ou menos manipuladas que surgem nos ecrãs de televisão com paisagens e pontos assinalados por uma cruz-alvo, são atores-comentadores a arengar uma narrativa como antigamente os contadores de histórias faziam nas feiras, são um grande espetáculo de massas. Para os manipuladores da opinião, o genocídio de Gaza é um festival de efeitos especiais. A multidão mundial está tão anestesiada pela mentira que não reage. Estamos impermeabilizados. Os pilotos israelitas que bombardeiam Gaza marcam pontos no seu ecrã de videojogos. A pós verdade é a desumanização. Começa por ser a desumanização dos outros e acabará por ser a desumanização dos detentores das máquinas de jogos, sejam caças F35 ou drones.

Os europeus, com a velha arrogância, têm apresentado a nova arte de manipular as opiniões como uma especificidade americana, de que Trump é o mais exuberante talento. Pura mistificação. A utilização da mentira e do logro sob a designação de pós-verdade está tanto na ordem do dia na Torre Trump em Nova Iorque como no edifício Berlaymont em Bruxelas, sede da Comissão Europeia. Ursula Vaon Der Leyen e os seus comissários mentem, inventam e manipulam tanto quanto a nova administração Trump. E mentem sobre os mesmos grande temas, as guerras na Ucrânia e na Palestina, mentem quanto a promessas de uma nova era de leite e mel se continuarem a drenar fundos para essas guerras, mentem quanto aos objetivos de fazer a América Grande de Novo ou a Europa um continente de prosperidade, desde que derrotem os russos, os chineses, saqueiem África, dominem o Médio Oriente e determinem o preço do petróleo, rasguem os protocolos sobre as alterações climáticas, fechem as fronteiras aos imigrantes provocados pelas suas guerras.

Que diferenças, exceto de forma, existe entre o discurso pistoleiro de Úrsula Von Der Leyen, de Borrell e da sua sucessora Kallas como representante da política externa da U E, da neoliberal Albuquerque dos secretários da nova administração Trump? Que diferença existe entre os e as warmongers americanos e americanas dos e das warmongers da União Europeia? A diferença da relação entre a verdade e a realidade no discurso dos dirigentes americanos e dos dirigentes europeus é a mesma entre um carniceiro e um assassino de arma fina. Os painéis de pastores das TV portuguesas não diferem dos painéis dos pastores nos Estados Unidos. A norma é o televangelismo.

A percepção de que a Europa não é o folclore americano resulta da desinformação a que somos sujeitos através da “armamentização” da comunicação social. O filósofo Marshall McLuhan escreveu há anos que “o meio é a mensagem”. A diferença entre a mentira sob o eufemismo de pós-verdade americana e europeia é que nos Estados Unidos o meio é agora Elon Musk, o homem mais rico do mundo que comprou uma plataforma de comunicação global, o X, e é o chefe de estado sombra do que era a maior superpotência do mundo. Essa é a diferença. Uma diferença de armamento e de dimensão entre uma tromba de água e um regador. Os Estados Unidos com a sua rede de satélites e de empresas de dados e comunicações, da Starlink ao Google, podem fazer descarregar um dilúvio de mentiras, ou de pós-verdades sobre o mundo, uma “dana” como a de Valência à escala planetária e a Europa não consegue provocar mais que chuviscos, mesmo com as tentativas em curso de censura e domínio dos meios de comunicação que ainda restam no domínio público ou fora dos grandes conglomerados.

No essencial, a germinação e cultivo em estufa de dirigentes quer nos Estados Unidos quer na Europa obedece ao mesmo processo: um grande apoderado paga uma generosa bolsa de estudos para um seu pupilo vir a ocupar um lugar na administração do Estado que favoreça os seus negócios. Musk financiou Trump, mas Peter Thiel, o cofundador do PayPal, rastejando nas sombras, garantiu que o seu homem, JD Vance, entrasse no par presidencial como vice-presidente. Jeff Bezos, atrasado para a festa, entrou na onda falhando alguns dias, mas garantindo que o seu Washington Post não endossasse nenhum candidato. Aqui na Europa ninguém que coloque em causa as verdades únicas da guerra na Ucrânia e do aumento das despesas militares chegará a qualquer posto de relevo. Apenas têm lugar à manjedoura os que que puxam a carroça do dono.

Quer nos Estados Unidos quer na Europa existe uma oligarquia no poder que funde os negócios do Estado e os negócios privados e constitui uma elite governante. Os negócios renderão biliões, milhões de pessoas morrerão e incontáveis crimes serão cometidos. Como li em algum lugar: “Estamos além do espelho. Estamos todos a viajar pelos esgotos da informação. Trump é um bacilo, mas o problema são os canos.” E pelos canos escorrem muitos outros dejetos.

O essencial são os valores. O valor da palavra dada. A democracia assenta no caráter dos cidadãos e em particular dos que têm maiores responsabilidades. Quando não há caráter há canalhas. Temos um regime de canalhas. Quando se abicam dos valores criamos um mundo de faquistas e de trafulhas.

202411 14

https://cmatosgomes46.medium.com/entre-a-mentira-e-o-logro-8b1a7694566c

CARLOS MATOS GOMES – O QUE EU GOSTARIA DE SABER

* Carlos Matos Gomes

14 de Novembro de 2024 

O que eu gostaria de saber é o que leva um ser humano a praticar o mal. Toda a filosofia ocidental está marcada pelo problema da origem do mal. Mas sob a mesma designação de “mal” cabem muitos tipos de mal, o mal físico, o mal psíquico, o mal moral, mas o que eu gostaria de saber era o que leva um ser humano a destruir o outro, o seu semelhante, homem, mulher ou criança. O que leva um ser humano a destruir o seu habitat. E o que leva um ser a ter prazer ao praticar o mal. Não só do masoquismo, mas do prazer do funcionário público que antes de atender o cidadão lhe atira: A senha! E que depois de o ouvir expor a sua pretensão o informa que não é ali que se trata do assunto e que falta um documento, uma certidão, um carimbo e venha qualquer dia por que estamos a fechar.

Coisas mesquinhas, mas também gostava de saber o que sentiu o presidente americano Harry Truman ao dar ordem, em 1945, para os seus militares lançarem as bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Gostaria de saber o que pensa um piloto israelita aos comandos de um moderníssimo caça-bombardeiro quando carrega no botão que vai largar uma bomba sobre uma multidão indefesa em Gaza. E o que pensa um palestiniano quando é expulso à coronhada sua casa onde a sua família vive há séculos, ou quando vê os colonos judeus derrubarem uma oliveira milenar porque ela é um símbolo da posse da ligação á terra e quando, espoliado de tudo, ainda é acusado de terrorista!

Gostaria de saber o que pensa o multimilionário Elon Musk quando entrega os dados da vida privada de milhões de clientes das suas redes X (ex-Twitter) aos serviços secretos dos Estados Unidos, o que permite localizá-los e matá-los à distância, segundo as conveniências. E o que pensam os administradores das grandes farmacêuticas sobre o sistema de patentes e de preços de medicamentos que geram fabulosos lucros aos seus acionistas, vendendo-os aos ricos e deixando morrer os pobres.

Gostaria de saber o que pensam os bispos e cardeais inquisidores, os antigos e os atuais, que estabeleceram verdades absolutas e que condenam à fogueira os hereges que duvidam quando a evidência lhes revela que as verdades absolutas são criminosas e as dúvidas são virtuosas.

Gostaria de saber o que pensa do mal a senhora Lagarde, do BCE, do alto da sua pesporrência quando anuncia quanto vale um euro, depois de receber ordem dos cem acionistas privados da Reserva Federal Americana, o FED e desencadeia os despejos de pessoas das suas casas, as falências de pequenas e médias empresas.

Gostaria de saber o que passava pela cabeça do papa João Paulo II da Igreja Católica Romana quando canonizou José Maria Balaguer, o chefe da Opus Dei, autor de tiradas de ofensa aos seres humanos negando a igualdade: “Não achas que a igualdade, tal como a entendem, é sinónimo de injustiça?” ou, “ “Estejas pronto a desistir da tua honra pela tua alma!” A alma de um católico não integra a sua honra?

Gostaria de saber o que levou Napoleão a incendiar a Europa com a justificação de grandeza, “La Grandeur”, se depois de matar mais de um milhão de soldados e de incontáveis destruições por toda a Europa, a França tinha exatamente o mesmo tamanho de antes de ele se arvorar em imperador!

E o que pensam uns seres da espécie humana que por conta das grandes máquinas de alienação se reúnem em aldeias de macacos de zoos para exporem nos ecrãs de televisão as suas taras, naquilo que é habitualmente designado por Big Brother? Que pensam os seres que aceitam fazer parte daquelas pocilgas e aqueles que se aproveitam do que delas sai? 

O que pensa do mal um escravo trazido no século XXI de África ou da Ásia por uma máfia para carregar uma albarda paralelepipédica a dizer Uber, ou Glovo, e a pedalar atrelado a uma bicicleta para distribuir rações fabricadas por uma multinacional a clientes de olhos e polegares fixos nos telemóveis de que não se podem desligar para cozer uma batata ou um ovo?

Gostaria de saber o que pensam do mundo as múmias do Egito, os imperadores romanos, os santos de todas as igrejas eternizados em estátuas e mausoléus, obras imperecíveis espalhadas pelo planeta sobre a obra que ajudaram a construir.

Gostaria de saber o que pensam os seres representados na cidade dos Reis no Egito, na cidade proibida de Pequim, em toda a Roma, incluindo a praça de São Pedro, no Panteão de Paris, no Kremlin de Moscovo, na Casa Branca de Washington. Eu sei o que penso deles.

https://aviagemdosargonautas.net/2024/11/14/carlos-matos-gomes-o-que-eu-gostaria-de-saber/

terça-feira, 12 de novembro de 2024

José Eduardo Agualusa - Magníficos perdedores

José Eduardo Agualusa


15/08/2016 4:00

Não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade

Gosto de seguir a Olimpíada não tanto para me surpreender ou maravilhar com os resultados desportivos, muito menos para torcer por esta ou aquela bandeira, e sim devido às histórias de vidas que se dão a conhecer naquele imenso palco. Não me interessam apenas as histórias de superação e de vitória. Como crônico perdedor — no plano desportivo, e não só — sinto enorme empatia pelos derrotados. Não os que perdem por uma fração de segundo, os quase-vencedores, mas os que se deixam ultrapassar magnificamente — os que caem como quem se ergue; os que ficam para trás e transformam a derrota no maior dos triunfos.

O meu herói, o campeão dos perdedores, é, desde a Olimpíada de Sidney, em 2000, o grande Eric Moussambani. Moussambani, natural da Guiné-Equatorial, tinha então 22 anos. Aprendeu a nadar, com a ajuda de um pescador, apenas quatro meses antes da tarde histórica em que, pela primeira vez, saltou para uma piscina de 50 metros (até então nadara num rio e numa piscina de hotel, de 12 metros), completando os cem metros com o pior tempo jamais registrado: um minuto e 52 segundos.

O meu pai foi professor e treinador de natação, em Angola. Devo ter sido o seu pior aluno. Fui o pior nadador da história oficial da natação angolana. Ainda assim, nunca consegui um tempo tão ruim quanto o de Moussambani. Nunca gostei de linhas retas (sou da escola de Niemeyer), de forma que avançava às curvas, batendo de encontro às raias. A minha casa estava cheia de taças e medalhas, do meu pai, da minha mãe e da minha irmã. Finalmente, também eu ganhei uma medalha de segundo classificado em nado de peito. Detalhe: éramos apenas dois concorrentes.

A história de Eric: o rapaz varria a casa, naquele já distante início de milênio, quando escutou na rádio um convite do Comitê Olímpico da Guiné-Equatorial. Procuravam-se nadadores, num país no qual raros sabem nadar. Eric foi o único homem a voluntariar-se. Quatro meses mais tarde desembarcou em Sidney com umas bermudas floridas. O treinador da seleção sul-africana emprestou-lhe uma sunga, uns óculos de natação e ensinou-o a fazer a virada. Após a gloriosa derrota, que o tornou popular no mundo inteiro, Eric Moussambani poderia ter-se aposentado. Não o fez. Aproveitou um convite de Espanha e decidiu aprender a nadar. E aprendeu.

Quatro anos depois, Moussambani obteve os mínimos regulamentares para competir em Atenas (nadou os cem metros em 54 segundos), mas acabou não comparecendo devido a um erro administrativo. Hoje é o treinador da seleção de natação da Guiné-Equatorial.

Outros perdedores olímpicos famosos, tão famosos que a sua magnífica derrota inspirou um filme, foram os jamaicanos da equipe de bobsleigh — aquela corrida de trenó, com quatro pessoas dentro de cada um — dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Calgary, no Canadá, em 1988. O caso deles é ainda mais extraordinário do que o de Moussambani, já que pelo menos existe água na Guiné-Equatorial. Na época até já havia uma piscina de 12 metros, num hotel, embora Moussambani só a pudesse utilizar de madrugada, durante uma hora, antes que os hóspedes acordassem. Na Jamaica não existe neve. Nunca. Os quatro bravos jamaicanos despistaram-se na prova inicial, mas conseguiram sobreviver ao desastre — e ao frio.

Neste ano, no Rio, duas perdedoras também fizeram História. As atletas egípcias de vôlei de praia, Doaa Elghobashy e Nada Meawad. Uma imagem de Doaa ao lado de uma atleta alemã correu o mundo — Doaa usando o tradicional hijab , calças legging e camiseta de manga comprida; a atleta alemã, Kira Walkenhorst, vestindo biquíni. Foi a primeira vez que o Egito disputou uma Olimpíada na modalidade. A fotografia serviu de pretexto para uma intensa discussão sobre diferenças de cultura, fanatismo religioso e liberdade da mulher. Curiosamente, poucos fotógrafos se interessaram em retratar Nada, a qual optou por se apresentar sem o véu islâmico. As duas mostraram grande coragem, mas provavelmente Nada mostrou mais. Assediada pela imprensa Doaa assegurou que o hijab não a incomoda enquanto joga. Não disse — mas suspeito — que a incomoda mais a curiosidade do público e dos jornalistas. 

Com véu ou sem véu, a alegria das duas mulheres por estarem ali, num evento tão importante, competindo com as melhores (ainda que elas mesmas não tivessem sequer noção de quem eram as melhores) representa o lado mais luminoso daquilo que se costuma chamar espírito olímpico — e do qual, quase sempre, nos esquecemos: não se trata de triunfar sobre o outro, trata-se de fazer triunfar a humanidade.

https://oglobo.globo.com/cultura/magnificos-perdedores-19921976

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Eduardo Lucas - Guerra cognitiva e controle de informação


*  Eduardo Lucas in 


“O poder gera realidade. E enquanto você estuda essa realidade… nós criamos outra”. Esta ideia resume a essência da guerra cognitiva: aqueles que controlam a narrativa controlam a própria realidade.

A crise ucraniana, o conflito no Extremo Oriente e o genocídio palestiniano anunciam, para o mundo ocidental “baseado em regras”, o prólogo de uma crise social de proporções épicas. O capitalismo neoliberal enfrenta uma das suas maiores crises existenciais. O mundo transita de uma ordem unipolar para uma ordem multipolar, evidenciando o declínio do império norte-americano.

Neste contexto, as elites dominantes e a burguesia transnacional estão a implementar formas de controlo social sem precedentes. Os grandes conglomerados financeiros, confrontados com a ameaça de perder a sua hegemonia, optaram por restringir as liberdades públicas. Por outro lado, promovem movimentos de carácter messiânico, o revisionismo histórico, passando por debates de falsa identidade ou ambientalismo reacionário. Para garantir o uso do poder, financiam partidos e movimentos de extrema-direita que por vezes se apresentam sob a máscara de “europeístas” e, noutras ocasiões, como populistas de direita ou de esquerda, dependendo das circunstâncias. Estas forças políticas cuidadosamente moldadas permitem que os grupos financeiros mantenham a sua influência política, ao mesmo tempo que neutralizam a resistência popular. Neste contexto de restrição de liberdades e manipulação política, as tecnologias de vigilância e censura em massa assumem um papel central.

Em agosto de 2024, o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional (ODNI) dos EUA apresentou um documento que, camuflado como apenas mais um procedimento burocrático, representa na verdade uma mudança profunda na forma como a vigilância é realizada em todo o mundo. Sob o nome “Intelligence Community Data Co-op” (ICDC), o projeto propõe a criação de uma plataforma centralizada para coletar e analisar enormes quantidades de informações de qualquer indivíduo em todo o mundo. A imagem do irmão mais velho de Orwell dá um enorme salto em frente. Este sistema coleta dados de fontes comerciais e públicas: desde histórico de compras e geolocalização até atividades nas redes sociais e registros de saúde.

O preocupante é que o projeto permite que as agências de inteligência dos EUA “evitem restrições legais” comprando dados de empresas privadas, sem ter que passar por processos judiciais que poderiam atrasar as investigações. Esta nova arquitectura de vigilância faz do ICDC um pilar central da Guerra Cognitiva, pois oferece uma vantagem estratégica às agências de inteligência, permitindo mesmo a manipulação preventiva do comportamento através do controlo sobre ideias dominantes, tendências de voto… Descobertas na psicologia social sobre identidades partilhadas abrem novas caminhos para a projeção de líderes emocionais. A chamada psicologia das emoções aliada aos bancos de dados amplia o horizonte para a criação de lideranças sociais formatadas pelo próprio sistema.

Neste contexto, polvos tecnológicos como a Apple e a Microsoft têm sido atores-chave na facilitação da vigilância em massa[1] e, a partir dela, na criação ou recriação de futuros líderes sociais. Soma-se a isso o fato de a Microsoft coletar, há anos, grandes quantidades de informações dos usuários do Windows 10 e 11, como o texto que digitam em seus teclados, sua localização geográfica e até imagens capturadas por câmeras web, sem que os usuários estejam cientes disso. Estas ações geraram uma desconfiança crescente em relação às grandes empresas tecnológicas ocidentais.

Os ataques terroristas do regime israelita no Líbano em 2024 revelaram a extrema vulnerabilidade das infra-estruturas tecnológicas globais e como estas podem rapidamente tornar-se armas de guerra. As bombas em smartphones, pagers e instalações atacadas revelaram que, apesar dos avanços na segurança informática, as infra-estruturas tecnológicas globais são altamente susceptíveis a ataques cibernéticos ou a actos terroristas coordenados.

Este clima de incerteza e vulnerabilidade favoreceu paradoxalmente a ascensão da China como uma alternativa tecnológica mais fiável, especialmente nos mercados emergentes. A ascensão de empresas chinesas como a Huawei e a Xiaomi, as principais beneficiárias, deve-se em parte ao medo gerado pela fragilidade das infra-estruturas tecnológicas ocidentais. Os ataques no Líbano e os atuais problemas de cibersegurança no Ocidente aceleraram esta mudança de perceção, levando a um aumento significativo nas vendas de produtos chineses, especialmente nas regiões em desenvolvimento. Pequim aproveitará estas circunstâncias para consolidar a sua posição como líder em tecnologia segura, fora da interferência ocidental.

Guerra cognitiva: definição e estratégias
A guerra cognitiva é um conceito desenvolvido pela NATO para descrever a manipulação da percepção e do pensamento colectivos, a fim de influenciar o comportamento humano. Ao contrário da guerra convencional, onde os objectivos são territórios ou recursos, a guerra cognitiva procura dominar a mente, moldar opiniões e controlar narrativas. Este tipo de controle não se limita apenas a censurar pontos de vista opostos, mas também busca antecipar, evitando que ideias opostas à narrativa oficial se formem na opinião pública. Para isso, é essencial a censura sistemática de meios de comunicação como Telegram, RT, Sputnik e muitos outros no Ocidente. Na sequência do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, as plataformas tecnológicas ocidentais e os governos bloquearam o acesso a estes meios de comunicação para impedir a disseminação das suas narrativas ao público na Europa e na América.

Estas medidas, em muitos casos, não resultam de decisões judiciais, mas sim de ordens administrativas que procuram limitar o acesso a pontos de vista divergentes e controlar o fluxo de informações. Nesse sentido, é fundamental reconhecer a célebre frase atribuída a um assessor do ex-presidente George W. Bush: “O poder gera a realidade. E enquanto você estuda essa realidade… nós criamos outra.”

Esta ideia resume a essência da guerra cognitiva: aqueles que controlam a narrativa controlam a própria realidade. O poder reside não apenas em influenciar os factos, mas em moldar a percepção desses factos antes que outros possam questioná-los. Na mesma linha, Michel Foucault, em sua obra “História da Sexualidade: A Vontade de Saber” (Foucault, 1976), afirmou que, em última análise, quem tem controle sobre a narrativa tem controle sobre como a realidade é percebida.

Expansão dos smartphones e uso de algoritmos preditivos
A expansão do uso de smartphones, que agora chegam até às mãos de meninos e meninas, abriu uma nova fronteira no controle da informação e na manipulação social. Ao utilizar “algoritmos preditivos”, as grandes empresas tecnológicas e as oligarquias globais podem recolher e analisar grandes quantidades de dados pessoais desde tenra idade. Isto permite definir as inclinações, tendências e comportamentos dos usuários, oferecendo uma visão precisa do futuro imediato, que pode ser manipulada e controlada de acordo com os interesses das empresas transnacionais. O acesso a dados sensíveis como as preferências dos consumidores, os padrões de interação social e o comportamento online desde muito cedo fornece às oligarquias as ferramentas necessárias para moldar as perceções e decisões das gerações futuras.

Neste contexto, os algoritmos não apenas prevêem o que uma pessoa fará, mas influenciam ativamente a forma como ela verá o mundo e tomará decisões. Esta monitorização contínua e manipulação subtil do comportamento através de tecnologias de vigilância digital fazem dos smartphones uma das ferramentas mais poderosas para garantir que as elites possam manter o seu controlo sobre a ordem social e económica para as gerações vindouras.

O comportamento da casta dominante está repleto desta ideia: muitos dos filhos das elites crescem educados em ambientes onde o acesso aos dispositivos digitais é restrito, conscientes dos perigos que estas ferramentas podem representar em termos de controlo, manipulação e vigilância. Como aponta Manfred Spitzer em seu livro Demência Digital, o uso intenso da tela pode ter efeitos devastadores no desenvolvimento cognitivo das crianças, o que explica por que as “crianças ricas” muitas vezes “não olham para as telas”, sendo afastadas do alcance delas as mesmas tecnologias que as elites promovem para a população em geral.

Rumo a uma sociedade monitorada
À medida que o controlo da informação e a vigilância em massa se expandem, figuras políticas de alto nível começaram a defender cortes nas liberdades civis em nome da “Segurança Nacional” e do combate à “desinformação”. Tanto o ex-secretário de Estado John Kerry como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton têm sido vozes proeminentes nesta discussão, sugerindo que certos direitos, como os protegidos pela “Primeira Emenda da Constituição Americana”, devem ser revistos para se adaptarem aos tempos actuais. Em declarações recentes, John Kerry argumentou que a liberdade de expressão não deve ser um “cheque em branco” que permite aos cidadãos espalhar desinformação ou desafiar as narrativas oficiais sobre questões de segurança.

Kerry observou que, num mundo onde as “notícias falsas” e a desinformação podem desestabilizar as sociedades, é necessário “limitar certas formas de discurso” para proteger a coesão social e a estabilidade política. Na sua opinião, uma sociedade mais “monitorada e controlada” seria menos vulnerável a influências externas maliciosas. Por sua vez, Hillary Clinton tem defendido abertamente a necessidade de “combater a desinformação” e sugeriu que o governo deveria ter mais poder para regular e monitorizar o que é publicado nas redes sociais.

Clinton argumenta que embora a Primeira Emenda seja um pilar fundamental da democracia americana, a sua interpretação deve adaptar-se aos desafios do século XXI. Para Clinton, a “liberdade de imprensa” e a “liberdade de expressão” devem ser compatíveis com um sistema de “vigilância e controlo” que garanta que apenas informação “responsável” seja divulgada.

Por trás deste discurso, porém, está a influência dos “grandes grupos de poder”. A classe política, obedecendo aos interesses destas elites, abre debates sociais sobre as liberdades em abstrato, mas esconde o seu verdadeiro objetivo: a “restrição progressiva das liberdades públicas” sob o pretexto da segurança e da estabilidade social. Este processo, por enquanto, é realizado sob o manto de uma “subdemocracia”, onde os cidadãos são chamados a votar de tempos em tempos, enquanto a casta política toma decisões fora da vontade popular, concentrando o poder nas mãos de poucos. Além disso, esta restrição de liberdades é justificada pelo medo do terrorismo, pelas preocupações com as alterações climáticas, que orientam o consumo social em direcções que favorecem determinados interesses, e pelas epidemias, que alimentam a solidão social. Esse isolamento reforça o controle, pois quando os laços entre os indivíduos são rompidos, o tecido social fica enfraquecido, dificultando a resistência organizada.

Perseguição de dissidência e censura global
A guerra cognitiva não é travada apenas no mundo digital. Aqueles que tentam desafiar o controlo da informação e oferecer narrativas alternativas, sejam jornalistas, activistas ou académicos, enfrentam perseguição e censura. Exemplos recentes (para não mencionar Assange e Snowden) incluem os ataques aos escritórios de Jurgen Elsasser, editor-chefe da revista Compact na Alemanha, e a perseguição do antigo inspector de armas da ONU Scott Ritter nos EUA, ambos acusados ​​de ter ligações com a Rússia pelas suas críticas às políticas ocidentais.

Estas ações fazem parte de uma estratégia mais ampla para silenciar as vozes críticas e garantir que a narrativa dominante prevaleça sem concorrência. Em muitos casos, as acusações de desinformação ou de “interferência estrangeira” são utilizadas como pretexto para justificar a censura, quando na realidade o objectivo é suprimir quaisquer opiniões críticas que possam desafiar o status quo.

Conclusão
Em suma, o controlo da informação, os ataques terroristas no Líbano e a guerra cognitiva estão profundamente interligados. Através de programas de vigilância em massa como o ICDC e da estreita colaboração com empresas tecnológicas, as agências de inteligência procuram dominar o fluxo de informação global. Contudo, este controlo não se limita apenas à recolha de dados; Vai mais longe, no sentido da manipulação direta do pensamento e das percepções coletivas. A vulnerabilidade dos sistemas informáticos, exposta pelos ataques no Líbano, mostra como as infra-estruturas tecnológicas globais são susceptíveis de exploração, facilitando a guerra cognitiva.

Ao mesmo tempo, a China aproveitou as fraquezas dos sistemas ocidentais para se estabelecer como o novo vencedor na competição tecnológica global, aumentando a sua influência e o seu poder brando. A guerra cognitiva representa um desafio sem precedentes para as sociedades modernas.

Ao integrar tecnologia, espionagem em massa e manipulação de informação, as elites globais procuram não só controlar o que sabemos, mas também a forma como pensamos. Como cidadãos, é crucial estarmos conscientes destas estratégias e defendermos ativamente os direitos fundamentais que estão em risco nesta nova era de controlo e vigilância.

Referências:
1. Ameaças estrangeiras às eleições federais dos EUA em 2020, Avril Haines, 10 de março de 2021.

2. Mídia financiada pelo Kremlin: RT e o papel do Sputnik no ecossistema de desinformação e propaganda da Rússia, Centro de Engajamento Global, janeiro de 2022.

3. “Campanha da OTAN contra a liberdade de expressão”, por Thierry Meyssan, Rede Voltaire, 5 de dezembro de 2016.

4. “O Ocidente renunciou à liberdade de expressão?”, por Thierry Meyssan, Rede Voltaire, 8 de novembro de 2022.

5. Guerra Cognitiva, François du Cluzel, Comando Aliado para a Transformação da NATO, Novembro de 2020.

6. “O poder gera realidade.” Atribuído a Karl Rove, conselheiro de George W. Bush【46†fonte】

7. Michel Foucault, História da sexualidade: A vontade de saber, Madrid: Siglo XXI, 1976.

8. Manfred Spitzer, Demência Digital , Barcelona: Edições B, 2012.

Nota: [1] Em 2023, o Serviço Federal de Segurança (FSB) da Rússia relatou que os dispositivos Apple foram infiltrados por software malicioso que permitiu que a inteligência dos EUA espionasse diplomatas e cidadãos estrangeiros na Rússia

Fonte aqui.

blog osbarbarosnet.blogspot.com, 20/10/2024)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Paulo Baldaia - ou neto de um polícia e sou um privilegiado, outros há que não são

Opinião

* Paulo Baldaia

Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá a estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos

Num mundo tão desigual como aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se dobram apontando responsabilidades a nós próprios.

Sim, é verdade que ser cigano (a etnia mais odiada e mais discriminada) ou afrodescendente, a que se juntam agora também os indostânicos, é condição suficiente para sofrer na pele diariamente algum tipo de discriminação. Mas se forem pessoas abastadas (uma pequeníssima minoria) e puderem comprar um lugar ao sol (nos bairros ricos da cidade) e pôr os filhos no colégio, a discriminação a que são sujeitos será, mesmo que apenas ligeiramente, atenuada. Pelo contrário, quanto mais pobres são, mais são vistos como ciganos, afrodescentes ou indostânicos e não como cidadãos de plenos deveres e direitos.

Cresci num bairro de vivendas geminadas, mandado construir durante o Estado Novo, em parceria com organizações corporativas, em cidades como Lisboa e Porto, para as famílias dos funcionários desse mesmo Estado, mas não só. As Casas Económicas, como passaram a ser designadas, são habitações independentes de que os moradores se tornaram proprietários ao fim de determinado número de anos, mediante o pagamento de prestação mensal. No momento seguinte, construíram-se, junto dessas vivendas, bairros sociais de blocos (assim chamados por se tratar de prédios de construção muito simples e que permanecem pertença das autarquias). Na altura, dizia-se que a construção destes bairros camarários junto às vivendas tinha o objectivo político de dar aos mais pobres o convívio com a tal classe média que se formava e assim aprenderem a sair da pobreza. Outrora, como agora, havia a ideia peregrina de que só era pobre toda a vida quem queria.

O meu avô materno, que nem cheguei a conhecer, era polícia municipal e talvez isso tenha ajudado para os meus pais terem direito a uma vivenda, onde puderam criar uma família que só parou nos nove filhos. Eram da classe média, na relativa pobreza que isso significava ser classe média naquela altura, concorreram e foi-lhes entregue uma casa que passou a ser deles ao fim de 25 anos. O meu pai tinha estudos médios e isso fez com que eu não tenha nascido predestinado a viver na pobreza, mas quis o destino que crescesse a olhar para ela. A casa, que foi crescendo à medida que crescia a família, ficava paredes-meias com o bairro social onde o que crescia era a pobreza e a discriminação. Sou testemunha do esforço titânico que aquelas pessoas (alguns andaram na escola primária comigo) faziam para serem vistos como cidadãos de corpo inteiro. O país mudou, diminui o número de pobres, cresceu a classe média, mas até isso travou às quatro rodas. A certa altura, ficamos conformados com a ideia de que o país tem de viver com dois milhões de pobres.

Para evitar vermo-nos ao espelho quando olhamos para esta pobreza económica que reflecte a pobreza dos nossos valores, empurramo-la para cada vez mais longe da elite dominante. A condição social em que me encontro faz de mim um privilegiado, mas a consciência que tenho do privilegiado que sou obriga-me a olhar ainda com mais humanidade para os que apenas podem ambicionar sobreviver um dia de cada vez. Ser de um destes bairros, levantar de madrugada para trabalhar e só regressar noite feita, ao mesmo tempo que educam os filhos, dá estas pessoas o estatuto de heróis, não o de eternos suspeitos.

Ainda assim, este ano, algures num destes bairros poderá ter nascido alguém que, daqui a 20 anos, terá uma vida ligada ao crime. Nessa altura, vamos todos apontar o dedo ao criminoso e exigir repressão policial, continuando a não ver os três dedos que se dobram e nos apontam a responsabilidade por pouco ou nada termos feito para evitar que o bebé de hoje se tornasse um criminoso no futuro. No mesmo bairro, poderá ter nascido também este ano alguém que vai ser polícia, porque é uma das formas de sair da pobreza onde nasceu, e ao entrar no bairro, traído pela má memória do perigo que lá mora, vai disparar à mais pequena ameaça. Nessa altura, vamos todos querer justiça, não cuidando de perceber que para lhe apontar um dedo há três que se dobram apontando a todos nós, porque não lhe demos condições de ser um justo braço da lei. Está nas nossas mãos fazer com que a realidade mude.


Expresso  2024 10 28

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Alexandra Lucas Coelho - Sinwar não é o vosso monstro

* Alexandra Lucas Coelho  

"1. Eu estava a dormir num prédio de Gaza quando o soldado israelita Gilad Shalit foi feito refém, na madrugada de 25 de Junho de 2006. Combatentes palestinianos, do Hamas e não só, penetraram em Israel por um túnel de meio quilómetro junto a Rafah, atacaram um posto militar, mataram dois soldados, feriram quatro e voltaram com Shalit. Quando acordámos, toda a gente sabia o que aí vinha: Gaza ia ser bombardeada (crónica desses dias no arquivo do PÚBLICO). O que ninguém podia prever, claro, é que o refém Shalit sairia o mais caro de sempre ao Estado judaico. E seria o começo de uma história que de certa forma só acabou esta semana, quando soldados comuns, uma geração depois de Shalit, mataram por acaso o actual Inimigo nº1 de Israel: Yahya Sinwar. O cérebro do 7 de Outubro, aquele a que Netanyahu chama a encarnação do mal. E que o próprio Netanyahu tirou da prisão perpétua. Porque Sinwar foi um dos 1000 prisioneiros palestinianos trocados pelo soldado Shalit em 2011, acordo que hoje parece mirabolante, se pensarmos em tudo o que Netanyahu não fez para libertar os reféns do 7 de Outubro.

2. Nesse Junho de 2006, entre o rapto do soldado e o castigo a caminho, fui às barricadas que a população de Gaza erguia para atrasar a investida terrestre. Lá estava um beduíno que me descreveu com detalhe como na madrugada do rapto dormia na sua tenda quando foi acordado por carros com militantes armados na direcção de Israel. Depois ouvira explosões e tiros, e depois vira os militantes a voltarem, arrastando um ferido. Apontaram uma arma ao beduíno para o enxotar. O ferido seria Shalit.

Esse raide contra o posto israelita era uma resposta: semanas antes, Israel executara o líder da Jihad Islâmica, e explosões israelitas numa praia do norte de Gaza tinham feito oito vítimas civis, sete das quais da mesma família. Os executores do raide eram militantes da ala militar do Hamas, dos Comités de Resistência Popular e de um desconhecido Exército do Islão. Em comunicado conjunto pediam a libertação das mulheres e jovens até 18 anos presos nas cadeias de Israel.

Mas anos depois, quando o acordo foi feito, e Shalit trocado pelos 1000, entre os libertados havia barbas rijas, até grisalhas. Como a de Sinwar, que passara 22 anos na cadeia. Pensem em 22 anos da vossa vida. Na vida de Sinwar, 22 anos a aprender hebraico, estudar história, conhecer por dentro o inimigo. Inimigo desde antes de nascer e para além da morte.

Porque Sinwar se tornou o Inimigo nº1 de Israel a 7 de Outubro, mas Israel já era o Inimigo nº1 de Sinwar havia 75 anos. Ele herda a resistência ao nascer, e vai deixá-la em herança muito mais feroz. Implacável, a começar pelos traidores internos. As condenações que o levaram à cadeia incluem execuções de palestinianos colaboradores ou suspeitos. E os israelitas que o interrogaram na prisão lembram um homem sem qualquer medo, que ameaçava os seus carrascos ali mesmo, sendo prisioneiro.

O que também ajuda a entender porque não é possível resumir — ou destruir — o Hamas como um grupo terrorista. E como o Hamas cresceu perante 1) uma Autoridade Palestiniana minada por corruptos 2) um Estado cada vez mais ocupante, a quem convinha um inimigo como o Hamas 3) um Ocidente (ou Norte Global) que abandonou os palestinianos desde 1948, depois de a Europa, a mais antiga das anti-semitas, ter ajudado a criar Israel.

Esse mesmo Ocidente que agora se escuda com o Hamas para não ver, e tentar que não se veja, a sua própria ignomínia. Como se a crueldade do que aconteceu a 7 de Outubro fosse o início e não o fim de um status quo que nunca devia ter existido. O ferro do Hamas queimou Israel até ao osso. E os líderes ocidentais tapam o seu próprio crime contínuo com o Hamas. Tal como toda a gente que não quer ver Gaza (ou o Líbano). Mas o Hamas não é o vosso escudo humano. Sinwar não é o vosso monstro. Não vai fazer esse papel. Não vai tapar o abismo aqui. O nosso.

A verdade são várias, paralelas, não se excluem. O Hamas fortaleceu-se por ser incorruptível, dar a vida à causa e sendo implacável. É um movimento religioso, de resistência nacional, que encara todos os meios como legítimos para a sua visão da libertação da Palestina, incluindo terrorismo contra civis. E, sim, desfez-se de opositores internos, de "imorais", homossexuais. Torturou não-alinhados, denunciados ou suspeitos. Incluindo, como contei várias vezes, o palestiniano de Gaza que foi meu tradutor e guia em dezenas de reportagens para este jornal, ao longo dos anos. Cuja casa de família eu partilhava quando o soldado Shalit foi raptado naquela madrugada que de certa forma foi o ovo do 7 de Outubro.

3. Uma das primeiras memórias que tenho de entrevistar alguém do Hamas em Gaza, durante a Segunda Intifada, é a de um porta-voz que chegou com um daqueles pequenos telefones tipo Nokia que todos usávamos na altura. Antes mesmo de se sentar tirou a bateria para não ser localizado. Estávamos numa esplanada, vários membros do Hamas eram relativamente acessíveis, mas não me lembro de não haver precauções deste género. Quando eu aterrei no assunto já eles tinham toda uma linhagem de assassinados. Depois, ao longo dos anos, conheci muitos membros do Hamas, homens e mulheres, e alguns dos líderes, incluindo Mahmoud Zahar, que me lembro de entrevistar em casa, ou Ismail Hanyieh. Sobretudo durante a campanha para as eleições de Janeiro de 2006, as únicas a que o Hamas concorreu, e que ganhou de forma limpa.

Sinwar não existia nesse quotidiano porque estava preso. Só foi libertado em 2011, quando eu era correspondente no Brasil, e só se tornou líder anos mais tarde. Nunca o vi, que me lembre.

Ficará para a história como o homem que infligiu a Israel o maior golpe de sempre, e não vai ser fácil substituí-lo. Não seria eu a lamentar a extinção do Hamas (ou de qualquer partido ou regime teocrático). Mas não vai acontecer. Pelo menos não tão cedo.

4. Depois de confirmar a morte de Sinwar, Israel divulgou o vídeo de um drone que supostamente filma os últimos minutos do líder do Hamas. Um homem de cara coberta está sentado no meio de um andar bombardeado, mão direita talvez amputada. Ao reparar no drone, pega num pau com a mão que sobra e atira-o contra a câmara. Não sei se é Sinwar. Mas há algo naquela imagem que é Sinwar e é o Hamas, tanto quanto o Hamas é uma ideia sem fim de resistência, enquanto estiver lá o que mantém um povo inteiro refém. Não certamente a minha ideia. Não a ideia de tantos e tantos palestinianos. Mas uma ideia verdadeira para muitos. E que muitos outros adoptaram porque mais ninguém estava lá, para lutar com eles, por eles. Infelizmente. Tal como infelizmente a defesa internacional da Palestina é reclamada por um regime tão odioso como o Irão. Não por responsabilidade dos palestinianos, mas pela derrocada moral das democracias selectivas: as nossas.  

Houve a Intifada das pedras e a Intifada das bombas suicidas, e passaram décadas. Os palestinianos perderam o passado há 76 anos, perdem o presente há 76 anos, e, mais rápido do que tínhamos visto em qualquer guerra, já perderam uma parte do futuro próximo desde 7 de Outubro. Todas aquelas crianças que continuamos a ver nos nossos telefones a serem desfeitas. E ainda assim há quem se incomode não com a continuação do holocausto, mas com o facto de se continuar a falar dele. Na verdade é simples, ou devia ser: o assunto não muda porque o assunto não mudou. E não mudará, enquanto Israel ganhar a vida à custa da morte da Palestina (ou do Líbano). E assim perder definitivamente a guerra. O futuro."


in "Público" de 19/10/2024

domingo, 20 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - [Lobisomens]

* Carlos Coutinho

  NUNCA fui muito de acreditar em lendas estapafúrdias nem de ter medo de sombras ou de pios de coruja. Vendo um filme na televisão, lembrei-me agora de uma certa noite de sábado, na barbearia do Sr. Manuel Sacristão. Teria eu uns seis anitos, quando lá fui cortar o cabelo, à luz mortiça do candeeiro a petróleo que iluminava os rostos impacientes de meia dúzia de clientes à espera de vez.

Era inverno, o chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.

Parei debaixo de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido. Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do cemitério.

Hoje sei que foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia, provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e, quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou. Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa, disse:

– Estás mais suado que o meu peito numa tarde de verão. Tens febre?

– Não. Tenho fome. Vossemecê atrasou-se muito.

Fez-se um breve silêncio e eu perguntei:

– Alguma vez viu um lobisomem, tio?

– Eu? Nunca! E tu?

– Também não, mas na barbearia só se falava nisso.

Se eu não fosse sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas, mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente da minha antiga casa.

Passados estes anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos, ‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.

Tal lenda aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.

Também Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano, durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história, mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi narrada por Pomponius Mela.

No século II a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia, que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.

Esta história também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem, permaneceriam lobos para sempre.

Os primeiros autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”

Esta metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”, atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem dúvida um infiel.”

Há também evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”

Liuprando de Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.

As obras de Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua “Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de Tilbury, ambos escritos para o público real.

Gervase revela que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase “que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).

As tradições pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na “Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.

Os Úlfhednar eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância a Wagner para as suas óperas.

As crenças escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI, Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:

“Vseslav, o príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”

“Ser um lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros casos desse tipo, no século XV.

Na “Historia de Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram punidos com chicotadas.

Também houve numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos. Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.

Um pico de atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em 1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.

Depois disso, o único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter, tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido por “uma superabundância natural de melancolia”.

Depois de 1650, a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".

A parte da Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de “lobishome”.

Isto é corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África, homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar (‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.

O vampiro também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu, particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.

Na sua obra, Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia (alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas, vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados pelos prikolitch e pelo vârcolacve):

“O primo-irmão do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch. Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a assumir, como penitência pelos seus pecados.

Numa aldeia ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo, voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três cambalhotas sobre uma vala.

"Logo depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro; mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

"Sois danado lobisomem,

Primo d’Isac nafú;

Sois por quem disse Jesus

Preza-me ter feito homem."

(Garcia de Resende, in “Excertos”)

É também mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto de Bocage:

"Profanador do Aónio santuário,

Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,

Até findar no Inferno o teu fadário!"

(Bocage, in “Obras Escolhidas”.

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

“Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in “Opúsculos”).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

Camilo escreve nos “Mistérios de Lisboa”:

“A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.”

Pronto, por hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr. Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.


2024 10 20

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sábado, 19 de outubro de 2024

Bruno Amaral de Carvalho - Beirute, capital da resistência




Bruno Amaral de Carvalho [*]
 
Uma cidade é feita de muitas contradições, das suas luzes e sombras, dos seus cheiros e sons e, sobretudo, das histórias de quem nela vive. Das costureiras aos artesãos, dos taxistas às cozinheiras. O Líbano é, hoje como no passado, um lugar assediado pelas bombas israelitas, onde mulheres e homens enfrentam a invasão com a dignidade de quem entende estar do lado certo da história. Beirute, uma vez mais, é a capital da resistência.

Esta mulher que está sentada no chão, de negro da cabeça aos pés, na marginal de Beirute, não tem praticamente nada. Não tem nome porque não se quer identificar nem que se lhe mostre o rosto. Um chapéu de sol, um colchão individual de espuma e a roupa que tem no corpo foi tudo o que conseguiu trazer na noite em que Israel começou a bombardear o seu bairro, nos subúrbios a sul de Beirute. Já passou uma semana desde que fugiu de casa com a família. A princípio, lavavam-se num dos muitos hoteis e condomínios de luxo com vista para o Mediterrâneo. Agora, nem isso podem fazer, diz, porque os proprietários se fartaram. Como esta família, há milhares de famílias por todas as partes. No areal da praia, no passeio marítimo, nos separadores e rotundas, em jardins, escolas, em varandas de casas sobrelotadas.

O governo libanês afirma que há, neste momento, um milhão de refugiados, números nunca vistos num país que já foi invadido por Israel quatro vezes, que viveu uma guerra civil e que tinha, até há bem pouco tempo, no seu território, cerca de dois milhões de refugiados palestinianos e sírios. Milhares de libaneses fogem agora para a Síria e para o Iraque. Os ricos fogem de iate para Chipre, numa prova irrefutável de que, como sempre, as tragédias são vividas de forma diferente consoante a classe social a que se pertence. Contudo, Beirute não esquece os seus e, por todo o lado, em cada esquina, é possível ver quem descarregue colchões, garrafões de água e outro tipo de víveres essenciais. E em vários pontos da cidade, organizações políticas recorrem à força para rebentar as portas fechadas de hotéis e edifícios desabitados para abrigar os refugiados, como aconteceu no bairro de Hamra, numa das primeiras madrugadas a seguir aos primeiros bombardeamentos. Num ato de revolta, gritando contra Israel, cerca de meia centena de jovens arrancaram o portão de um prédio vazio e a seguir conduziram várias famílias para o seu interior.

Dahieh, o coração da resistência

Esta mulher que está sentada no chão sem praticamente nada não é de um bairro qualquer. É de Dahieh, e Dahieh é uma espécie de nome maldito para Israel. Todas as noites, sem exceção, a população que vive no bastião do Hezbollah é castigada por apoiar a resistência. Foi aqui que no dia 27 de setembro a aviação israelita lançou 80 bombas com quase uma tonelada de explosivos sobre o quartel-general da organização xiita para matar Hassan Nasrallah e outras figuras importantes. De lágrimas nos olhos, diz ainda não acreditar que morreu. “Precisamos do Hezbollah para nos defender”. Durante quase um dia, o país parou em suspenso. Apoiantes e inimigos, todos esperavam saber da sorte de Nasrallah. Por volta das 14 horas do dia seguinte, gritos e lágrimas tomaram conta das ruas. E mulheres vestidas de negro como esta choraram a morte do seu herói.

O histórico secretário-geral do Hezbollah negociava uma trégua quando foi assassinado por Israel, o mesmo que acontecera ao líder do Hamas, Ismail Haniyeh, no Irão. Então, os Estados Unidos haviam prometido a Teerão que Telavive aceitaria o cessar-fogo se não respondesse ao atentado. Com a cumplicidade dos Estados Unidos, não só isso não aconteceu, como Israel estendeu a sua guerra ao Líbano e intensificou os ataques na Síria e no Iémen.

Caminhar pelo bairro de Dahieh é percorrer ruas completamente destruídas, ver automóveis esmagados e crateras onde antes havia prédios. É um cenário desolador. Sobre uma montanha de destroços, alguém pôs o retrato de Hassan Nasrallah. “Fuck Israel, we will win!”, gritam vários jovens quando se apercebem de que há jornalistas na zona. À Voz do Operário, um militante do Hezbollah que aceita falar sob anonimato recorda o papel do até agora líder da organização. “Era enorme. Tiveram de usar uma tonelada de explosivos para o matar. Prevaleceremos e venceremos”, afirma.

Há, neste momento, por parte de Israel, uma campanha de assassinatos de dirigentes das principais organizações da resistência libanesa e palestiniana. No bairro de Kola, em Beirute, a aviação israelita destruiu três andares de um prédio para matar três destacados militantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina, a histórica organização comunista que combate ao lado do Hamas e outras forças da resistência contra as forças de Israel em Gaza e na Cisjordânia.

A violência do ataque atirou varandas de ferro para o outro lado da rua. Ali, num descampado debaixo de um viaduto, centenas de documentos, livros e cartazes jaziam inertes como prova de fogo. Um documento de saudação à libertação de Lula da Silva da prisão, um cartaz com Fidel Castro a discursar em Havana e o retrato de Lénine eram alguns dos objetos que se podiam encontrar no local. No dia seguinte ao ataque, milhares de palestinianos e libaneses acompanharam o funeral que percorreu os vários campos de refugiados.

Israel ataca hospitais e centros de saúde

O Hospital Rafik Hariri fica ao lado do campo de refugiados palestinianos Mar Elias e demasiado perto de Dahieh. É o maior centro hospitalar de Beirute, com espaço para 550 pacientes. Todos os dias chegam aqui mulheres e homens vítimas das bombas de Israel. Neste momento, 80% da capacidade ocupada corresponde a feridos de guerra. “Até ao momento, temos reduzido ao máximo casos que podem ser adiados. Queremos todas as camas para as vítimas da guerra”, explica Jihad Sade, o diretor hospitalar, no seu gabinete. Com a experiência de quem já viveu várias invasões israelitas, descreve os trabalhadores que dirige como muito preparados para tratar o tipo de feridas mais comuns neste cenário de conflito.

Com o número de mortes provocadas por Israel desde 8 de outubro de 2023 a chegar aos 2 mil, incluindo 127 crianças, Jihad Sade diz que é imprevisível o comportamento de Telavive em relação aos equipamentos de saúde. Em Bachoura, um bairro central de Beirute, Israel atacou um centro de saúde durante a noite e matou nove profissionais de saúde. Como em Gaza, as forças israelitas não têm linhas vermelhas e ao fecho desta edição tinham morto já 73 destes trabalhadores em diferentes partes do país.

De acordo com este médico, a guerra vai acabar quando houver respeito entre todos. “Dêem direitos [aos palestinianos]. A força é temporária e o conflito não vai acabar se não respeitarem os direitos [dos palestinianos].

07/Outubro/2024

[*] Jornalista.

O original encontra-se em vozoperario.pt/jornal/2024/10/07/beirute-capital-da-resistencia/

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Carlos Matos Gomes - O julgamento de Ricardo Salgado — Big Show BES

* Carlos Matos Gomes


O julgamento de Ricardo (Espirito Santo) Salgado é um espetáculo de farsa politica com a cobertura de legalidade proporcionada pelo sistema judicial e encenado pela comunicação social.

A justiça do Estado sacode as pulgas do tapete para assegurar o regime de capitalismo de papel e especulação. Os políticos do regime fazem de macacos cegos surdos e mudos. A indústria do espetáculo aproveita o espetáculo grátis e aumenta as audiências. O povo aplaude e compra os produtos anunciados nos intervalos. No entanto está em causa o julgamento do sistema financeiro que é o fundamento do capitalismo, seja ele gerido por democracias liberais ou ditaduras. Um sistema implantado no final do século XVII pela família Rothschild.

Deixem-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importarei com quem redige as leis.

Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família

Todo aquele que controla o volume de dinheiro de qualquer país é o senhor absoluto de toda a indústria e comércio, e quando percebemos que a totalidade do sistema é facilmente controlada, de uma forma ou de outra, por um punhado de gente poderosa no topo, não precisaremos que nos expliquem como se originam os períodos de inflação e depressão.

James Garfield, presidente dos Estados Unidos, 1881(assassinado)

Por detrás deste espetáculo do julgamento de Ricardo Salgado encontra-se a relação de dupla dependência entre a política e a finança anunciada no final do século XVII por Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família que criou o sistema bancário que da Europa, através do Banco de Inglaterra, expandiu para os Estados Unidos, onde se associou à família Rockefeller e que está na base do FED, a Reserva Federal Americana. O sistema que os Espirito Santo e os outros banqueiros utilizaram e utilizam para obter lucros assenta no que pomposamente se designa por fractional reserve lending, (FRL) ou “empréstimo baseado numa reserva fracionada”, ou “empréstimo sem cobertura ou base real”. Embora de enunciado complexo, a prática é muito simples;significa emprestar mais dinheiro do que está em caixa e transformou-se na maior fraude legal de todos os tempos.

O sistema bancário de reserva fracionada é o que vigora em todos os países do mundo, no qual os bancos que recebem depósitos do público mantêm apenas parte de seus passivos de depósito em ativos líquidos como reserva, geralmente emprestando o restante aos tomadores. As reservas bancárias são mantidas como dinheiro no banco, ou como saldos na conta do banco no banco central.

A família Espirito Santo foi a que primeiro e mais intensamente interpretou estes princípios em Portugal e os impôs ao poder político, desde o fundador da família ter evoluído de dono de uma casa de câmbios até os seus filhos surgirem como os banqueiros do regime de Salazar e desempenharem um papel político de primeira grandeza no Portugal do Estado Novo durante o período crucial da Segunda Guerra Mundial, colaborando na manutenção do difícil equilíbrio entre os aliados ingleses e a Alemanha nazi.

Os Espirito Santo, a quem a imprensa da época chamava “os Rockefeller de Portugal”, ofereceram refúgio às realezas fugidas da guerra, entre eles os condes de Paris, com os seus dez filhos, os condes de Barcelona, o rei Humberto de Itália, e o mais significativo de todos, o Duque de Windsor que acabara de abdicar do trono em Inglaterra, apesar de essa presença ser delicada para o regime de Salazar por prejudicar a sua pretensa neutralidade e de também não ser do agrado Churchill dadas as simpatias pro germânicas do duque ex.rei.

Ricardo Espirito Santo, o herdeiro do fundador, culto e muito amigo de artistas, tinha as costas quentes, era casado Maria Pinto de Morais Sarmento y Cohen, filha de un banqueiro de Gibraltar, Abraham Cohen, britânico de origem judaica, e sobrinha do barão de Sendal e através deste casamento os Espirito Santo conheceram e fizeram amizade com toda a realeza exiliada em Cascais e com as suas redes de influência.

O Banco Espirito Santo era, de todos os bancos portugueses, o mais internacionalizado e o que tinha mais fortes ligações ao Estado. A sua nacionalização em 1975 não quebrou a influência da família na política portuguesa, nem quebrou a ligação da família ao mundo da grande banca internacional. Pertenci à Assembleia do MFA do dia 11 de março de 1975 que aprovou a nacionalização da banca. Consciente da importância da banca na definição do poder político. Sofri as consequências dessa opção no 25 de Novembro de 25 de 1975, assumindo-as como naturais da parte dos que optaram pelo regime de “mercado” e pelos seus financiadores.

O 25 de Novembro de 1975 e o seu programa de integração de Portugal na ordem política e económica vigente na Europa Ocidental, implicava as privatizações indispensáveis à recuperação do poder das velhas oligarquias e da ascensão das novas, exigia a criação de novos bancos, caso do BCP e do BPI e aconselhava o regresso da marca mais prestigiada internacionalmente, a que garantia a credibilidade do novo regime. Mário Soares percebeu a importância do regresso de um nome tão prestigiado e com tão boas relações no mundo da finança internacional e promoveu o regresso da família Espirito Santo a Portugal, o que foi conseguido através dos bons ofícios de Francois Miterrand com a associação ao Crédit Agricole.

Há razões nunca explicadas por detrás da “resolução do BES” e as principais não são aquelas que se encontram no julgamento espetáculo. Com todo o respeito pelos lesados do BES, que viram sumir as suas economias e exprimem o seu protesto contra a figura de Ricardo Salgado, há que explicar se foi o Estado Português que propôs a resolução do BES à Comissão Europeia, ou se foi dela a imposição dessa medida jamais utilizada. Não havia alternativa? Não havia o exemplo do Lehman Brothers, da seguradora AIG, não foi encontrada recentemente uma outra solução para a União dos Bancos Suíços?

O BES era o único banco privado com “nacionalidade portuguesa”, embora associado ao Crédit Agricole francês. Todos os outros bancos que resultaram da reprivatização tinham passado para o controlo da banca espanhola, de capitais ingleses, americanos, alemães. Todo o sistema bancário português tem a sede em Espanha, em Madrid ou Barcelona. O sistema bancário português está hoje integrado no sistema mundial através de Espanha, o chamado “mercado ibérico”.

O BES tinha, por tradição, o papel de banco do regime, fora o banco que assegurou a transferência do ouro alemão que pagou o tungsténio, o volfrâmio, durante a Segunda Guerra, por exemplo. Nos anos anteriores à resolução era o BES que estava a financiar a implantação de grandes companhias portuguesas no Brasil e em Angola, dois mercados emergentes e muito cobiçados pela finança internacional, em particular a inglesa e a francesa. Era o BES que financiava a implantação da TELECOM no Brasil, uma ação importante de presença num grande mercado em expansão no continente sul-americano, e era o BES que estava a financiar através de uma filial, o BESA, o apoio a empresas portuguesas no mercado de Angola, outro espaço cobiçado pela banca internacional.

O BES intervinha na diversificação dos mercados de grandes empresas portuguesas em mercados importantes em concorrência com os grandes bancos europeus que têm, como é evidente, um peso de lobbying incomparavelmente superior junto de Bruxelas e dos seus financeiros. Era um concorrente a eliminar e assim foi.

Todo o negócio bancário se baseia na usura, toda a utilização do capital para obter lucro é abusiva, isto porque o lucro é obtido com a venda de um produto que não tem base material, que existe apenas porque as autoridades de um dado estado garantem que o banqueiro, o moneychanger, é de confiança e honrará o compromisso de pagar os juros aos depositantes.

O BES sob a administração de Ricardo Salgado vendeu mais dinheiro do que aquele que podia remunerar aos juros acordados. E fê-lo coberto pela reputação de confiança que lhe era e foi publicamente demonstrada pelas mais altas figuras do Estado, o presidente da República, Cavaco Silva, tido por eminente professor de Finanças, pelo primeiro-ministro Passos Coelho, pela ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, recentemente nomeada pelo atual governo comissária europeia, pelo governador do Banco de Portugal, a entidade reguladora, Carlos Costa, pelos mais conceituados comentadores políticos com acesso aos mais poderosos meios de comunicação, caso de Marcelo Rebelo de Sousa. Todos serviram de fiadores de Ricardo Salgado! Todos e todos os ministros que assinaram a ata do Conselho de Ministros que decretou a “resolução” do BES deviam responder em tribunal e serem corresponsabilizados pelos prejuízos.

O BES foi também a instituição escolhida pelo ministério da Defesa dirigido por Paulo Portas para conduzir as operações financeira de leasing que esteve e está na base do fornecimento dos helicópteros EH 101 e dos submarinos da classe Tridente, que pertencem formalmente a uma empresa e não ao Estado Português. Um banco da maior confiança do Estado e dos seus governos, de que nenhum agente político desconfiou, antes pelo contrário afiançou.

O que aconteceu ao BES, ou no BES, foi, em termos simples um excesso do abuso de confiança dentro de um sistema, o bancário, que assenta num contínuo abuso da confiança instituído pelos Estados que obrigam os cidadãos a confiar nos usurários (os banksters) para terem acesso aos bens essenciais, desde a habitação ao transporte, à alimentação, à educação, ao lazer. Quem estabelece o valor dos bens são, em última instância, os banqueiros que em Washington e na Wall Street de Nova Iorque impõem o valor do dólar como moeda de troca universal. São eles que estabelecem a inflação que gera lucros aos banqueiros e prejuízos aos clientes. São eles que desencadeiam crises e guerras para manipular o valor do dinheiro.

Agora, no Big Show BES, tudo se vai resumir a artigos dos vários códigos diante de um tribunal que interpretará factos contabilísticos, considerando-os crime ou não à luz dos seus preceitos, quando a questão era e é de política e os políticos estão todos eles a fazerem-se de mortos. Ou praticaram o rito judaico do Kaparot, realizado nas vésperas do Yom Kippur, uma expiação simbólica dos pecados, em que milhares de galos e galinhas são degolados em Israel e o sangue derramado pelas cabeças. Um ritual de arrependimento e perdão.

Numa entrevista ao Público, Vitor Bento, o administrador do BES na data da sua resolução e é hoje o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, garante que o que aconteceu ao BES não aconteceria hoje e que o sistema bancário português está mais controlado e merece confiança. É uma afirmação paliativa, como garantir que não vai ocorrer um terramoto.

O sistema financeiro mundial baseado no dólar está em equilíbrio periclitante. As guerras na Ucrânia e no Médio Oriente têm como causa a manutenção do dólar enquanto moeda de troca universal, o que implica força para o impor e é essa força que está a ser desafiada nessas guerras e é do resultado delas que depende a solidez do sistema bancário da área do dólar, que está a sofrer a concorrência das moedas dos BRICS.

O julgamento de Ricardo Salgado conduz à triste conclusão de que no capitalismo os cofres dos bancos contêm papel que tem o valor que a Reserva Federal dos Estados Unidos lhe atribuir e que os Estados nacionais atestam com a assinatura do governador do banco nacional. Nenhum cidadão sabe o que significam os algarismos do seu extrato bancário.

Alguém decidiu que as “obrigações” emitidas pelo BES eram papel sem valor e eram, mas resta a pergunta, porque elas, porque aquelas? Porque ninguém do BCE em Franckfurt ao Banco de Portugal em Lisboa viu o que se estava a passar no BES? Essas perguntas jamais serão colocadas em tribunal.

O espetáculo no Campo da Justiça, centrado na figura de um vencido que gera sentimentos de vingança a vários níveis, a do poderoso arrastado para o cadafalso, também esconde a vileza das ratazanas políticas que continuam a representar o seu número de macacos cegos, surdos e mudos. 

Já agora, não há lesados no caso BPN, dos amigos de Cavaco Silva, nem do BANIF da Madeira.

2024 10 17

https://cmatosgomes46.medium.com/o-julgamento-de-ricardo-salgado-big-show-bes-7861cc357d4f

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Miguel Esteves Cardoso - Ler às pilhas é o melhor

* Miguel Esteves Cardoso

Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de 8 livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo.

16 de Outubro de 2024

Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval, enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.

Imagino-me no buraco, em cima de uma cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção


É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.


Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos, sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.

 
Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.


Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá – sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados, para não serem contaminadas pelo chão.

Na leitura – se é que quer mesmo competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se encontra o raio do livro e é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de busca nas mãos vazias.

O ser humano lida bem com o número oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os apetecimentos mais frequentes.

Depois, há a disposição das pilhas: a pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser reavaliada, para ver quem merece lá ficar.


Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa. Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que mais vezes irá pegar.

Claro que as pilhas são temporárias. São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.

Colunista

https://www.publico.pt/2024/10/16/opiniao