terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Carlos Coutinho - Literatura(s)

* Carlos Coutinho
 
NUM domingo gélido como o de ontem, é verdadeiramente insensato sair da cama a meio da manhã, mas eu saí. Já muito perto do meio-dia, com sol a rodos e um ventinho maligno a afagar os ramos trémulos das árvores por baixo da minha janela, fui comprar o jornal e, a seguir, já com um bom café engolido, lembrei-me daquela hora antiga em que irrompi pela leitura intercalada das “Confissões” do bispo de Hipona e de “O Sorriso aos Pés da Escada”, de Henry Miller, que tinha levado comigo, para apurar certas diferenças.

   Recordo-me da alegria que senti,  ao percorrer os pecados de Santo Agostinho, nascido em 430 d.n.e., alternados com capítulos enternecedores do malandreco Miller que foi parido em Brooklyn, nos Estados Unidos, a 26 de dezembro de 1891, e, em 1930, respondendo a um espírito aventureiro e ao desejo de se dedicar à escrita, partiu para a Europa e se fixou em Paris. Foi aí, na exaltada e exaltante capital gaulesa, que, em 1934, publicou o seu primeiro romance autobiográfico,  o "Trópico de Câncer", a que se seguiu, em 1939, o "Trópico de Capricórnio", ambos banidos durante quase três décadas nos EUA. 

    Enquanto o bispo se deleita na revisitação das suas horas de fulgor mental e luxúria vivida milímetro a milímetro, Miller, em 1942, pouco após se instalar definitivamente na Califórnia, iniciou a escrita da trilogia 'Rosa-Crucificação' - “Sexus”, “Plexus”, “Nexus” - considerada uma das suas obras maiores, onde conjuga reflexão metafísica com um erotismo explícito que, traduzido para português, nem sempre se mastiga bem. 

   Foi, como é bem sabido, um dos mais extraordinários autores americanos do século XX, cuja insubmissão, quer na vida, quer na literatura, viria a influenciar fortemente a chamada 'beat generation'. Faleceu em casa a 7 de junho de 1980 e eu, desta deriva, recordo a minha juventude e o olhar avisado do meu pai, que preferia Camilo, e, perdendo o controlo da memória, desenterro a minha primeira abordagem às suas “Novelas do Minho” e ao romance de Aquilino “Quando os Lobos Uivam” .

   Na “Maria Moisés” o suicida de S. Miguel de Seide põe “o pequeno pegureiro a contar as cabras à porta do curral; e, dando pela falta de uma, desatou a chorar com a maior boca e bulha que podia fazer. Era noite fechada. Tinha medo de voltar ao monte, porque se afirmava que a alma do defunto capitão¬mor andava penando na Agra da Cruz, onde aparecera o cadáver de um estudante de Coimbra, muitos anos antes. O povo atribuia aquela morte ao capitão-mor de Santo Aleixo de além-Támega, por vingança de ciúmes, e propalava que a alma do homicida, de fraldas brancas e roçagantes, infestava aquelas serras. O moleiro das Poldras contrariava a opinião pública, asseverando que a aventesma não era alma, nem a tinha, porque era a égua branca do vigário. A maioria, porém, pôs em evidência o facto psicológico, divulgando que o moleiro era homem de maus costumes, tinha sido soldado na guerra do Rossilhão, não se desobrigava anualmente no rol da igreja, nem constava que tivesse matado algum francês”. 

   E também me saltou na memória a lacrimosa Mariana do “Amor de Perdição”, talvez porque da Antena 2 brotavam as notas doridíssimas do “Stabat Mater”, de Gioachino Rossini, exprimindo a dor daquela senhora excelsa que, em pé e de mãos enclavinhadas no peito,  era a mãe do sacrificado, a “mãe dolorosa, junto da cruz, lacrimosa, donde pendia o filho” (Stabat mater dolorosa, iuxta crucem lacrimosa, dum pendebat filius.)

   Foi para me salvar deste sufoco que a minha memória me fez imaginar “O Malhadinhas”, do beirão de Sernancelhe que, em forma de monólogo, nos conta a história de um almocreve, o ardiloso e jocoso Malhadinhas, que é um serrano rústico, grosseiro, matreiro e não tem quaisquer problemas em usar a “faquinha” que traz à cintura para corrigir o que entende por injusto.

   Foi, aliás, tendo em conta inúmeros casos de manha e crueldade que conhecia, típicas dos britânicos seus patrícios, que o filósofo John Lock, tido ainda hoje como o “pai do liberalismo”, já dizia no século XVII: “Sempre considerei as ações dos homens as melhores intérpretes dos seus pensamentos.”

2024 12 16

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