domingo, 15 de dezembro de 2024

Rui Pereira - “ELES”



* Rui Pereira

O congresso do PCP não foi suficientemente interessante para que as televisões lhe dedicassem as extensas programações especiais que dedicam aos congressos de outros partidos. Nos canais privados, esse interesse nem mesmo existiu. Um ou outro apontamento noticioso, algum comentário de mau fígado e o vaticínio final: "Estão a desaparecer!" Quem? “Eles!”. “Eles” foi o pronome pessoal com que muitas vozes jornalísticas, comentatoriais e/ou a versão anfíbia de ambas, trataram os sujeitos do acontecimento que cobriam e comentavam, quando o faziam. “Eles” não define exactamente nem os comunistas, nem  o Partido Comunista, o PC,  o PCP por ordem decrescente da frequência com que foram usados os diferentes vocábulos. Não, este “Eles” define-nos a nós. A um "Nós" outros, estabelece uma alteridade insanável em relação aos “Nós” todos quantos, mais diferentes ou mais parecidos entre si, têm em comum uma identidade que definimos como "nossa". “Eles” não. “Eles” são outrem, são estranhos não-comungantes do "Nós" pelo qual nos afirmamos. 

O tratamento mais usual pelo jornalismo e pelo comentariato nas coberturas destes congressos partidários é a designação pelo nome do partido (o PS, o PSD, o Chega, a Iniciativa Liberal…).  Para todos estes, não há um “Eles”, porque eles somos nós.

A mesmidade de tal trato, quando reversa, induz de contrabando, implicitamente, no assunto a tratar, uma distância percebida, desenha uma fronteira intransponível para quem assiste ao tratamento do assunto, mais do que ao assunto (porque, esse, só nas ligações em direto da RTP 3 se ia deixando ver, ainda assim sob o filtro imperativo de “declínio”, da “degradação”, do “óbito”, mesmo que para referir como “Eles” o não reconhecem e acham “manifestamente exagerada” a respetiva certidão).

Todavia, numa destas curtas emissões, um antigo secretário-geral, Carlos Carvalhas, tentou explicar que numa sociedade em que a participação política da maioria das pessoas se restringe ao ato eleitoral, os media têm uma importância drástica, dado que só por intermédio destes é possível chegar às populações. Ora, se os media quando se dignam falar do PCP, o fazem sob o signo de um “Eles” cauterizado, excluído do tempo e do espaço comuns, anacrónico, vazio e decrépito, é natural que as causas dos problemas (políticos, mais do que comunicacionais) da estigmatização estejam menos nos estigmatizados do que nos estigmatizadores. 

Por outras palavras, o facto de a pergunta sobre o fogo partir do próprio incendiário não lhe retira nem esse estatuto nem a respetiva responsabilidade.  

A cobertura deste Congresso “deles”, comunistas, feita por “nós”, media, fornece um eloquente modelo de democracia política, jornalística e ideológica, que dispensa o cronómetro para saber quantas horas e dias de vantagem leva a cobertura do “Nós” por sobre a cobertura do “Eles”.

Tudo isto faz parte da luta política, cultural, ideológica... Mas. pergunta especialmente para jornalistas,  deveria fazer parte da atividade jornalística?

PS 1: Convidado para observar os trabalhos do Congresso, por motivos profissionais não pude assistir. Limito-me a falar, pois, daquilo a que assisti.

PS2: Há uma ressalva. A análise de Raquel Varela na sexta-feira às 21H00 na RTP 3, controversa, é interessante e discute o assunto.

2024 12 15
https://www.facebook.com/ruiampereira/posts

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