Nasci sem telemóveis sequer no horizonte da imaginação e também lá passo mais tempo do que o saudável
Somos um planeta inteiro de turistas japoneses. Lembram-se, certamente, há muitos anos, quando só se conseguiam fotografias com máquinas para o efeito. Eram caras e conferiam estatuto. Os pais aprendiam a fotografar o melhor que conseguissem, a fim de registar a evolução da família, com as férias em lugar especial. Era preciso saber focar, ajustar a luminosidade, ter intuição, olho e velocidade para apanhar o instantâneo dentro de um movimento. Fotografava-se com fé. A cruzar os dedos, na esperança de que tivesse ficado bem, o que só se saberia semanas depois, após a revelação em casa da especialidade.
Uma boa câmara fotográfica pendurada ao pescoço provocava curiosidade e alguma inveja. Depois vieram os japoneses e democratizaram. Nasceram marcas mais acessíveis ao bolso e à aselhice. Claro que não só de um mesmo país. Lá dos orientes. A expressão turistas japoneses era um óbvio lato sensu. Designava os que apareciam pela Europa a disparar a tudo o que mexia ou imóvel permanecia há séculos. Eram molhos de turistas em frente aos históricos monumentos, a carregar nos gatilhos sem cessar. Comentávamos duas coisas, se bem se recordam. Que iam de certeza ficar com uma tralha enorme de fotografias iguais. E, acima de tudo, que pareciam mais interessados em gravar o momento do que em vivê-lo. Adiavam para o diferido. Veriam depois, quando regressassem a casa.
Algumas décadas passadas, somos todos esse turista. Já nem vou à declaração que se tornou, ela própria, um cliché: hoje está toda a gente agarrada ao telemóvel, a toda a hora. E sim, está. Deixou de ser indicativo de juventude, de modernidade, de nova geração para novos tempos. Nasci sem telemóveis sequer no horizonte da imaginação e também lá passo mais tempo do que o saudável. Tal como o meu pai. Como certamente o meu avô, se ainda andasse por cá. É uma máquina maravilhosa, pelas possibilidades cada vez mais infinitas. Cliché número dois: é o mundo na palma da mão. O que me preocupa é o hipnótico. Talvez seja coisa minha, pois que tenho sérios problemas com a sensação de falta de controlo. Não gosto de me meter num carro que não serei eu a conduzir. Tal como sempre foi o único real desconforto com os aviões.
O concerto importa-me pouco, importa-me que o concerto contou com a minha presença, e tenho aqui horas infindas de provas para exibir
Aflige-me o que não depende de mim. Por isso refiro a palavra hipnose. Há toda uma biblioteca de Alexandria com relatos de assombrosas sessões em que pacientes com traumas fundos resolvem muito assunto da cabeça e coração com uma boa hora em que foram conduzidos por um doutor que hipnotiza. Não é para mim. Não, não é por receio de deixar sair muitos segredos. Não tenho muitos, muito menos dos interessantes. É mesmo porque não acredito. E julgo saber que a hipnose tem de encontrar um mínimo de recetividade. Salvam-se, espera-se, as boas intenções terapêuticas, mas ninguém pode negar que há um manobrador e um manobrado.
É aqui, nesta curva, nesta intersecção, que coloco o telemóvel, ou as tecnologias, por atacado. Espero conseguir sempre perceber o ponto, a linha perigosa em que deixo de retirar da máquina o que me interessou para permitir-lhe que seja ela a retirar-me comando, ou mesmo vontade. Quando a máquina, depois de anos a aprender as minhas buscas, me começa a alimentar à boca saborosas coincidências. Turistas japoneses? Gente que nos espantava porque só parecia interessada em ver o mundo num ecrã? Que grava em vez de viver? Por favor. Hoje é autorretrato da Humanidade inteira. Vejam qualquer imagem do público que enche pavilhões ou estádios em concertos. Um mar de luzinhas. Em permanência. Poucos olham para o palco com os olhos de ver, olhos para absorver, para transformar mais tarde numa memória gratificante, daquelas que com o tempo se modificam, como as nuvens arrastadas pelos ventos lá em cima. E como essa sucessão de incertezas sobre o que vivemos afinal nos dava espaço para construir, moldar, remendar sentimentos. Já ninguém quer isso. Não vão aos concertos para sentir ou viver, ou para experimentar estados de alma. O estado de alma limita-se à frieza de um profissional de TV em serviço. Música após música, escolhem o filtro, a cor, as legendas sim ou não. Estão a realizar um filme que não veem. Nem no momento, nem depois. Ou alguém me quer convencer que estas filmagens infindas de concertos serão depois apreciadas com muita calma em casa? Serão esquartejadas em clips, stories, reels, fotos com efeitos, cuja finalidade (que começou logo na compra do bilhete) é dizer aos companheiros da rede social: eu estive aqui, eu estive lá. O concerto importa-me pouco, importa-me que o concerto contou com a minha presença, e tenho aqui horas infindas de provas para exibir. Também tenho centenas de fotos de pequenos-almoços de hotel. Não me lembro bem o que comi ou se me soube bem. Mas aqui está a prova. Nunca saímos do quadro de Magritte — isto não é um cachimbo. As pessoas sorriam, que parvoíce, é perfeitamente um cachimbo. Não era. Era a pintura de um cachimbo.
Expresso SEMANÁRIO#2720 - 13/12/24
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