* Alfredo Barroso
(que se limitou a actualizar de 140 para 160 anos a 1ª linha do texto publicado originalmente no 'Expresso' há 20 anos*)
Há 160 anos, em Setembro de 1864, no decurso da Guerra da Secessão americana (ou «Civil War», se preferirem), o general «nortista» William Sherman (que deu o nome a carros de combate) conquistou a cidade de Atlanta e mandou incendiá-la. Tal como faria em Savannah, no final de 1864, depois de ter devastado a Geórgia. Mas o incêndio de Atlanta é o mais conhecido e popular, por ter sido reconstituído em uma cena aterradora do filme «E Tudo o Vento Levou».
A Guerra da Secessão americana (1861-1865), uma das mais brutais de todos os tempos, custou para cima de um milhão de mortos, embora só se saiba, com precisão, quantos militares morreram de ambos os lados. Ao todo, 617 mil mortos (359 mil entre os «nortistas» vitoriosos; 258 mil entre os «sulistas» derrotados). Quanto a vítimas civis, não é apresentado um número exacto, mas todos os especialistas concordam em apontar para «centenas de milhares» de mortos e feridos.
O mesmo se passa em relação ao genocídio dos índios americanos [os ameríndios], que começou ainda antes da Guerra Civil e atingiria o auge bastante depois, em Dezembro de 1890, com o célebre «massacre de Wounded Knee», onde os soldados do famoso «7º de Cavalaria» se vingaram da derrota que os Sioux (chefiados por Crazy Horse e Sitting Bull) tinham infligido ao regimento (então comandado pelo general Custer) em Little Big Horn, no Verão de 1876. Além de ser um «castigo», a chacina dos amerindios foi um genocídio institucional (uma «sanção política do conquistador») e utilitário (uma «exploração da conquista colonial») no contexto da corrida para conquistar o Oeste («Go West»), apresentada, paradoxalmente, como um exemplo da «modernidade». Assim se consolidou, no século XIX («A Century of Dishonor», como escreveu Helen Hunt Jackson, em 1881), o país que hoje se considera «farol» da «civilização ocidental» e «campeão» da liberdade contra a «barbárie».
Mas seria durante todo o século XX - «A Era dos Extremos», como lhe chamou Eric Hobsbawm - que a «civilização ocidental» revelaria toda a sua capacidade para praticar genocídios, crimes de guerra, massacres e carnificinas. Em suma: destruição e morte a uma escala nunca antes imaginada. Hitler - com o genocídio de judeus (holocausto), ciganos e opositores - e Estaline - com o genocídio pela fome na Ucrânia e com o Arquipélago do Gulag (entre o Estreito de Behring e o Mar Negro, atravessando as regiões mais inóspitas da Sibéria) - assassinaram milhões de seres humanos, em nome da «civilização», do «homem novo» e da «modernidade». Um e outro ocupam, indiscutivelmente, lugares no topo da escala do «terror».
Mas aparecem depois, a uma distância que não é assim tão grande quanto se julga, os «Aliados», sobretudo os EUA e a Grã-Bretanha, com os «crimes de guerra» que cometeram, quer na na Alemanha equer no Japão, durante a II Guerra Mundial. As duas bombas atómicas largadas pelos bombardeiros americanos B-29 «Enola Gay» e «Great Artist» (que belos nomes!) sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e em 9 de Agosto de 1945, mataram, imediatamente e a curto prazo, mais de 200 mil civis. Isto é, mais do dobro dos civis chacinados pelos 279 bombardeiros americanos que arrasaram Tóquio no dia 19 de Março de 1945. Mas estas carnificinas não constituíram excepções. Durante cinco anos, mais de mil cidades, vilas e aldeias alemãs foram alvos de bombardeamentos brutais e constantes. Milhares de toneladas de bombas explosivas e incendiárias atingiram 30 milhões de civis - sobretudo velhos, mulheres e crianças- matando mais de um milhão, numa série de ataques planeados e executados com minúcia, e de forma sistemática, por «peritos» norte-americanos e britânicos. O objectivo foi o de causar a maior devastação possível, provocando o terror entre a população civil. As bombas foram especialmente aperfeiçoadas para atear incêndios e matar civis, não só pelo impacto, mas também pelo calor asfixiante, pela compressão do ar e pelos gases tóxicos.
É isto que o historiador berlinense Jörg Friederich descreve, num livro aterrador, intitulado «O Incêndio, a Alemanha sob as bombas, 1940-1945». Autor insuspeito, também se distinguiu a investigar os crimes de guerra nazis e foi colaborador da «Enciclopédia do Holocausto». Em complemento, vale a pena ler o ensaio do escritor alemão W.G. Sebald «Sobre a História Natural da Destruição», em que o autor reflecte sobre a tragédia alemã, concluindo que, nem por ter sido merecido, o castigo infligido à Alemanha foi menos brutal. A decisão de incendiar cidades alemãs, reduzindo-as a cinzas, provocando o que tecnicamente se chama «tempestade de fogo», leva-nos a concluir que «todos perderam a razão, porque o indivíduo desapareceu sob o horror em massa». A tecnologia foi posta ao serviço do terror com uma precisão implacável.
Sobre as origens desse terror e sua actualidade neste «mundo globalizado», de cuja «modernidade» o «Ocidente» tanto se orgulha, convém ler o livro de John Gray, «A Al-Qaeda e o significado de ser moderno», já publicado em Portugal. Chega-se à conclusão de que não foram os «ocidentais» a aprender os métodos de terror com os «bárbaros». É bem mais provável que tenham sido os «bárbaros» a aprender a praticar o «terror» com os «ocidentais». O pretenso «choque de civilizações» só serve para alimentar «guerras santas» e «vinganças de Deus». Noutro ensaio notável, «A Fractura Imaginária», sobre «as falsas raízes do confronto entre Oriente e Ocidente», o libanês Georges Corm critica o «discurso narcisista do Ocidente», que se fecha sobre si próprio e que faz da pretensa «excepcionalidade ocidental» um absoluto, condenando os outros à «barbárie». Como se vivêssemos num mundo maniqueu, dividido entre o Céu e o Inferno, entre o Bem e o Mal, entre um Ocidente exemplar - «racional, laico, técnico, materialista e democrático» - e um Oriente abominável - «místico, irracional e violento». São mitos perigosos.
É essa «fractura imaginária» - já denunciada por Edward Said no seu magnífico ensaio sobre o «Orientalismo» (só agora publicado em Portugal) - que é preciso refutar. Porque é ao abrigo de tais mitos que florescem os apelos ao autoritarismo e se invoca o terrorismo como pretexto para limitar as liberdades e condicionar a democracia. Não é com «democracias musculadas» e «guerras preventivas» baseadas em mentiras que se combate o terrorismo. Com as «bombas inteligentes» só se ateiam mais incêndios!
(*) O texto original foi publicado no 'Expresso" de 18/Setembro/2004
2024 12 26
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