segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Carlos Coutinho - Vasco da Gama


* Carlos Coutinho
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MORREU para uns e nasceu para outros – é o mínimo que se pode dizer do passamento de Vasco da Gama, em Cochim, na noite de 25.1.1524, dando a oportunidade a Yechua, também conhecido por Jesus que tinha nascido no mesmo dia, mas um mês e 1524 anos antes, para justificar as grandes comezainas que os cristãos passaram a fazer pelo mundo fora na noite que chamam de Consoada.

Morreu o navegador alentejano, concluída que fora a sua terceira viagem à Índia, cumprindo a rota marítima que abrira em 1498,  por encomenda régia. Tinha ele 58 anos e o rei D. João III  já o tinha nomeado vice-rei da Índia.

Para sabermos de certeza certa do que estamos a falar, o melhor é socorrermo-nos da síntese elaborada por Francisco Bettencourt, que recorda uma primeira viagem do Gama, escassa de rendimento, mas abundante em revezes e desfeitas do samorim de Calicute, e, depois, uma segunda, em 1602, mais bem preparada e, para nossa eterna vergonha, recheada de crueldade e forjadora do terror que ainda tentamos não recordar.

Fora, entretanto, criada uma feitoria na Ilha de Moçambique, estabelecida a ligação com Sofala e imposto o tributo de Quiloa. Na costa da Índia, a política de vingança contra o samorim levou a um ato de inaudita barbaridade contra um navio de mercadores daquela cidade que regressava de uma peregrinação a Meca. 

O Gama ordenou que fosse pilhado e queimado, com as pessoas a bordo, tendo as crianças sido raptadas para virem a ser cristianizadas. Dado que o samorim não vergou, muitas dezenas de pescadores locais foram sequestrados, enforcados e pendurados nos mastros dos navios portugueses, coisa que Luís de Camões optou por ignorar na sua epopeia, mas que deixou naquelas terras a má fama de um chefe de piratas apelidado Gama, que era português e cristão, como os cruzados de antigamente que até a antropofagia em certa altura praticaram. 

A terceira viagem do monstruoso Gama, empreendida supostamente para debelar a crise deixada pelo governador que nunca chegou ser vice-rei, Duarte de Meneses, não deixou recordações especiais, já que o navegador sineense, com a patente de almirante,  contraíra a malária lá pelo multicultural Industão e acabou por falecer muito zangado também com a justiça divina.

Os seus ossos, se ainda não se desintegraram, estão num riquíssimo túmulo, em Lisboa, no panteão inigualável dos Jerónimos, na vizinhança do de Camões que, com idêntica pompa, não passa de um cenotáfio vazio de estrofes e de estâncias decassilábicas. 

A memória de Vasco da Gama na então Índia Portuguesa foi dilacerada por querelas de fação entre os seus descendentes e os de Afonso de Albuquerque, o conquistador de Goa, Malaca e Ormuz, os três nós do comércio luso no Oriente. Foi Francisco da Gama, vice-rei da índia de 1597 a 1601, quem ordenou a criação de uma estátua ao seu bisavô no Cais da Ribeira, monumento que foi vandalizado por gente afeta aos Albuquerques e a outro vice-rei, um tal Aires de Saldanha. 

Reapareceu já no século XIX a imagem do mitificado Gama, agora no Arco da Rua Augusta, acompanhada pelas de Viriato, Nuno Álvares Pereira e Marquês de Pombal, com o mulherengo D. José em frente, de costas para o Paço e com o Cais das Colunas a servir de miradouro para ver Cacilhas, muitos navios de travessia e quase tudo o que rodeia o Mar da Palha. 

Foi Veloso Salgado, um pintor naturalista nortenho, quem pintou este retrato, mostrando um elegante siniense que, além de Vasco, também era Gama, como  pai que pertencia à Ordem de Santiago, sendo detentor da respetiva comenda e exercendo os cargos de alcaide-mor e capitão da vila de Sines.

2024 12 23
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