* José Gabriel
Quando eu era garoto, não se falava no Pai Natal nem outras figuras da mitologia comercial do Natal – sim, eu sei da lenda do bondoso e generoso Nicolau de Mira, ou S. Nicolau, curiosamente padroeiro da Rússia, mas essa figura e seus méritos foi apagada da História pelo gorducho vestido pela Coca-Cola. Tudo andava em volta do Menino Jesus, da sua mitologia popular e do presépio que, lá em casa, era levado muito a sério, como obra de arte e engenharia, com uma estrutura de base em cortiça virgem, todos os competentes figurantes e mais alguns que a nossa imaginação criasse. A cena ia muito para lá da gruta de Belém e das figuras sagradas. Havia personagens – humanos e animais – de toda a espécie, eram representadas profissões, atividades mais próximas da nossa realidade popular que dos lugares longínquos onde teriam ocorrido os eventos essenciais do Natal.
Os meus avós encarregavam-se das lendas e mitos, dos cânticos – nada das americanices de agora, cânticos do povo, “acordai ó homens todos/acordai mulheres também/venham ver Jesus menino/no presépio em Belém” –, da explicação de que era o menino Jesus que nos proporcionava todos os presentes que recebêssemos. Quando, mais espigadotes, nos surgiram dúvidas sobre a origem das prendas, foram eles que justificaram o embuste garantido que se devia ao menino Jesus o facto de os nossos pais terem recursos para nos poder oferecer tudo aquilo. E nós participávamos naquela cena, nas suas histórias, nos cânticos, sem pensar muito no facto de, lá em casa, ninguém, excepto os avós, ser dado à religião e – o que me motivou as minhas primeiras dúvidas…teológicas – ser pouco compreensível que alguns dos nossos amiguinhos e vizinhos não tivessem prendas, nem sequer um par de sapatos, posto que alguns andavam descalços.
E havia os detalhes. E, até, a discriminação animal, que decorria dos papéis atribuídos à vaquinha – tinha direito a diminutivo carinhoso – e ao burro. Uma, aquecia o menino com o seu bafo. O outro, comia a palha da manjedoura sem respeito pelo seu santo ocupante. Quando hoje vemos o interesse e cuidados dedicados aos burricos e à sobrevivência da espécie – ao ponto de até já concorrem com os gatos nos vídeos das redes sociais – justo é considerar que há uma merecida recuperação dos jumentos, nossos velhos companheiros dos trabalhos e dos dias.
A mitologia do Natal era, pois, marcada pela tradição popular, pelas memórias dos mais velhos, depositários das memórias dos povos. Claro que poderíamos fazer aqui uma incursão sobre o facto de muitas divindades de muitas culturas comemorarem o seu aniversário nesta data, de ser o tempo do solstício de Inverno, ou falar da proximidade de atributos de divindades do Médio Oriente com as das figuras centrais do presépio – Maria e Jesus.
Que a pomba da paz sobrevoe o coração dos belicistas
Mas não é hora de tergiversar. É hora de enviar um abraço aos nossos amigos, desejar-lhes um feliz Natal e um novo ano de paz e felicidade. Porque, seja qual for a razão, a hora é sempre boa para festejar a vida, a paz, o encontro com os outros. Os homens de boa vontade de que falavam os meus avós e as histórias de Natal.
in Facebook, 18/12/2024
https://estatuadesal.com/2024/12/25/os-natais-de-boa-memoria/
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