Aguarelas de Cesário Verde
Maria Paula Lamas
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Ao examinar detalhadamente tudo o que o rodeia , Cesário Verde transmite diversas sensações por ele experimentadas, dando relevo aos cinco sentidos , pois tal como afirma, emotivamente , em «Cristalizações», tangem-lhe, «(...) excitados, sacudidos, / O tacto, a vista , o ouvido , o gosto , o olfacto!». Nesta composição , o poeta relata a azáfama citadina constatada por ele , associando-a à injustiça que vitima as classes trabalhadoras. Através de pensamentos expressos em linguagem simbólica, surge a vida campestre , como denunciadora da exploração dos grandes meios urbanos .
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«Num bairro moderno », o sujeito poético descreve a vendedeira, «esguedelhada, feia » e «pequenina », que , no seu cabaz, transporta frutos e legumes , à semelhança de «um retalho de horta aglomerada ». Esta mulher , paupérrima , que traz rotas as meias azuis de algodão , no desenrolar dos seus movimentos , curva-se e ajoelha-se, salientando-se estas acções por remeterem para a humildade e a submissão que a fragilizam face a eventuais compradores . Ao tentar vender a sua mercadoria , à entrada de uma casa burguesa, é menosprezada por «um criado », que , apesar de pertencer a idêntica classe social , aparenta superioridade e demonstra desdém :
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Do patamar responde-lhe um criado :
«Se te covém, despacha ; não converses.
Atira um cobre ignóbil , oxidado,
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No seguimento da expressão metafórica «faces duns alperces», surge a transfiguração dos produtos agrícolas «num ser humano »,[1] «cheio de belas proporções carnais », evidenciando o sujeito pensamentos repletos de vitalidade e de sensualismo:
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Subitamente – que visão de artista ! –
Se eu transformasse os simples vegetais ,
A luz do Sol , o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
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E, num quadro repleto de movimento e de cor , continua o exame minucioso à vendedeira de rua , «magra » e «enfezadita» que apregoa «as suas couves repolhudas, largas», em antítese com a sua própria figura :
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E pitoresca e audaz, na sua chita ,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas ,
Duma desgraça alegre que me incita,
As suas couves repolhudas, largas. (O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 1988: 74)
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A adjectivação e a comparação são utilizadas com originalidade , e denotam, por um lado , o quotidiano concreto , por outro , a subjectividade que o poeta lhe imprime. Tal é atestado , por exemplo , nos seguintes versos :
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E como as grossas pernas dum gigante ,
Carregam sobre a pobre caminhante ,
Duas frugais abóboras –carneiras. (O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 1988: 74)
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Ao pintar este quadro citadino , Cesário Verde fá-lo à semelhança dos pintores impressionistas ,[2] que , de uma maneira particular , baseiam-se na sensação causada pela observação directa do quotidiano, suplantando a realidade através de uma forte óptica subjectiva.
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Uma bandeira penso que transluz!
Listrões de vinho lançam-lhe divisas ,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz ! (O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 1988: 78)
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Neste último verso é de realçar a simbologia da cruz dos suspensórios, que se traduz no sofrimento da vida , penosa , difícil de suportar , causando piedade ao poeta , e, simultaneamente, revolta , devido às desigualdades e injustiças sociais .
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O demonico arrisca-se, atravessa
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O tema da mulher citadina , fatal , surge, também , em «Esplêndida », lembrando Baudelaire,[4] pela forma desdenhosa como o poeta caracteriza esta personagem feminina , recorrendo a expressões irónicas, tais como «É fidalga e soberba » e «É ducalmente esplêndida !».[5] Esta figura denota a futilidade mundana e a repressão da vida , na cidade , conducente à humilhação :
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E eu vou acompanhando-a, corcovado ,
No trottoir, como um doido , em convulsões ,
Desejando o lugar dos seus truões ,
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Do mesmo modo , em «Humilhações », está patente o tema da opressão , através do afastamento entre a mulher rica e o homem pobre , que apenas a contempla, à distância :
Ao mesmo tempo , eu não deixava de a abranger ;
Via-a subir , direita , a larga escadaria .
E entrar no camarote . Antes estimaria
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No final do poema , em antítese à personagem feminina inicialmente retratada, surge uma velha , «suja », «infecta , rota , má», anunciando a pobreza e a infelicidade a que estão sujeitos os mais desfavorecidos da sociedade .[6] E, mais uma vez , o sujeito assume a sua ideologia , ao demonstrar a sua «raiva », perante a guarda que «espanca o povo » e que é o símbolo do poder da burguesia .
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Frequentemente, a cidade é aliada a sensações de mal-estar , manifestando o poeta pensamentos de evasão . Em «Cristalizações», ao descrever um outro cenário citadino , a sua apetência pela vida campestre transparece, através da transfiguração dos «calceteiros », com «os picaretes», em «cavadores», com «as enxadas ». O cenário citadino , barulhento e poluído, em contraste com o campo , alegre e salutar , entristece o poeta , provocando-lhe desabafos reveladores do estado de alma , como testemunham os versos : «Não se ouvem aves ; nem o choro duma nora ! / (...) / E o ferro e a pedra – que união sonora ! – / Retinem alto pelo espaço fora , / Com choques rijos , ásperos , cantantes.»
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Neste poema igualmente se manifesta a preocupação do poeta em relação às desigualdades sociais , ao referenciar as classes humildes , como «as floristas » e «as costureiras», em contraste com as mulheres «elegantes » que sorriem «às montras dos ourives ». As associações feitas pelo poeta também fazem transparecer a sua posição face a este assunto :
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As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos ;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos ,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo . (O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 1988: 108)
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(...) Que aldeias tão lavadas!
O campo proporciona outro tipo de pintura , mais atractiva para o poeta , como a ribeira que corre, os rebanhos que apascentam, as colinas que brilham, a vinha que «verdeja, vicejante », as terras ceifadas, a «sombra dos pinheiros », e, inclusivamente , as formigas , que , «espertas, diligentes », «arrastam bichos , uvas e sementes » para «seus antros quase ocultos na parede ».
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Na composição «De tarde », o poeta relata um «piquenique de burguesas», em que uma figura feminina desce «do burrico », sem artificialismos , para ir apanhar , «um ramalhete rubro de papoulas », «a um granzoal azul de grão-de-bico ». Todo o cenário exprime, fortemente , luz e cor , como testemunham, o «Sol », as «talhadas de melão », os «damascos » e o «pão-de-ló molhado em malvasia», entre outros coloridos elementos . Mais uma vez , os versos de Cesário Verde denunciam sensualismo, ao destacar as flores vermelhas que surgem contrastando com a brancura da mulher :
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Dos teus dois seios como duas rolas ,
O ramalhete rubro das papoulas ! (O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 1988: 112)
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.E o campo , desde então , segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos !
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Nesta composição , o poeta conta que a sua família abandonou a cidade , devido à febre e à cólera , e refugiou-se no campo , consequentemente, identificado com saúde e salvação. A partir de então , pôde observar as montanhas que lhe recordavam «cabeças estupendas, grossas», cobertas «de cabelo grisalho , muito rente »; «as verdes ribanceiras »; as abelhas «douradas, pequeninas»; os besoiros «negros , volumosos »; «o laranjal de folhas negrejantes», entre tantos outros aspectos ilustrativos da natureza . Com base na observação detalhada do cenário envolvente e na respectiva retratação , o poeta chega a admitir que pinta «quadros por letras , por sinais ».
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De facto, poder-se-á dizer que Cesário Verde coloca o seu cavalete , perante o objecto da sua análise , e capta esse momento , na sua tela , ou seja, a espontaneidade do quotidiano, constituído por luz , cor e movimento . Com base nessa realidade concreta ,[7] e, aliado à sua subjectividade, Cesário Verde , simultaneamente, na qualidade de poeta e de pintor , recorre artisticamente à palavra , para ilustrar autênticas aguarelas, repletas de expressividade.
CASTRO, Sílvio, O percurso sentimental de Cesário Verde , Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
FIGUEIREDO, João Pinto de, Cesário Verde a obra e o homem , Lisboa: Editora Arcádia , 1981.
MACEDO, Helder, Nós uma leitura de Cesário Verde , Lisboa: Editorial Presença , 1999.
MENDES, Margarida Vieira, Poesias de Cesário Verde , 2ª ed. Lisboa: Editorial Comunicação , 1982.
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, O livro de Cesário Verde e poesias dispersas, 3ª ed. Mem Martins, 1988.
TEIGA, Carlos, O livro de Cesário Verde (Ensaio interpretativo e crítico ), Setúbal: Corlito, 1993.
[1] «Para revalorizar a natureza – os frutos e os legumes – o sujeito torna-se e mostra-se poeta , capaz de a recriar num corpo carnal , e põe a nu o procedimento metafórico com a sua capacidade fecundadora e produtiva .» (MENDES, 1982: 39)
[2] «Em Cesário há íntima concordância entre as ideias e a forma de as exprimir . Mesmo os conceitos de nível popular são expostos em cores vivas e num ritmo que os eleva. / Então as palavras , às vezes , deixam de ser som e transformam-se em luz e cor , sugerindo deliciosas e bem recortadas pinturas .» (Barreiros, 1998: 304)
[3]«Trata-se também de uma metáfora nascida do contágio com os trabalhadores , que para isso se animalizam no final do poema , passando de duros e «terrosos » a «bovinos » e sanguíneos.» (Mendes, 1982: 35)
[4] «Desde Ramalho Ortigão têm os leitores críticos aproximado Cesário de Baudelaire, insistindo nas semelhanças e, por reacção, também nas diferenças . É o que fez, por exemplo J. Prado Coelho . A seu ver , ambos os poetas inscrevem nos seus poemas a mulher fria , a cidade e a sua vida , ambos têm o mesmo gosto pelo inesperado , por vezes «arrepiante» (o frisson nouveau), a mesma audácia metafórica e atitudes por vezes exageradas, e ambos associam a poesia à pintura . No entanto , Cesário Verde é também um poeta do campo , do prosaico , sem amplidão oratória , anti-romântico, sem as preocupações metafísicas e os abismos psicológicos de Baudelaire, além de não ter quaisquer marcas de satanismo .» (Ibidem : 22-23)
[5] «O tratamento irónico da «esplêndida » mulher do título cria um efeito de distanciamento que a torna na personificação dramática de uma situação social . Ela é um tipo social e não uma pessoa .» (Macedo, 1999: 77)
[6] A mulher , símbolo da aristocracia , «(...) é colocada no pólo actancial do agressor , do dominador que é preciso vencer . No outro pólo são colocados os «lacaios » e os «povos humilhados», a classe oprimida e o próprio sujeito .» ( Mendes, 1982: 33)
[7] «Não esqueçamos, de resto , que Cesário é intencionalmente realista. Por isso , atende com particular interesse ao real concreto , a pormenores mínimos desde que lhe sirvam para excitar e transmitir percepções sensoriais . Daí o ter construído com realidades aparentemente insignificantes quadros de grande expressividade.» (Barreiros, 1998: 304)
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http://www.filologia.org.br/soletras/10/01.htm
AGUARELAS DE CESÁRIO VERDE
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