Para abordar o tema que me foi proposto – o da reconfiguração do Estado ao serviço dos grandes interesses económicos – será talvez necessário recuar mais longe do que a década que temos em análise, incluindo até o período da resistência antifascista. É útil relembrar, no contexto actual, o que Álvaro Cunhal escreveu acerca das posições da burguesia liberal sobre as necessidades de modificação ou substituição do Estado fascista pela revolução democrática: [existe uma] «íntima relação entre os objectivos políticos que cada sector atribui à revolução antifascista e as suas posições em relação ao problema do Estado: quanto menores são as transformações de ordem social e política encaradas, tanto menores são as exigências de modificação ou substituição do Estado fascista».
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Um dos traços mais originais da nossa Revolução consistiu no facto de se terem operado no País, num muito curto período de tempo, transformações sociais e económicas profundas sem que, em algum momento, se tivesse constituído um poder coerentemente revolucionário e sem que se tivesse criado um aparelho de Estado correspondente às transformações alcançadas. Mais ainda, essas transformações prosseguiram ainda quando já se instalara nos órgãos de poder uma correlação de forças profundamente desfavorável.
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Muito do que fora alcançado foi destruído. Mas que tenha sido possível, primeiro, realizar tão profundas transformações nas condições existentes e, depois, defendê-las de forma tão prolongada num quadro de relações de poder profundamente desfavoráveis continua a constituir um dos traços mais notáveis do processo de Abril.
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No decurso do período mais criador da Revolução e apesar das contradições internas nos órgãos de poder existentes foi possível a tomada de muitas decisões e medidas progressistas. E mesmo quando o ímpeto transformador de Abril foi detido ter-se-á prolongado durante um certo período uma situação com características muito semelhantes àquelas que Lenine prevê no seu texto clássico sobre o Estado, ou seja, a possibilidade de ocorrerem «excepcionalmente períodos em que as classes em luta se mantêm uma à outra tão perto do equilíbrio que o poder de Estado [….] alcança momentaneamente uma certa autonomia face a ambos».
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Quando Marx e Engels reflectiram sobre a questão do Estado, a única experiência real de um poder exercido pela classe operária e pelo povo eram os breves e heróicos dias da Comuna de Paris. Quando Lenine escreveu «O Estado e a Revolução» os sovietes eram já uma nova e importante realidade, mas não fora ainda criado o primeiro Estado proletário da história nem existia ainda verdadeiro poder soviético. A teorização marxista identificou justamente, desde as primeiras formulações, o Estado como instrumento de dominação e opressão de classe e como factor de reprodução dessa dominação. Mas ao longo de todo o século XX e até aos dias de hoje surgiram diferentes formas de organização do Estado, desde os estados fascistas às democracias burguesas que, pressionadas pela luta dos trabalhadores – animada pela ampla consagração de direitos aos trabalhadores e aos povos nos países socialistas – integraram no sistema do Estado um conjunto de importantes funções sociais. Desde o final do século passado e até hoje um processo complexo de hegemonização do campo capitalista pelo imperialismo levou à derrota do campo socialista e a um feroz ataque, sob a bandeira do neoliberalismo, aos direitos conquistados pelos trabalhadores. A constituição de instituições supranacionais – decorrente da tendência para a uma ordem internacional hegemonizada por uma só potência – com o imperialismo assumir no plano internacional tarefas de repressão anteriormente reservadas aos estados nacionais (como sucede ao abrigo do chamado «direito de ingerência humanitária»); a abdicação de parcelas – cada vez mais importantes – da sua soberania por parte dos estados dependentes.
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Mas a avaliação do papel do Estado permanece necessariamente centrada na identificação dos interesses de classe ao serviço dos quais é organizado. No decurso da década cujo balanço fazemos a prevalência desses interesses tornou-se ainda mais evidente do que em qualquer período anterior desde 1976. Tornou-se mais evidente nomeadamente no plano das funções sociais do Estado, no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, no que diz respeito ao papel e às missões das forças armadas e de segurança, no que diz respeito à justiça, no que diz respeito ao papel do Estado na economia e no ordenamento do território, no que diz respeito às liberdades e garantias dos cidadãos e ao regime democrático, no que diz respeito à mutilação da soberania nacional. Os fenómenos de desresponsabilização do Estado manifestam-se tanto no plano das leis com no das estruturas do aparelho de Estado.
Ofensiva em todas as frentes
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Quando a direita afirma que há funcionários públicos a mais isso significa fundamentalmente que do que se trata é de reduzir as funções sociais e culturais do Estado. A colocação de milhares de trabalhadores do Ministério da Agricultura na situação de disponíveis acompanhou o processo de destruição da agricultura portuguesa; o emagrecimento do orçamento para a cultura artística e a abdicação do projecto da sua democratização traduziu-se no esvaziamento técnico-financeiro e humano da Direcção Geral da Cultura. O Estado externaliza aspectos das suas funções técnicas e as estruturas, descentralizadas ou meramente desconcentradas, dos ministérios deixam de ser órgãos de apoio aos trabalhadores para se tornarem tentáculos do aparelho de Estado, exercendo funções de controlo e propaganda.
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Depende determinantemente do papel assumido pelo Estado a concretização do direito dos cidadãos à educação, à cultura, à saúde, à justiça. E é assim porque incumbe ao Estado proporcionar condições de igualdade na concretização desses direitos a cidadãos que, por força não apenas da sua situação social e económica mas também da sua localização no território nacional estão à partida em posições de profunda discriminação e desigualdade. Mas o que se acentuou ao longo desta década foram processos de redução do papel do Estado no sentido de assegurar esses direitos, de alienação de responsabilidades pela privatização directa ou indirecta e a mercantilização de serviços públicos, de reorganização das redes de equipamentos e serviços em termos que agravam ainda mais as desigualdades regionais. A escola pública, o posto de saúde, a maternidade, o tribunal ficam mais longe e mais caro. O interior do País fica mais discriminado e desertificado, a faixa litoral mais congestionada e subequipada, o País mais assimétrico.
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A reconfiguração da Escola Pública torna mais desiguais as crianças e os jovens no que diz respeito à rede e aos custos, mas torna-as ainda mais desiguais perante a organização curricular, os programas de ensino, os conteúdos, as condições de funcionamento que encaminham para o insucesso as crianças e os jovens oriundos de meios social, económica e culturalmente mais marginalizados.
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O desmantelamento dos direitos sociais, nomeadamente o direito à saúde e o direito à segurança social, avançou sob a capa da «sustentabilidade». Mas aquilo que é dito insustentável enquanto universal e público, torna-se um bom negócio quando passa a privado e acessível apenas aos que o podem pagar, porque o Estado assegura aos privados que se houver lucros são seus, mas se houver prejuízos o Estado pagará por eles.
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A reconfiguração do Estado ao serviço do capital monopolista constitui uma longa narrativa, que passa por todo o processo de privatizações, nesta década sobretudo marcada pelas obscuras negociatas em torno do sector energético. Privatizações no interesse do grande capital mas também, no final da década, nacionalizações com o mesmo sentido, enterrando milhões provenientes do sector público da banca em socorro dos bancos afundados em resultado de operações que, em alguns casos, são simplesmente do foro criminal.
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O Estado não só vem transferindo para o sector privado o que é rentável, tanto no sector empresarial como nos serviços públicos. O Estado age também no sentido de que esses sectores se tornem ainda mais lucrativos e rentáveis, nomeadamente através das comissões ditas «reguladoras» para a fixação das tarifas e dos preços, dos benefícios fiscais, da tolerância face ao funcionamento em cartel, ao desinvestimento, à fraude e à evasão fiscal, de uma política laboral que incentiva o constante agravamento da exploração dos trabalhadores. Acompanhando e apoiando a financeirização da economia o Estado tornou-se peça fundamental no empolamento da especulação fundiária e imobiliária (à qual os grandes grupos financeiros estão intimamente associados), nomeadamente através dos processos de alienação do património imobiliário público sob a tutela de diferentes ministérios, do favorecimento de amplas operações ditas de reabilitação urbana nas quais a componente especulativa é central, como sucedeu em Lisboa com a Expo 98 e como sucede com várias das operações POLIS, ou com a escandalosa excepcionalidade atribuída aos processos PIN e PIN+.
O Estado não é neutro
As Forças Armadas que desempenharam um tão decisivo papel na Revolução de Abril existem hoje num quadro profundamente diferente, com efectivos profissionais e contratados, subordinadas a um conceito estratégico desprovido de efectivo compromisso patriótico e ligado ao povo, participando, contra a Constituição, em operações de agressão e ocupação imperialista no Kosovo, no Iraque, no Afeganistão. O papel do Estado não pode ser o mesmo numa democracia antimonopolista ou num regime em que o grande capital controla de forma cada vez mais determinante o poder político. O Estado não é neutro, e a sua intervenção ou é democrática, como instrumento de defesa e concretização dos direitos, aspirações e liberdades populares e dos trabalhadores, esmagadoramente maioritários, ou assume a defesa e concretização dos interesses do grande capital, dos exploradores, dos interesses infinitamente minoritários de todos aqueles cuja prosperidade reside na perpetuação das desigualdades, das injustiças, da hipoteca dos interesses nacionais, e, nesse caso, configura-se tendencialmente como um Estado antidemocrático.
Quando vemos hoje construir-se passo a passo um processo de governamentalização do aparelho da justiça, de centralização dos serviços de informações e das forças de segurança, de pressão e controle de toda a comunicação social, já de si tão controlada e desprovida de pluralismo, quando vemos uma política que justifica toda a sua iniciativa pela defesa dos grandes interesses económicos, ao mesmo tempo que conduz uma brutal ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, quando vemos aprovar-se legislação que tem como único objectivo estrangular financeiramente o PCP e negar ao PCP o direito de se organizar de acordo com os seus estatutos e a vontade dos seus militantes, quando se sucedem os propósitos de alterar a legislação eleitoral em termos que visam distorcer radicalmente a expressão da vontade popular, este quadro já nada tem a ver com o Portugal de Abril, mas tem muito a ver com tudo contra o qual Abril se realizou.
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Dizem os nossos clássicos que o Estado surge, não em consequência das contradições internas numa dada sociedade, mas a partir do momento em que essas contradições se tornam irremediavelmente insanáveis.
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Se o Estado que a política de direita gera se coloca em confronto insanável com os interesses, direitos, aspirações e liberdades dos trabalhadores e do povo, a luta dos trabalhadores e do povo fará com que, cedo ou tarde, chegue a momento em que essa contradição será superada, numa radical ruptura que retome o caminho de Abril.
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Texto da intervenção de Filipe Diniz, em 6 de Fevereiro, no seminário organizado pelo PCP, «Dez anos de Política de Direita».
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