* Carlos Coutinho
CHAMAVA-SE Carlos e era tão meu padrinho de batismo como do meu pai. Está sepultado na minha aldeia, a dois metros do seu afilhado mais velho, e, hoje, olhando para as duas sepulturas de mármores afeiçoados, lembrei-me de que ele não dera ao meu pai o nome que me deu a mim. Sei, aliás, que nenhum outro Olímpio houve em Fornelos, nem antes nem depois dele, além de que o meu velho era tão Coutinho como eu.
O meu padrinho Carlinhos, mais exatamente o Sr. Carlos Pereira de Sá, provinha de um ramo desastrado dos Sás, aquele antiquíssimo clã que, por alturas do terramoto de 1755, entrou em desavença com o Marquês de Pombal, alegadamente porque se recusava a sair do aristocrático analfabetismo que dava altivez a certa fidalguia. Condes, duques e viscondes bacocos furtavam-se a aprender e a ensinar no Colégio dos Nobres, em Lisboa. A solução foi os Sás virem de trouxa às costas cá para cima e montar arraiais nas faldas vinhateiras do Marão.
Não imagino o que possa ser apurado pelos historiadores e, para já, dou como plausível este comportamento.
Quanto ao Sr. Carlinhos, marido da primeira professora que houve na povoação, tenho a certeza de que já era, ainda antes da vitória da República, o cacique da Monarquia na confluência do Corgo com o Douro. Nessa qualidade, quando o administrador monárquico teve de se pirar de Vila Real, o meu padrinho combinou com o meu pai a garantia de um esconderijo à prova de republicanos e maçons, cavando na casa dos arrumos da nossa vinha de Cortiçadas um buraco onde o grande chefe se deitava, rezando pelo rei e enrolando-se numa grossa manta, para, a seguir, se deixar cobrir por um grande monte de lenha criteriosamente escolhida.
Assim sobreviveu, durante um mês o tal figurão e o meu padrinho, que morreu um dia depois de eu fazer 5 anos, pagou uma fortuna a dois médicos que se postaram à sua cabeceira, amparando-lhe os últimos achaques muito gemidos, enquanto o Bijú, um cãozito branco de olhos ramelosos, se aninhava na mesma cama, entre as penas do dono.
Foi numa tarde nevoenta que o Biju soltou um latido visceral e saltou para o chão, ficando de pé no chão do quarto quase às escuras.
O último suspiro do meu padrinho não foi ouvido por ninguém e o seu funeral passou dois dias depois por baixo das minhas janelas, com o Biju gemebundo e colado à urna transportada a pulso por seis homens de opa branca. Resultaram infrutíferas todas as tentativas de o afastar e, finalmente levaram-no à força para o armazém do Casal, onde o prenderam com uma corda grossa à tranqueta do tonel.
Passaram dias e dias e o Biju não aparecia nem no seu bairro, o do Itreido, nem em lado algum. Quando alguém foi ao armazém tentar perceber o que tinha acontecido, saltou-lhe aos olhos a ponta esfiapada da corda de sisal roída e, quando o coveiro foi ao cemitério preparar outra cova para mais um enterramento, estavam encrespados os pelos do Biju e vidrado o seu olhar. Tinha também ele morrido, sobre a cova fresca onde lhe esconderam o dono.
Outras histórias me emergiram da memória e só não chorei porque na sepultura vizinha estão o meu pai, a minha mãe e a minha madrinha, cada um com as suas razões e a suscitar-me uma certa aflição naqueles momentos.
2024 06 03
https://www.facebook.com/carlos.coutinho.7186896
Sem comentários:
Enviar um comentário