1. Este texto foi escrito antes da
realização de um acontecimento que julgo muito significativo e que teria lugar
no Vaticano no dia de ontem: o encontro do Papa Francisco com mais de 100
humoristas de todo o mundo, entre eles Joana Marques, Maria Rueff e Ricardo
Araújo Pereira.
Um encontro organizado pelo
Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério da Comunicação. O seu
objectivo: “estabelecer um diálogo entre a Igreja Católica e os humoristas”.
“Francisco reconhece o grande impacto que a arte da comédia tem no mundo da
cultura contemporânea. Através do talento humorístico e do valor unificador do
riso nos dias de hoje, são oferecidas reflexões únicas sobre a condição humana
e a situação histórica. Além disso, a arte da comédia pode contribuir para um
mundo mais empático e solidário”, referia o comunicado do Vaticano,
acrescentando que “o encontro entre Francisco e os actores cómicos do mundo
pretende celebrar a beleza da diversidade humana e promover uma mensagem de
paz, amor e solidariedade, e promete ser um momento significativo de diálogo
intercultural de partilha de alegria e esperança.”
2. Estando a escrever antes do
acontecimento, só posso esperar que assim seja. E, sobre o tema, deixo aí
algumas reflexões, já por vezes aqui expandidas.
A Igreja oficial nunca se deu muito
bem com o humor e o riso. Por exemplo, ainda vivi tempos nos quais durante o
Carnaval, nos seminários, havia a chamada “Exposição do Santíssimo Sacramento”
e durante o dia e a noite rezava-se pelos pecadores e fazia-se penitência em
reparação pelos pecados daqueles dias. Sou sincero: nunca percebi em que
diferiam os pecados do Carnaval dos pecados dos outros dias.
Até se generalizou a ideia de que
Jesus nunca se riu. Na verdade, de Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou
pela morte do seu amigo Lázaro e Jerusalém... Não se diz que riu. Mas já Santo
Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e
rir é característica essencial, distintiva, do ser humano. Jesus participou em
festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos? Uma boa
piada pode estabelecer pontes, o riso é cura. Lá está Kant: para aliviar as agruras
da vida, o Céu deu-nos três coisas: “a esperança, o sono e o riso”.
Digo: ai da Igreja e dos crentes, ai das
instituições, sem a crítica por vezes mordaz, que pode ajudar a curar. Só nas
ditaduras é que não se pode fazer humor nem rir dos poderes instituídos. Ai de
cada uma e cada um de nós, se não souber rir-se de si mesmo, de si mesma, das
suas manias e disparates… O que não se pode – não se deveria – é cair no riso
alarve, na piada boçal e ofensiva, que apenas significam falta de inteligência.
Ah! o riso também ajuda a curar a vaidade oca, e ele há tanta, tanta vaidade oca:
“Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu
Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a
chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Elegia-se,
entre os subdiáconos, um senhor da festa, designado “Bispo”. Esse subdiácono, o
grau mais baixo da hierarquia, era vestido de Bispo, colocado em cima de um
burro, e entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o
altar. Em certos momentos, o celebrante e o povo zurravam. Na entrega simbólica
do “báculo” episcopal entoava-se o Magnificat – o hino de louvor que o
Evangelho coloca na boca de Maria – naquele passo: “Deus derrubou os poderosos
e exaltou os humildes.” Sobre a Festa dos Loucos pronunciou-se a Faculdade de
Teologia de Paris em 1444, justificando-a: “Os nossos eminentes antepassados
permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita?” Neste
descalabro burlesco, dever-se-ia ver, no limite, a urgência de não confundir o
Sagrado em si mesmo com as mais variadas formas idolátricas com que tantas
vezes os crentes se lhe dirigem.
A propósito da força crítica da piada
e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema
do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos,
bispos, monsenhores, com mitras, tricórnios, alguns vestidos de púrpura…
Aconteceu que São Pedro veio à janela do Céu e viu aquilo. Estarrecido, chamou
Jesus, que olhou e apenas disse: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo,
entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado pelos poderes do Templo e
do Império... Lembras-te?
Sim, Francisco socorre-se também do
bom humor, e todos os dias reza a “Oração do bom humor”, oração atribuída a São
Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a
gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos
membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem
falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para
digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./
Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se
amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios
para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/
que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os
excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá - me, Senhor, o
sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma
boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com
os outros./ Ámen.”
15 junho 2024
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
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