26 junho 2024 às 14h16
“Não
sabíamos das alegações sobre um massacre de palestinianos em Tantura”
O casal israelita que explora o restaurante Tantura - vandalizado a 11 de junho por “militantes antissionistas” - garante que quando o abriu nada sabia sobre o massacre alegadamente ocorrido em 1948 na aldeia palestiniana do mesmo nome. Para eles, dizem, é “o de uma das mais belas praias de Israel”.
Também o embaixador de Israel em Portugal, Dor Shapira, qualificou, no Twitter, a 21 de junho, no texto que acompanha uma foto sua no restaurante abraçado aos donos, as pichagens de "vandalismo antissemita", garantindo: "A humanidade sempre dominará o ódio!"
Em resposta a
perguntas enviadas pelo DN, os proprietários do restaurante, Elad Budenshtiin e
Itamar Eliyahu, que se apresentam como “dois israelo-portugueses que se
apaixonaram tanto por Portugal que decidimos viver aqui e fazer o que fazemos
melhor”, não quiseram dizer se consideram as pichagens um crime de ódio
ou um ato antissemita ou esperam que seja investigado como tal. Limitam-se
a manifestar, através de um comunicado enviado pelo respetivo advogado,
“extrema tristeza pela vandalização do restaurante” e “extremamente comovidos e
agradecidos pelo nível de solidariedade que recebemos após este incidente,
desde as autoridades ao cliente ocasional”.
E
acrescentam: “Não somos políticos. Estamos a viver num país que amamos,
aproximando pessoas e culturas através da comida. (…) Abrimos um restaurante,
chamámos-lhe Tantura - nome de uma das mais bonitas praias de Israel - e o
resto é história.”
Ora, de acordo
com o comunicado que os autores da pichagem enviaram às redações, foi
precisamente a história de Tantura, e o facto de os donos do restaurante do
mesmo nome a elidirem, que motivou a ação.
“Tantura era
uma pequena vila costeira palestiniana onde viviam cerca de 1500 pessoas”,
lê-se no dito comunicado. “Na noite de 22 de maio de 1948, uma semana após a
declaração do Estado de Israel, foi atacada e ocupada por uma brigada do
exército sionista. Esta foi apenas uma das cerca de 530 aldeias palestinianas
que foram destruídas para dar lugar ao Estado sionista (…) num ato de limpeza
étnica (…) ao qual as pessoas palestinianas chamam Nakba - catástrofe, em
árabe.”
Porém,
prossegue a narrativa, “o destino de Tantura foi pior que o da maioria.
Testemunhos de aldeães palestinianos e soldados israelitas afirmam que (…) o
exército massacrou até 250 civis e membros da resistência palestiniana - na sua
maioria jovens desarmados (…). A aldeia foi quase toda destruída. Hoje, as
valas comuns onde enterraram os corpos estão sob parte de um resort de
praia a que chamam Dor. No entanto, em toda a presença online ou offline do
restaurante (…) não parece haver qualquer tipo de reconhecimento do massacre de
Tantura ou de Tantura ser uma aldeia palestiniana destruída pelo projeto
colonial israelita.”
Os testemunhos
a que o CLP faz referência foram pela primeira vez revelados publicamente em
2000, na imprensa israelita, na sequência de uma tese de mestrado da
Universidade de Haifa, da autoria de Ted Katz, sobre o que sucedeu a
aldeias árabes/palestinanas após a declaração de independência de Israel,
quando o jovem país enfrentava uma invasão por todos os seus vizinhos árabes.
Katz acabaria processado por membros da brigada do exército israelita que
ocupou Tantura, e, no início do julgamento, assinou uma carta na qual
escreveu: “Não quis dizer que houve um massacre em Tantura e hoje digo
que não houve um massacre em Tantura”. Viria depois a querer retirar
essa capitulação, mas o tribunal não permitiu; apelou para o Supremo, mas este
não aceitou o recurso.
22 anos depois,
um documentário
intitulado Tantura, do realizador israelita Alon Schwarz,
recuperou a investigação de Katz, revelando entrevistas atuais de
membros da brigada que reconhecem - por vezes em tom chocantemente chocarreiro
- a ocorrência, após a tomada de Tantura, de execuções de palestinianos
desarmados e de atos de violência sexual perpetrados pelos soldados.
Malgrado estes testemunhos, a existência de um massacre no local continua a ser
- até porque nunca houve uma tentativa de inumar os mortos (há comprovadas, até
por documentos contemporâneos do exército israelita, valas comuns na área) -
controversa (como veremos mais à frente).
Questionados
pelo DN sobre o seu silêncio - confirmado pelo jornal quer no site do restaurante e respetivo
menu quer em entrevistas concedidas desde 2017 a 2024 - em relação à história
de Tantura, Elad e Itamar justificam-se, no citado comunicado: “Quando
abrimos o restaurante, em 2017, não conhecíamos as referidas alegações [sobre o
massacre] sobre Tantura. O documentário [cujo link o jornal lhes enviou] só
saiu em 2022.”
“Devem ler
sobre o que os vossos ancestrais [portugueses] andaram a fazer”
Não fica claro
quando Elad e Itamar se deram conta das ditas alegações e ainda menos o que
pensam delas (perguntas que lhes foram feitas pelo DN). Nem por que motivo se
referem, em várias entrevistas, inclusive
em 2024, e também no site do restaurante, a Tantura como “uma
aldeia israelita (…) de onde “chegámos a Lisboa”; "onde
se conheceram e casaram"; na qual teriam vivido “quatro
anos”; onde teriam
“uma pequena empresa de catering”; onde Itamar, que tem 45 anos, nasceu,
e onde
a sua família explorou “um pequeno negócio de arrendamento turístico”. Na
resposta enviada ao jornal, nenhuma das perguntas sobre a ligação do casal ao
local a que dão o nome de Tantura foi esclarecida, nomeadamente se ali viveram,
se Itamar ali
nasceu e, nesse caso, desde quando a sua família ali residiu.
Ora é
incontroverso que Tantura foi o nome de uma aldeia árabe/palestiniana ocupada
pelo exército israelita logo a seguir à fundação de Israel, há 76 anos, e que o
local, após a saída/expulsão dos palestinianos, passou a chamar-se Dor
(recuperando a antiga designação Dor - ou Dar, em hebraico antigo - da povoação
portuária de Canaã, a bíblica “terra prometida dos judeus, que existiu ali há
milhares de anos).
Aliás,
colocando no Google a palavra Tantura não surge qualquer referência a um local
contemporâneo em Israel; nem sequer nos sites dos resorts/hotéis de
Dor consultados pelo DN se encontrou esse nome. Na Encyclopedia Britannica, na
entrada Dor, lê-se: “A aldeia árabe de Tantura que existia no local foi
tomada pelo IDF [Israeli Defense Forces, ou Forças de Defesa Israelitas] em
maio de 1948; no ano seguinte foi ali estabelecida, por imigrantes
judeus-gregos, a povoação moderna de Dor. A norte de Dor, situa-se o kibbutz de
Nahsolim, fundado em 1948.” De acordo com a informação encontrada pelo
jornal, Dor terá cerca de 465 habitantes.
Inquiridos
especificamente sobre se o nome Tantura ainda é usado em Israel para designar
Dor, Elad e Itamar não responderam.
Já em junho de
2023 a equipa do restaurante teria sido questionada, por email, sobre a
referida ausência de menção, em materiais promocionais, ao facto de o nome
Tantura ser o de uma aldeia palestiniana. É o Coletivo pela Libertação da
Palestina que o garante num panfleto intitulado “Tantura, sabores de um
massacre”, e que terá sido distribuído na festa de aniversário do restaurante.
Segundo o panfleto, a equipa respondeu ao contacto do CLP remetendo para a
história de Portugal: “Antes de discutirmos as nossas visões políticas,
acho que devem ler um pouco sobre história portuguesa, para verem o que os
vossos ancestrais andaram a fazer no passado (…). Antes de decidirem quem tem
razão façam uma pesquisa mais aprofundada. Se precisarem de ajuda, poderemos
dar-vos alguma informação.”
A crer neste
relato do CLP, a informação aludida nunca terá sido enviada. Também na resposta
às perguntas enviadas pelo DN a Elad Budenshtiin e Itamar Eliyahu, como já
referido, não foi adiantada qualquer informação, ou posição, sobre a história
da localidade que designam de Tantura.
“As pessoas
escolhem esquecer o que não é conveniente”
“Muitos
israelitas não conhecem a história do país. Muitos acreditam naquela história
ingénua de que os palestinianos fugiram de motu proprio.” As
palavras são de Alon Schwarz, o autor do já citado documentário Tantura,
numa entrevista de dezembro de 2022 sobre o filme. O qual, explica, além de
ser sobre a expulsão dos palestinianos das zonas ocupadas pelo novo
Estado judeu - zonas delineadas pelo plano de partição decidido pela
Organização das Nações Unidas em 1947 - e sobre os crimes de guerra cometidos
durante a mesma, e portanto sobre o que designa de “a história não contada do
mito fundador de Israel”, é também sobre “como as pessoas escolhem
esquecer, ou não lembrar, o que é inconveniente”, “como escolhemos dulcificar a
história do nosso país”.
Trata-se assim,
para Schwarz, de uma mistura entre ignorância genuína e deliberação de ignorar.
Como acusam vários académicos que entrevistou para o documentário: “Quando em
1988 Israel celebrou os 40 anos da guerra da independência, era suposto as
Forças de Defesa Israelitas divulgarem a documentação sobre a guerra. Mas
quando foram ver o arquivo disseram: ‘Não podemos divulgar isto.’ E escreveram
uma ordem detalhando o critério para divulgar documentos”, afirma o historiador
Adam Ratz, autor do livro, a publicar em setembro, Loot. How Israel
Stole Palestinian Property/Saque. Como Israel roubou a
propriedade palestiniana, enquanto mostra o documento em causa. “O
Estado decidiu que não quer divulgar material que diga respeito a ‘deportação
de árabes’; ‘evacuação de comunidades e residentes’; ou, e esta é a minha
preferida, ‘comportamento violento em relação a prisioneiros, que viole a
convenção de Genebra’ ou ‘comportamento violento dirigido à população árabe e
atos de crueldade, homicídio, mortes que não ocorram em combate, violação,
roubo, saque’, material ‘que possa afetar a imagem das IDF, apresentando-as
como um exército de ocupação, destituído de princípios éticos’.”
Que aprendemos
com isto, pergunta Ratz, e responde: “Que o Estado de Israel quer preservar, de
todas as formas possíveis, o mito fundador da ‘israelidade’: de que somos o
exército e a sociedade mais morais do mundo. O que nós, o público, encontramos,
quando vamos aos arquivos, é o que passou este filtro. Ou seja, material que
mostra que não houve expulsão, que não houve transferência de população, não
houve destruição de aldeias. Mas isso é mentira. E o Estado,
sabendo que o é, investe tremendos recursos para impedir que, não as pessoas de
fora, mas as deste país, descubram a verdade sobre o seu passado”.
Partindo do
material recolhido por Ted Katz, o já citado investigador da Universidade de
Haifa que no final do século XX fez a sua tese de mestrado sobre a ocupação e
depopulação de várias aldeias palestinianas, entrevistando ex-moradores e
membros da brigada do exército israelita que tomou Tantura - a brigada
Alexandroni -, o documentário vai à procura das testemunhas que restam,
incluindo Katz. Este é apresentado como um homem destruído pelo que lhe sucedeu
- o processo, a carta de abjuração que assinou e que, por sua vez, quis, sem
sucesso, abjurar, e o facto de a sua universidade, que lhe tinha outorgado uma
ótima nota na defesa da tese, lhe ter imposto que a revisse, impedido-o de
prosseguir o doutoramento.
O filme é um
documento avassalador, sobretudo pelos testemunhos de membros da
brigada Alexandroni que reconhecem a existência de crimes de guerra e contra a
humanidade - execução de prisioneiros desarmados, violação de mulheres,
ocultação dos mortos em valas comuns. Ainda assim, há quem o considere, e
ao alegado “grande massacre”, uma fraude. É o caso do historiador Ben Morris,
que diz ter sido entrevistado por Schwarz “durante mais de duas horas” e
descoberto que nem aparece no documentário.
Se houve um
massacre em Tantura, porque não é referido na historiografia árabe?
Num artigo
publicado em 2022 no diário israelita de esquerda Haaretz,
Morris, que recentemente
qualificou a ocupação israelita da Cisjordânia como “um regime de apartheid
baseado não na raça, como o da África do Sul, mas no nacionalismo”, diz que
Schwarz não quis incluir no filme a sua visão porque contradizia a narrativa
que queria vender, a de que “os judeus se portaram como nazis”. A visão de
Morris, que explica no texto,
é que se há historiadores israelitas, como ele próprio - num artigo
de 2004 intitulado The Tantura “massacre” affair- a
reconhecer que os soldados israelitas cometeram “pequenos crimes de guerra” em
Tantura [execução de sete snipers palestinianos, violações e saques], rejeitam
a narrativa do “grande massacre”.
“Se houve um
massacre de 200 a 250 pessoas em Tantura, terá sido o maior dos massacres de
1948. Mas não existe nenhum documento disponível de 1948 que mencione
um massacre em Tantura (…). Estranho, muito estranho, porque todos os massacres
perpetrados por judeus em 1948 são pelo menos mencionados, se não mesmo
descritos, em documentos de 1948 (…). Deir Yassin, Burayr, Ein Zeitun, Lod,
Hunin, Dawayima, Eilabun, Arab al-Mawasi, Majd al-Kurum, Saliha, Jish, Safsaf,
Bi’na-Deir al Asad – os massacres perpetrados pelos judeus nestes locais e
outros são todos mencionados em documentos contemporâneos, alguns em detalhe.
Só não o de Tantura - nenhuma menção”, escreveu Morris no artigo de 2022,
perguntando: "Alguém acredita que entre os mil deportados, que já não
estavam sob controlo judaico, nem um se tenha incomodado em dizer aos oficiais
iraquianos ou à ONU ou à Cruz Vermelha que, já agora, tinham assistido a um
massacre horrendo dos seus pais, irmãos, filhos (…)?” E conclui: “É
simplesmente inconcebível, se tivesse ocorrido um massacre em larga escala que
eles tivessem testemunhado ou do qual pelo menos tivessem ouvido falar.”
Outro argumento
que lhe parece decisivo no sentido de refutar a narrativa do “grande massacre
de Tantura” é a inexistência de menção na historiografia árabe/palestiniana
credível: “Um memorando do Alto Comissariado Árabe intitulado ‘As atrocidades
dos judeus’, enviado para a ONU em julho de 1948, não menciona Tantura
(…). O livro considerado a bíblia da Nakba, os seis volumes intitulados
Al-Nakba, publicados entre 1956 e 1960 pelo cronista Are al-Aref, não menciona
um massacre em Tantura. Tão-pouco Walid Khalidi, o mais importante e mais sério
dos historiadores palestinianos, menciona um massacre em Tantura, apesar de
dedicar duas páginas e meia à aldeia no seu enciclopédico livro de 1992 sobre
as aldeias perdidas, All that remains/Tudo o que resta.”
Por fim,
respondendo ao
artigo, também no Haaretz, em que, segundo ele, Schwarz o tenta
apresentar como um negacionista da Nakba, Morris adverte: “É possível
sustentar que não houve ‘um massacre em larga escala’ em Tantura e ainda assim
afirmar que judeus massacraram árabes noutros locais e que os palestinianos
sofreram uma ‘nakba’ (catástrofe).”
O DN tentou
chegar à fala com membros do Coletivo pela Libertação da Palestina para os
confrontar com a acusação, expressa pelo CDS/PP referindo a ação contra o
restaurante de Elad Budenshtiin e Itamar Eliyahu, de crime de ódio e
antissemitismo. O CLP, que no seu manifesto assevera rejeitar “qualquer tipo de
perseguição ou discriminação de pessoas com base nas suas características, como
retórica anti-árabe ou antissemita” e só criticar “posições políticas”, optou
por não responder.
Em 14 de junho,
o DN pediu à PGR informação sobre a eventual abertura de um inquérito
relacionado com a pichagem do Tantura, e sobre se este, a existir, investigaria
o eventual cometimento de um crime tipificado no artigo 240º do Código Penal (Discriminação
e incitamento ao ódio e à violência), não tendo obtido resposta até ao
momento.
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