* Anselmo Borges
Pediram-me uma vez uma reflexão
precisamente sobre o tema em epígrafe. Aí fica uma tentativa. Sobre Deus que
sabemos nós? Ele é infinito e está para lá de tudo o que possamos pensar ou
dizer. O que sabemos dEle sabemo-lo através de Jesus, a sua revelação no mundo.
Através de Jesus, sabemos que Deus é,
como se lê na Primeira Carta de São João, Agapê: Amor incondicional. Mas o
Evangelho segundo São João também diz que Deus é Logos: Razão, Inteligência e
que tudo foi criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido de humor, pois o
humor é sinal de inteligência. Não é o humor fino revelador de uma inteligência
fina?
Logo no primeiro livro da Bíblia, o
Génesis, há uma passo belíssimo em conexão com o riso. "O Senhor apareceu
a Abraão quando ele estava sentado à porta da sua tenda", sob a figura de
três homens. "Onde está Sara, tua mulher?" Ele respondeu: "Está
aqui na tenda. Um deles disse: Passarei novamente pela tua casa dentro de um
ano, nesta mesma época, e Sara, tua mulher, terá já um filho". Ora, Sara
estava a escutar à entrada da tenda. Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já
não estava em idade de ter filhos. Sara riu-se consigo mesma e pensou:
"Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o
meu senhor?"." O que é facto é que "o Senhor visitou Sara, como
lhe tinha dito, e realizou nela o que lhe prometera. Sara concebeu e, na data
marcada por Deus, deu um filho a Abraão, quando este era já velho. Ao filho que
lhe nasceu de Sara deu Abraão o nome de Isaac. Abraão tinha cem anos quando
nasceu Isaac, seu filho. Sara disse: Deus concedeu-me uma alegria, e todos
quantos o souberem alegrar-se-ão comigo."
Há aqui dois tipos de riso: Sara
ri-se para dentro: como é possível, velha, ter um filho? Mas ao filho é dado o
nome de Isaac, que, em hebraico, quer dizer "riso", sendo aqui o riso
um riso intenso de alegria: Isaac também quer dizer "aquele que traz
alegria".
De Jesus diz-nos o Evangelho que
chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro, também sobre Jerusalém. Não se
diz que riu. O nome da rosa, de Umberto Eco, anda também à volta dessa questão.
Mas já Santo Tomás de Aquino observou que é evidente que Jesus riu. A prova:
Jesus é homem e rir é característica essencial do ser humano. Jesus participou
em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos, sem
piadas festivas? O Evangelho testemunha que Jesus experienciou o melhor
sentimento face à vida e ao seu milagre: o do maravilhamento e do
contentamento.
O humor e o riso, repito, são um
sinal evidente de inteligência, desdramatizam a vida, permitem viver de modo
sadio consigo próprio, fazem bem à saúde, abrem transcendências. A Igreja está
atravessada pelo bom humor, porque "um santo triste é um triste
santo". E há piadas fatais. Lá está o dito famoso: ridendo
castigat mores: a rir castiga-se e corrige-se os costumes. Gil Vicente foi
exemplar nisso. Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica mordaz, ácida,
pela palavra e pela caricatura! O que não se pode é cair na boçalidade, pois
esta apenas significa falta de inteligência. O riso também cura a vaidade oca:
"Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu",
escreveu Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a
chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Pegava-se
num subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de bispo, colocado
em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de
costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o
povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o
Magnificat naquele passo: "e Deus derrubou os poderosos e exaltou os
humildes." Chamada a pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de Paris,
justificou-a com a necessidade de dar expansão à crítica, voltando depois a
ordem.
A propósito da força crítica da piada
e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema
do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos,
bispos, monsenhores... Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e,
estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas comentou: "E pensarmos nós,
Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui
crucificado... Lembras-te?" Por isso, respondi uma vez a uma jornalista:
"Não. Jesus não entraria no Vaticano, porque não o deixariam entrar."
Francisco socorre-se também do bom
humor, e todos os dias reza a Oração do bom humor, oração atribuída a São Tomás
Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a
gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos
membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem
falta o bom humor divino: "Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo
para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para
mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não
se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios
para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/
que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os
excessos de stress por causa desse estorvo chamado "Eu"./ Dá-me,
Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa
piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder
partilhá-la com os outros./ Ámen."
08 julho 2022
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga
ortografia
https://www.dn.pt/opiniao/amp/o-humor-o-riso-e-o-divino-15003359.html/
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