OPINIÃO
Fundadora da Rede Afrolink
12 junho 2024
Conhecemo-nos entre pausas para café. Ela e ele estavam em dupla, ao serviço de uma empresa de segurança, eu andava por ali a desdobrar-me entre painéis de discussão.
Conversa puxa conversa, fomos
desfiando trivialidades quotidianas e enormidades trabalhistas quando as
deslocações de Uber se tornaram tema.
Sem que nada o fizesse prever,
ele contou-nos a surpresa de uma das últimas viagens: “Encontrei um corpo na
bagageira”.
Adepta ferrenha de séries e
documentários de investigação criminal, pus-me imediatamente a imaginar um
cenário com sangue, intervenção policial, e um vigilante transformado em herói
acidental. Viajei no meu enredo por escassos segundos, porque depressa a
realidade da descrição se impôs.
Embora o meu horror continuasse a
ser totalmente justificado, e não restassem dúvidas sobre a natureza criminosa
daquela realidade, os motivos eram completamente diferentes.
Para começar, o corpo encontrado
estava bem vivo, e isso, garantiu a testemunha, sobressaía da forma como
roncava.
“Acho que enquanto um dormia, o
outro conduzia e, dessa forma, o carro continuava a girar, sem parar”, apontou,
rápido nas associações. “Não me diga que nunca repararam nas fotos dos
motoristas. Comecem a reparar. Vão ver que muitas vezes não batem certo com
quem apanham ao volante!”.
Assumi que tenho andado
distraída, mais focada em matrículas e cores de carros, quando a colega juntou
à conversa mais uma camada de indignidade quotidiana: “Com o preço que se cobra
por um simples quarto, se calhar a bagageira tornou-se a única possibilidade de
abrigo”.
De repente, instalou-se entre nós
um silêncio sepulcral, e algo cúmplice, próprio de quem partilha a consciência
de que qualquer que fosse a hipótese, ela representaria sempre condições de
vida inaceitáveis num Estado que se quer de Direito, e com direitos para todas
as pessoas.
Reconhecer isso implica ser
humano, característica que, sem aparente constrangimento e com evidente
acolhimento, cada vez mais gente revela não ter, evocando um Estado para “os
nossos”, e um Estado para “as outras pessoas”.
Mas, quem são “os nossos”? Quem
são “as outras pessoas”?
As classificações vêm com uma
série de construções desumanizantes, estrategicamente engendradas por
sucessivos poderes para conservar privilégios, legitimar a exploração
trabalhista, e normalizar violações de Direitos Humanos.
É uma pessoa do nosso tempo, e
não de outro, aquela que, em 2024, despreza
Iqbalh Hossain porque decidiu que ele, por ser do Bangladesh, não é dos
"nossos". Ou, escrito de outro modo, é inferior. Portanto, pouco
importa que, para proteger a filha do racismo e xenofobia crescentes em
Portugal, a tenha retirado do país, e sofra com esse afastamento. O que
interessa é saber se “cumpre as regras”.
São igualmente pessoas do nosso
tempo, ainda que corroídas de saudades de eras imperiais e coloniais, aquelas
que, munidas de protecção policial, desfilam ódio racista pelas ruas e gozam do
estatuto de “nacionalistas”.
A quem serve este rótulo? Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV
Cultura do Brasil, Grada Kilomba puxa pelos nossos questionamentos, a partir
dos seus.
“Não podemos esquecer que essa
questão da nacionalidade e da nação é um dos instrumentos mais violentos, hoje
em dia, em que nós excluímos quem é que pode pertencer e quem não, e quem é que
pode atravessar quais nações. Tudo está ligado, e, portanto, não é nenhuma
surpresa que tantas artistas e pensadoras pensem: ‘Eu estou aqui, mas eu
relaciono-me; a minha relação com o mundo vai para além da ideia de nação’”.
Nascida em Portugal, com raízes
em Angola e São Tomé e Príncipe, residência na Alemanha e uma carreira sem
fronteiras, Grada sublinha que “é muito importante perceber quem é incluído
numa nação, e quem é que pode representar uma nação”. No fundo, “quais são os
corpos que podem representar uma nação, e que podem representar o cânone
nacional, e também quais os corpos que atravessam várias diásporas”, como o
seu.
Lembrando os estragos da
Conferência de Berlim, de 1885, a artista multidisciplinar afirma: “Eu não
estou interessada em representar uma nação. Estou interessada em questionar o
que é uma nação (…) o que é interessante é desmembrar e entender de onde vêm
estas construções [de nação e de nacionalidade], que estão intimamente ligadas
com uma história de violência, com uma história colonial. Portanto, não devem
ser repetidas com simplicidade”.
Mas são, e continuarão a sê-lo
enquanto insistirmos em ignorar o corpo na bagageira. Só e apenas por não ser
“o nosso”.
Fundadora do Afrolink
https://www.dn.pt/1678935828/encontrei-um-corpo-na-bagageira-do-uber-mas-nao-e-dos-nossos/
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