quarta-feira, 19 de junho de 2024

Paula Cardoso - Encontrei um corpo na bagageira do Uber, mas não é dos “nossos”

 OPINIÃO

 * Paula Cardoso 

Fundadora da Rede Afrolink

12 junho 2024

Conhecemo-nos entre pausas para café. Ela e ele estavam em dupla, ao serviço de uma empresa de segurança, eu andava por ali a desdobrar-me entre painéis de discussão.

Conversa puxa conversa, fomos desfiando trivialidades quotidianas e enormidades trabalhistas quando as deslocações de Uber se tornaram tema.

Sem que nada o fizesse prever, ele contou-nos a surpresa de uma das últimas viagens: “Encontrei um corpo na bagageira”.

Adepta ferrenha de séries e documentários de investigação criminal, pus-me imediatamente a imaginar um cenário com sangue, intervenção policial, e um vigilante transformado em herói acidental. Viajei no meu enredo por escassos segundos, porque depressa a realidade da descrição se impôs.

Embora o meu horror continuasse a ser totalmente justificado, e não restassem dúvidas sobre a natureza criminosa daquela realidade, os motivos eram completamente diferentes.

Para começar, o corpo encontrado estava bem vivo, e isso, garantiu a testemunha, sobressaía da forma como roncava.

“Acho que enquanto um dormia, o outro conduzia e, dessa forma, o carro continuava a girar, sem parar”, apontou, rápido nas associações. “Não me diga que nunca repararam nas fotos dos motoristas. Comecem a reparar. Vão ver que muitas vezes não batem certo com quem apanham ao volante!”.

Assumi que tenho andado distraída, mais focada em matrículas e cores de carros, quando a colega juntou à conversa mais uma camada de indignidade quotidiana: “Com o preço que se cobra por um simples quarto, se calhar a bagageira tornou-se a única possibilidade de abrigo”.

De repente, instalou-se entre nós um silêncio sepulcral, e algo cúmplice, próprio de quem partilha a consciência de que qualquer que fosse a hipótese, ela representaria sempre condições de vida inaceitáveis num Estado que se quer de Direito, e com direitos para todas as pessoas.

Reconhecer isso implica ser humano, característica que, sem aparente constrangimento e com evidente acolhimento, cada vez mais gente revela não ter, evocando um Estado para “os nossos”, e um Estado para “as outras pessoas”.

Mas, quem são “os nossos”? Quem são “as outras pessoas”?

As classificações vêm com uma série de construções desumanizantes, estrategicamente engendradas por sucessivos poderes para conservar privilégios, legitimar a exploração trabalhista, e normalizar violações de Direitos Humanos.

É uma pessoa do nosso tempo, e não de outro, aquela que, em 2024, despreza  Iqbalh Hossain porque decidiu que ele, por ser do Bangladesh, não é dos "nossos". Ou, escrito de outro modo, é inferior. Portanto, pouco importa que, para proteger a filha do racismo e xenofobia crescentes em Portugal, a tenha retirado do país, e sofra com esse afastamento. O que interessa é saber se “cumpre as regras”.

São igualmente pessoas do nosso tempo, ainda que corroídas de saudades de eras imperiais e coloniais, aquelas que, munidas de protecção policial, desfilam ódio racista pelas ruas e gozam do estatuto de “nacionalistas”.

A quem serve este rótulo?  Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura do Brasil, Grada Kilomba puxa pelos nossos questionamentos, a partir dos seus.

“Não podemos esquecer que essa questão da nacionalidade e da nação é um dos instrumentos mais violentos, hoje em dia, em que nós excluímos quem é que pode pertencer e quem não, e quem é que pode atravessar quais nações. Tudo está ligado, e, portanto, não é nenhuma surpresa que tantas artistas e pensadoras pensem: ‘Eu estou aqui, mas eu relaciono-me; a minha relação com o mundo vai para além da ideia de nação’”.

Nascida em Portugal, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, residência na Alemanha e uma carreira sem fronteiras, Grada sublinha que “é muito importante perceber quem é incluído numa nação, e quem é que pode representar uma nação”. No fundo, “quais são os corpos que podem representar uma nação, e que podem representar o cânone nacional, e também quais os corpos que atravessam várias diásporas”, como o seu.

Lembrando os estragos da Conferência de Berlim, de 1885, a artista multidisciplinar afirma: “Eu não estou interessada em representar uma nação. Estou interessada em questionar o que é uma nação (…) o que é interessante é desmembrar e entender de onde vêm estas construções [de nação e de nacionalidade], que estão intimamente ligadas com uma história de violência, com uma história colonial. Portanto, não devem ser repetidas com simplicidade”.

Mas são, e continuarão a sê-lo enquanto insistirmos em ignorar o corpo na bagageira. Só e apenas por não ser “o nosso”.

 

Fundadora do Afrolink

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