* Chris Heddges
Original publicado no Sheerpost. Trad.
O.Lima
Após 14 anos de perseguição,
Julian Assange vai ser libertado. Temos de honrar as centenas de milhares de
pessoas em todo o mundo que fizeram com que isto acontecesse.
“A negra engrenagem do império,
cuja falsidade e selvajaria Julian Assange denunciou, passou 14 anos a tentar
destruí-lo. Cortaram-lhe o financiamento e cancelaram as suas contas bancárias
e cartões de crédito. Inventaram acusações falsas de agressão sexual para o
extraditarem para a Suécia, onde seria depois enviado para os EUA.
Encurralaram-no na embaixada do
Equador em Londres durante sete anos, depois de lhe ter sido concedido asilo
político e cidadania equatoriana, recusando-lhe passagem segura para o
aeroporto de Heathrow. Orquestraram uma mudança de governo no Equador que o viu
despojado do seu asilo, assediado e humilhado por um pessoal da embaixada
complacente. Contrataram a empresa de segurança espanhola UC global na
embaixada para gravar todas as suas conversas, incluindo as conversas com os
seus advogados.
Tentaram vezes sem conta
destruí-lo. Não conseguiram. Mas Julian não foi libertado porque os tribunais
defenderam o Estado de direito e exoneraram um homem que não tinha cometido
qualquer crime. Não foi libertado porque a Casa Branca de Biden e a comunidade
dos serviços secretos têm consciência. Ele não foi libertado porque as
organizações noticiosas que publicaram as suas revelações e depois o
descartaram, levando a cabo uma campanha de difamação cruel, pressionaram o
governo dos EUA.
Ele foi libertado - com um acordo
com o Departamento de Justiça dos EUA, de acordo com os documentos do tribunal
- apesar dessas instituições. Foi libertado porque, dia após dia, semana após
semana, ano após ano, centenas de milhares de pessoas em todo o mundo se
mobilizaram para denunciar a prisão do jornalista mais importante da nossa
geração. Sem esta mobilização, Julian não estaria livre.
Os protestos em massa nem sempre
resultam. O genocídio em Gaza continua a ter um impacto terrível nos
palestinianos. Mumia Abu-Jamal continua preso numa prisão da Pensilvânia. A
indústria dos combustíveis fósseis está a devastar o planeta. Mas é a arma mais
potente que temos para nos defendermos da tirania.
Esta pressão sustentada - durante
uma audiência em Londres, em 2020, para meu deleite, a juíza Vanessa Baraitser,
do tribunal de Old Bailey, que supervisiona o caso de Julian, queixou-se do
barulho que os manifestantes estavam a fazer na rua - ilumina continuamente a
injustiça e expõe a amoralidade da classe dominante. É por isso que os espaços
nos tribunais britânicos eram tão limitados e os ativistas de olhos turvos
faziam fila no exterior logo às 4 da manhã para garantir um lugar aos
jornalistas que respeitavam, o meu lugar foi assegurado por Franco Manzi, um
polícia reformado.
Estas pessoas não são elogiadas e
são muitas vezes desconhecidas. Mas são heróis. Movem montanhas. Cercaram o
parlamento. Ficaram à porta dos tribunais sob uma chuva torrencial. Foram
obstinados e firmes. Fizeram ouvir as suas vozes coletivas. Salvaram o Julian.
E quando esta terrível saga terminar, e Julian e a sua família, espero,
encontrarem a paz e a cura na Austrália, temos de os honrar. Envergonharam os
políticos australianos para que defendessem Julian, um cidadão australiano, e
finalmente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos para que desistissem. Não estou a
dizer para fazerem o que está certo. Isto foi uma rendição. Devemos
orgulhar-nos disso.
Conheci Julian quando acompanhei
o seu advogado, Michael Ratner, a reuniões na Embaixada do Equador em Londres.
Michael, um dos grandes advogados de direitos civis da nossa era, sublinhava
que o protesto popular era uma componente vital em todos os processos que
instaurava contra o Estado. Sem ele, o Estado poderia levar a cabo a sua
perseguição de dissidentes, o desrespeito pela lei e os crimes na obscuridade.
Pessoas como Michael, juntamente
com Jennifer Robinson, Stella Assange, o chefe de redação da WikiLeaks,
Kristenn Hrafnsson, Nils Melzer, Craig Murray, Roger Waters, Ai WeiWei, John
Pilger e o pai de Julian, John Shipton, e o irmão Gabriel, foram fundamentais
para esta luta. Mas não o poderiam ter feito sozinhos.
Precisamos desesperadamente de
movimentos de massas. A crise climática está a acelerar. O mundo, com exceção
do Iémen, assiste passivamente a um genocídio transmitido em direto. A ganância
insensata da expansão capitalista sem limites transformou tudo, desde os seres
humanos ao mundo natural, em mercadorias que são exploradas até à exaustão ou
ao colapso. A dizimação das liberdades civis acorrentou-nos, como Julian
avisou, a um aparelho de segurança e vigilância interligado que se estende por
todo o globo.
A classe dominante mundial
denunciou-se a si própria. Tenciona, no Norte global, construir fortalezas
climáticas e, no Sul global, utilizar as suas armas industriais para bloquear e
massacrar os desesperados, tal como está a massacrar os palestinianos.
A vigilância do Estado é muito
mais intrusiva do que a utilizada pelos regimes totalitários do passado. Os
críticos e dissidentes são facilmente marginalizados ou silenciados nas
plataformas digitais. Esta estrutura totalitária - a que o filósofo político
Sheldon Wolin chamou ‘totalitarismo invertido’ - está a ser imposta
gradualmente. Julian avisou-nos. À medida que a estrutura de poder se sente
ameaçada por uma população inquieta que repudia a sua corrupção, a acumulação
de níveis obscenos de riqueza, as guerras intermináveis, a inépcia e a
repressão crescente, as presas que impôs a Julian serão impostas a nós.
O objetivo da vigilância em larga
escala, como escreve Hannah Arendt em ‘As Origens do Totalitarismo’, não é, no
fundo, descobrir crimes, ‘mas estar disponível quando o governo decide prender
uma certa categoria da população’. E porque os nossos e-mails, conversas
telefónicas, pesquisas na Internet e movimentos geográficos são registados e
armazenados perpetuamente em bases de dados governamentais, porque somos a
população mais fotografada e seguida da história da humanidade, haverá ‘provas’
mais do que suficientes para nos prender, caso o Estado o considere necessário.
Esta vigilância constante e os dados pessoais aguardam, como um vírus mortal,
dentro dos cofres do governo, para serem virados contra nós. Não importa quão
trivial ou inocente seja essa informação. Nos Estados totalitários, a justiça,
tal como a verdade, é irrelevante.
O objetivo de todos os sistemas
totalitários é inculcar um clima de medo para paralisar uma população cativa.
Os cidadãos procuram segurança nas estruturas que os oprimem. A prisão, a
tortura e o assassínio são guardados para os renegados incontroláveis, como
Julian. O Estado totalitário consegue este controlo, escreveu Arendt, esmagando
a espontaneidade humana e, por extensão, a liberdade humana. A população é
paralisada pelo trauma. Os tribunais, juntamente com os órgãos legislativos,
legalizam os crimes de Estado. Vimos tudo isto na perseguição de Julian. É um
prenúncio do futuro.
O Estado corporativo deve ser
destruído se quisermos restaurar a nossa sociedade aberta e salvar o nosso
planeta. O seu aparelho de segurança tem de ser desmantelado. Os mandarins que
gerem o totalitarismo corporativo, incluindo os líderes dos dois maiores
partidos políticos, académicos fátuos, especialistas e uma comunicação social
falida, devem ser expulsos dos templos do poder.
Os protestos de rua em massa e a
desobediência civil prolongada são a nossa única esperança. Se não nos
revoltarmos - que é com o que o Estado corporativo está a contar - ver-nos-emos
escravizados e o ecossistema da Terra tornar-se-á inóspito para a habitação
humana. Aprendamos uma lição com os homens e mulheres corajosos que saíram à
rua durante 14 anos para salvar Julian. Eles mostraram-nos como se faz.”
Posted by OLima at quarta-feira, junho 26, 2024
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