quarta-feira, 19 de junho de 2024

Paula Cardoso - Era uma vez esta crónica

 ENTRE MEADAS -

* Paula Cardoso

Fundadora da Rede Afrolink

19 junho 2024

"Escrever sobre o quê, afinal?”. Conto, no prefácio do primeiro livro que publiquei, da minha marca “Força Africana”, que, a determinada altura da infância, vivia obstinada em me encontrar naquilo que lia.

Passo a especificar: “Lembro-me, a certa altura, de inspeccionar com minúcia as ilustrações a preto e branco de um dos livros da minha colecção favorita, numa procura obsessiva por um reflexo da minha identidade. Este é como nós, cheguei a celebrar com uma das minhas irmãs, que rapidamente me arrancou desse ansiado lugar de pertença. Ele não era como nós. Nenhum dos personagens, apresentados naquela ilustração mal impressa, era como nós.”

Trago este pedaço de memória já publicada para enquadrar a resposta àquela pergunta, que se repete a cada espaço de opinião que ocupo: “Escrever sobre o quê, afinal?”.

Quando o Ricardo Cabral Fernandes me desafiou para assinar uma crónica no Setenta e Quatro, explicando que se estava a construir um projecto plurivocal, fez questão de não me fechar numa caixa. Disse-me mais ou menos isto: “Como é óbvio, tens liberdade para escrever sobre o que quiseres. Não te sintas obrigada a falar sobre racismo.”

Pouco depois, ouvi a mesma prescrição de amplitude temática do Gerador, onde entrei por convite da então responsável editorial, Andreia Monteiro.

Com a entrada para o DN, no início deste ano, sob recomendação de Nuno Ramos de Almeida e direcção de José Júdice, o acolhimento não foi diferente, mas, no meu percurso, representou uma diferença assinalável. Pela primeira vez em cerca de 20 anos de imprensa escrita, pude assinar opinião num media mainstream, saindo da bolha dos nichos, onde me fiz visível com o Afrolink.

Notei a mudança logo ao primeiro texto, porque, ao contrário do que observei no Setenta e Quatro e no Gerador, onde as audiências convivem regularmente com a temática racial, no DN estas discussões ainda suscitam repúdio, tornando-se, aos meus olhos, especialmente necessárias.

Aliás, quando dei a esta crónica o nome “Entre Meadas”, pensava na urgência de criarmos espaços de resistência a ruídos de polarização, e a manobras de exclusão de vozes sub-representadas. Continuo a defender a importância de o fazermos, mas deixarei de o fazer por aqui.

Por decisão da actual direcção, que me foi comunicada por e-mail na semana passada, e justificada por constrangimentos financeiros, este é o meu último artigo nesta coluna.

“Escrever sobre o quê, no final?”. 

Escolhi trazer a “Força Africana”, porque foi a partir dela que, conscientemente e assumidamente, comecei a fazer da escrita arma e resistência.

Se escrevo sobre racismo, não é por falta de tema, mas por causa do sistema.

Num espaço mediático povoado de redacções sem diversidade nem consciência étnico-racial, onde as vidas negras são demasiadas vezes reduzidas a estereótipos e notas de rodapé, como não escrever sobre a minha identidade negra, profundamente atravessada pelo racismo?

Sinto o dever de o fazer e, mais do que isso, de honrar todas as vozes que, muito antes da minha, deram a vida para que hoje eu possa ocupar este lugar.

Embora não me veja como porta-voz de ninguém, a não ser de mim própria, sei bem a importância que a minha simples presença pode ter junto de outras pessoas negras, sobretudo crianças e jovens.

Não me caso de partilhar, por exemplo, como precisei de ver o José Mussuaili a apresentar notícias na televisão, para começar a olhar para o jornalismo como uma possibilidade.

Continuar a ter de escrever sobre isto, em 2024, é exasperante. Reconhecer que pouco mudou cerca de três décadas depois é desolador.

E, regressando ao prefácio da “Força Africana”, despeço-me com as palavras da professora Eugénia da Luz Silva Foster, para quem importa reconhecer que “a discriminação racial ocorre também pela invisibilidade, pelos silêncios e pelas ausências, quer nos textos literários, quer nas imagens, nas ilustrações, que ensinam a desvalorização do negro”.

Seja onde for, continuarei a escrever contra isso.

https://www.dn.pt/2934567558/era-uma-vez-esta-cronica/

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