O Álvaro Cunhal que poucos conhecem
por NOTÍCIAS MAGAZINE
12/11/2013
Texto de Catarina Pires
Não queria biografias, abominava
endeusamentos, recusava o culto da personalidade. Sempre foi mal interpretada a
sua vontade de manter privada a parte da vida que o era. Não o fazia para
adensar mistérios, criar auras ou espalhar charme, mas por uma ética que lhe
era intrínseca. Via-se como um homem simples, igual a todos os outros, cuja
vida pessoal não deveria interessar a ninguém a não ser a si próprio e aos que
lhe eram íntimos. Com estes não tinha reservas. Falava sobre tudo. Queria saber
tudo.
Deve ser por isso que o meu Álvaro
Cunhal é diferente daquele sobre quem por vezes leio em livros, grandes
reportagens ou artigos de opinião. Deve ser por isso que a primeira vez que o
reencontrei num escrito foi numa entrevista que a filha, Ana Cunhal, deu, em
2010, ao jornalista Nuno Tiago Pinto, na revista Sábado. Estava lá
o Álvaro que conheci: afetuoso, atencioso, generoso, paciente, indulgente, com
um enorme sentido de humor. O Álvaro que, aos 84 anos, encontrou espaço na sua
vida para mais uma pessoa, uma miúda de 24 anos, com quem gostava de conversar,
perceber que mundo era o dela, como o via e porque o via assim.
Álvaro Cunhal, que dedicou a vida a
dar um novo sentido a esta frase, lutando para que todos tivessem
circunstâncias que lhes permitissem ser aquilo que quisessem, contrariou-a.
Escolheu o caminho mais difícil. O único possível. Nunca se arrependeu. E foi
feliz.
É por esse Álvaro que escrevo este
texto. Esse Álvaro que podia ter sido o que quisesse – e foi escritor, artista
plástico, ensaísta, teórico, tradutor –, mas que aos 17 anos decidiu que o
queria era juntar-se ao Partido Comunista Português e lutar por um projeto de
sociedade que considerava ser o mais justo para o seu país. Por causa dessa
luta sofreu prisões, torturas, a vida clandestina, longe daqueles a quem amava,
a mãe, o pai, a irmã, a avó e mais tarde a filha. «O homem é ele próprio e as
suas circunstâncias» dizia Ortega y Gasset. Álvaro Cunhal, que dedicou a vida a
dar um novo sentido a esta frase, lutando para que todos tivessem
circunstâncias que lhes permitissem ser aquilo que quisessem, contrariou-a.
Escolheu o caminho mais difícil. O único possível. Nunca se arrependeu. E foi
feliz.
Ainda consigo ouvir a voz incrédula
da minha mãe, há 16 anos, com o auscultador do telefone a tremer-lhe na mão:
«Catarina, é o Dr. Álvaro Cunhal. Quer falar contigo.» E depois a voz dele, bem
humorada: «Sabes quem fala?». Era junho de 1997, creio, e a razão do telefonema
era saber como estava e que nota tinha tido no trabalho que fiz sobre ele para
a faculdade. Que o 17 podia ter sido melhor. Que continuasse a fazer coisas
bonitas. «Até um dia destes.»
Na minha cabeça, ensaiava o que ia
dizer, ensaiava a naturalidade com que ia fazê-lo. E eis que ele aparece. Não
enorme, não sério, não distante. Afável. Estende-me a mão, sorri com aquele
sorriso e trata-me por tu. Acho que foi aí que ficámos amigos
Uns meses antes, então estudante de
Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, tinha pedido um encontro com ele. Queria a sua
colaboração para o tal trabalho, que era sobre ele e a sua incursão pelas artes
plásticas. Não o conhecia, a não ser da televisão e dos jornais e das histórias
que o meu pai contava. O meu pai era, e é, militante do PCP. Não sei se isso
teve importância na apreciação do meu pedido, mas este foi atendido.
No dia e hora marcados, lá estava eu,
na sede do PCP, na Soeiro Pereira Gomes. Encaminhada para uma das salas de
reuniões do piso térreo, tremia. Também não sou de endeusamentos, mas estava
prestes a conhecer um herói, um homem cuja luta e ação moldaram a história do
século XX português. E uma miúda de 22 anos, por mais lata que tenha, não é de
ferro. Imaginava-o enorme, sério, distante. Na minha cabeça, ensaiava o que ia
dizer, ensaiava a naturalidade com que ia fazê-lo. E eis que ele aparece. Não
enorme, não sério, não distante. Afável. Estende-me a mão, sorri com aquele
sorriso e trata-me por tu. Acho que foi aí que ficámos amigos, apesar de só
muito tempo depois «oficializarmos» a coisa, no último diálogo do livro de
conversas que «escrevemos» juntos: «Não sou apenas amigo de camaradas do meu
partido. Sou-o e sou capaz de sê-lo de pessoas que têm opiniões muito críticas
em relação a conceções e posições do PCP e naturalmente às minhas. Tive ao
longo da vida, como uma das maiores riquezas, muitos e muitos amigos, a
acompanhar-me, a estimularem-me na luta e na vida. Continuo a tê-los. E também,
na medida em que vou conhecendo e conhecendo melhor pessoas que não havia
conhecido passo a estimá-las e vejo que posso ganhá-las como amigos e de vir a
ser amigo delas. De ti, por exemplo.» «Obrigada, igualmente».
Da segunda vez que o Álvaro Cunhal
telefonou para casa dos meus pais, fui eu que atendi. Tinha-lhe
pedido uma entrevista para a Notícias Magazine, onde entretanto
estava a estagiar, e que ele tinha recusado. Não queria dar entrevistas. Mas,
«Catarina, estive a pensar na tua proposta e se em vez de uma entrevista,
fizéssemos uma série de conversas? Se saírem bem, publicamos um livro.»
Silêncio. Como aceitar? Como recusar? Meses de preparação. Dezenas de encontros
semanais na sala E da Soeiro Pereira Gomes. Cerca de dezoito horas de
conversas. E o livro saiu. Cinco Conversas com Álvaro Cunhal. Era
abril de 1999.
Recorrendo ao prefácio que escrevi
para a segunda edição, de setembro de 2013, percebo agora que o tempo é a noção
mais relativa, sinto que foi há uma eternidade e no entanto ao lê-lo, volto lá
e é como se tivesse sido há bocadinho e o Álvaro não tivesse morrido e eu não
tivesse crescido e nós estivéssemos no balcão do bar da sede do PCP, ele a
explicar-me divertido o que são peixinhos da horta. E esse é o maior
privilégio. Poder sempre voltar lá.
Poder sempre ler estas conversas e
ouvi-las, adivinhar o que dissemos a seguir, ouvir-nos as vozes, a dele e a
minha, ora serenas, ora exaltadas, ora divertidas, mas sempre de boa fé.
Reconhecer nestas conversas, agora, 14 anos depois, a imensa generosidade e
paciência do Álvaro para as minhas perguntas provocadoras, para as minhas
dúvidas cheias de certezas, para as minhas opiniões, tantas vezes pueris.
Descobrir-lhes, nele, o gosto de ouvir, de discutir, de partilhar e até de
aprender; em mim, a capacidade de pensar, o atrevimento de perguntar, a vontade
de descobrir.
Falámos de tudo, de história, de
política, de ideias, de pessoas, do mundo, de livros, de pintura, de comida, de
amizade, de amor, de sexo, de ódio, de vingança, da vida. E ao longo das
conversas, não só pelo que diz, mas também pelo que não diz e sobretudo pela
forma como faz uma coisa e outra, Álvaro Cunhal dá-se a conhecer melhor.
Da primeira vez que entrei em sua
casa, pespineta, pensei que o tinha apanhado. Os óleos na parede assinados A.
Cunhal [o Álvaro não assinou nem deu título a nenhum dos seus desenhos a carvão
ou pinturas a óleo]. «Afinal, assinaste alguns!». O riso glorioso dele: «não,
são do meu pai, Avelino Cunhal.».
As conversas continuaram. Ainda
guardo o desenho que me fez com o mapa para chegar a sua casa, nos Olivais,
assim como três dos muitos «desenhos das reuniões» que tinha guardados e que me
ofereceu, para responder à minha exuberante curiosidade sobre eles. Durante os
cinco anos seguintes visitei-o muitas vezes. Ao contrário da imagem pública que
dele se tem, era um homem muito atencioso e carinhoso. Fazia questão de abrir a
porta do elevador, à entrada e à saída e, com a convivência, o aperto de mão
foi substituído por dois beijinhos. De vez em quando um abraço, quando o
intervalo de tempo o pedia.
Da primeira vez que entrei em sua
casa, pespineta, pensei que o tinha apanhado. Os óleos na parede assinados A.
Cunhal [o Álvaro não assinou nem deu título a nenhum dos seus desenhos a carvão
ou pinturas a óleo]. «Afinal, assinaste alguns!». O riso glorioso dele: «não,
são do meu pai, Avelino Cunhal.». Já não me lembro do que falávamos. Não
costumo tomar notas das conversas que tenho com amigos. Da minha vida, do meu
trabalho, ele perguntava-me sempre se andava a fazer coisas bonitas. Do que se
passava no país. Dos livros que ele ainda estava a escrever e de que me ia
contando partes. De ciência, era um apaixonado por todas as novas descobertas
científicas. Mas também de filmes, de programas de televisão. Nunca só de
política.
Até porque, como ele revelou, com
graça, a certa altura no nosso livro: «O convívio, que eu aprecio, não é só com
caras sérias. É uma sensaboria se as pessoas só sabem funcionar no sério.
Trabalhei sempre muito, estudei muito, a atividade política teve sempre uma
grande intensidade, mas não gostava que fosse só isso a vida. E, por isso,
estar por exemplo a comer e a falar de política, levantar e falar de política,
ir para casa para junto dos filhos falar de política, para a mulher falar de
política, para a avó falar de política, para o tio falar de política – não,
isso não gostava nem gosto. A par do trabalho político intenso, gosto de um
convívio livre e descontraído sobre as coisas simples da vida, do valor das
pequenas coisas.»
Era disso que falávamos, de grandes e
pequenas coisas. E muitas vezes era nas pequenas coisa que se revelava.
Lembro-me que depois de um presente de aniversário falhado, um livro, que
aceitou, mas não tinha condições de ler porque os olhos já não permitiam,
ofereci-lhe num Natal um pullover verde, que fez questão de
trazer vestido no encontro seguinte.
A última vez que falámos foi uns
meses antes da sua morte. Liguei a saber dele e quando podia apresentar-lhe o
meu filho João, nascido há pouco tempo. Lamentou não estar em condições de nos
receber. Perguntou por ele. Como era. Se se portava bem. Despedimo-nos. Senti
que não voltaria a vê-lo. No dia 13 de junho de 2005 soube que não. Que não
voltaria.
MEMÓRIA
Se Álvaro Cunhal fosse vivo, hoje
almoçaria cozido à portuguesa com o seu amigo e camarada, o médico Ludgero
Pinto Basto. Era isso que estava combinado. Quando fizessem cem anos, primeiro
o Ludgero, quatro anos mais velho, depois o Álvaro, celebrariam juntos, à volta
de um cozido. A morte, em 2005, com um mês de diferença, quebrou-lhes o
compromisso.
https://www.noticiasmagazine.pt/2013/o-alvaro-cunhal-que-poucos-conhecem/historias/1635/
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