Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
Carlos Coutinho - Pois é…
Bárbara Reis - SIC e CNN e aquele partido
LIVRE DE ESTILO
Uma newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.
Bárbara Reis
31 de janeiro de 2024
É fácil
criticar as televisões: fazem coisas boas, mas vivem para as audiências, cortam
a palavra a políticos para a darem a futebolistas, fazem maratonas de directos
sem nada de novo, alimentam a superficialidade, copiam os jornais.
É tudo sabido.
O que me traz
aqui hoje é a cobertura que as televisões estão a fazer do Chega.
Não escrevi
"Chega" no título e optei pela fórmula
"RAPiana" do Programa cujo nome estamos legalmente
impedidos de dizer. Podia dizer "Chega" – e o Chega
agradecia – mas não vale a pena.
Vou dar dois
exemplos de como as televisões estão a ajudar o Chega a crescer. É literal.
Não terá
reparado, mas na quarta-feira, dia 24, o Chega anunciou que ia fazer
um "congresso eleitoral" no sábado, 27, em Sacavém, entre as 15h
e as 19h, para apresentar "as linhas fundamentais" do seu programa
eleitoral. Como o partido teve um congresso há duas semanas, o anúncio causou estranheza.
Mais um congresso?
O que fizeram
os media com este anúncio?
Às 19h20,
o Correio da Manhã publicou uma notícia com o título ‘Cortar
a direito pela decência’: André Ventura aponta critério do Chega sobre casos de
corrupção. A notícia tem 1500 caracteres e refere o "Congresso
Eleitoral do Chega", mas em nenhum momento fala das "linhas
fundamentais" do programa eleitoral do partido, as tais que iam ser
apresentadas.
A seguir, às
19h42, a agência Lusa publicou uma peça, com o título Eleições: Ventura
acusa PSD de incoerência e PS de preparar ‘maior ataque à justiça’ se vencer.
Tem 2200 caracteres e, de novo, nem uma palavra para as "linhas
fundamentais". Que tenha visto, só a Rádio Renascença publicou esse "take"
da Lusa. Muitos media optaram por ignorar, não publicaram a
Lusa e não enviaram repórteres para Sacavém.
O que fizeram
as televisões nesse sábado com o congresso-que-não-era-um-congresso? Um
festim.
A SIC Notícias
fez um directo do pseudo-congresso às 16h19. Três minutos. Às 17h37 fez um novo
directo. Mais três minutos. Mal acaba o directo, entrevista a uma analista,
Cátia Moreira de Carvalho, da Universidade do Porto – a investigadora num canto
e imagens do "congresso" em dois terços do ecrã. Mais cinco minutos.
A seguir, Paulo
Baldaia e Maria João Marques aparecem a comentar. O quê? O Chega. No rodapé:
"Chega realiza convenção eleitoral". O que ocupa a maior parte do
ecrã? Ventura, claro. Falam até às 18h18, quando Ventura começa o discurso –
que é um comício, não é a apresentação de "linhas fundamentais".
Das 18h18 às
18h23, a SIC Notícias dá o discurso em directo. Mais cinco minutos. A seguir,
os comentadores regressam e voltam a comentar o Chega. Já vamos em quantos
minutos sobre um congresso que não é um congresso? Corta para publicidade e, às
19h08, a SIC Notícias emite uma peça sobre o discurso de Ventura. Mais dois
minutos. Seguido de quê? Da análise de Sebastião Bugalho e Miguel Morgado.
Sobre o quê? Ventura. Estamos nisto até às 19h21.
Na CNN, a festa
foi parecida. Entre as 18h e as 20h30, o Chega e Ventura estão perto de
omnipresentes. Às 18h16, Sara de Melo Rocha, pivot, diz "por
falar em extrema-direita", como forma de anunciar que a estação vai
"acompanhar a apresentação do programa eleitoral", Ventura já está a
falar no não-congresso e entra em directo.
O líder do
Chega está a dizer que "o país ficará espantado", pela positiva, com
o seu programa eleitoral, há muitas palmas, mas "linhas
fundamentais", zero. Até às 18h21, Ventura fala em directo sobre a
"podridão", "degradação" e "corrupção", no seu
habitual retrato de Portugal como o país mais decadente do planeta.
A pivot Melo
Rocha corta o directo e resume: "Para já, ainda não há medidas
apresentadas". Percebe-se o esforço. Mas alguém acreditou que ia haver? A
maioria dos media não acreditou e nem foi a Sacavém.
Cinco minutos
depois, o Chega regressa à CNN, com dois comentadores, Miguel Pinheiro e Paulo
Ferreira. Como antes, os dois disseram coisas úteis e incisivas. Ferreira disse
que está "curioso para ver o programa eleitoral do Chega" para
"perceber a consistência das políticas", "e já agora", que
"propostas exequíveis têm" – como quem diz, ainda não vimos nenhuma.
Pinheiro desmonta a hipocrisia da proposta do Chega para a TAP e faz um
alerta – o silêncio dos partidos sobre a Madeira, que deixam Ventura a
falar sozinho, tem um resultado: "Estendem o tapete vermelho a
Ventura."
Será verdade:
os partidos têm uma quota-parte de responsabilidade. E as televisões, qual é a
sua quota? Os dois falam do Chega até às 18h31. O noticiário da CNN prossegue.
Às 19h lá regressa o Chega, a criticar o PSD. Mais um minuto. Às 19h16, mais
dois comentadores, André Macedo e Miguel Santos Carrapatoso, e aparece de novo
Ventura em directo a fechar o "congresso" com a bandeira de Portugal
ao ombro.
A seguir, das
20h16 às 20h31, a CNN entrevista dois constitucionalistas: Jorge Bacelar Gouveia (que foi à última academia de
Verão do Chega) e Luís Menezes Leitão (cujo assistente na Universidade de
Lisboa era João Lemos Esteves, fã incondicional do Chega e director
de sites de extrema-direita dedicados a propagar fake
news). Não digo que a CNN não os oiça como especialistas em Constituição,
mas os dois ao mesmo tempo e durante 15 minutos?
Volta a crise
na Madeira – foi na sexta-feira que o presidente da câmara do Funchal anunciou a demissão – e a CNN anuncia uma peça para as reacções.
São 20h31 e o pivot diz: "Seguimos para reacções
políticas." Quem abre a sequência de reacções? Acertou: o Chega. Ventura
fala do "congresso" durante um minuto inteiro. Só depois vem a
reacção do PS, IL, BE e Livre. Já agora, daria uma newsletter mais
longa comparar os minutos (muitíssimo menos) que as televisões deram neste
mesmo sábado ao Livre, que teve um congresso – verdadeiro, foi o 13.º, durou
dois dias e debateu-se o programa –, e ao PS, que teve um fórum (a palavra
escolhida) para discutir propostas, durante o qual Pedro Nuno Santos anunciou
propostas novas e concretas.
Já terá perdido
a paciência com tanto pormenor. Isto é só um exemplo: um pseudo-evento e duas
televisões. O Chega cresce por muitas razões. As televisões não podem pôr a
cabeça na areia e fazer de conta que nem sabem do que estamos a falar.
https://www.publico.pt/2024/01/31/newsletter/livre-estilo
Novo livro da saga Millennium, sem Stieg Larsson
Novo livro da saga Millennium,
sem Stieg Larsson, editado em Portugal em 2015
Oceanos editará o quarto livro da
saga best-seller, que será escrito pelo sueco David Lagercrantz,
autor da biografia do futebolista sueco Zlatan Ibrahimovic
18 de Dezembro de 2013, 13:2
Um novo livro da saga Millennium de
Stieg Larsson, já assinado por um novo escritor, será editado em Portugal em
2015, confirmou esta quarta-feira ao PÚBLICO a LeYa, que através da sua
chancela Oceanos publicou já Os Homens que Odeiam as Mulheres, A
Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo e A
Rainha no Palácio das Correntes de Ar. Na terça-feira, a editora sueca
Norstedts anunciou que a trilogia terá uma sequela, desta feita assinada pelo
sueco David Lagercrantz – autor da biografia I am Zlatan, do
futebolista sueco Zlatan Ibrahimovic, que se tornou no livro mais rapidamente
vendido da Suécia em 2011.
O livro de Lagercrantz está
previsto para Agosto de 2015 na Suécia, exactamente dez anos depois do
lançamento do primeiro volume da trilogia Millennium, que vendeu
mais 75 milhões de livros em todo o mundo e é um dos fenómenos literários da
primeira década do século XXI. Em Portugal, segundo dados da LeYa, os três
livros venderam já mais de 157 mil exemplares (119 mil na sua edição original e
quase 38 mil na versão BIS, a colecção de livros de bolso).
Pouco se sabe ainda sobre o
caminho que a história da hacker Lisbeth Salander e do
jornalista de investigação Mikael Blomkvist tomará nas mãos de Lagercrantz,
também ele um ex-jornalista que começou a sua carreira a cobrir casos de crimes
e serial-killers, como diz o britânico Telegraph. A BBC
escreve que o novo livro contará com as personagens centrais da história de
Larsson e que algumas das linhas narrativas da intriga dos três primeiros
livros serão recuperadas.
Mas a directora da editora sueca,
Eva Gedin, garantiu à Associated Press (AP) que este quarto livro é
independente dos anteriores tomos e que será uma obra original que nada contém
do esboço não terminado deixado por Larsson antes da sua morte. Para ela,
citada pelo diário sueco Aftonbladet, as personagens criadas por
Larsson são tão fortes que hoje se sustentam por si e agora terão uma segunda
vida às mãos de Lagercrantz. Eva Gabrielsson, companheira de Larsson até à sua
morte, manifestou ao jornal sueco a sua preocupação com o facto de Lagercrantz
poder não lidar correctamente com os temas sociais e políticos subjacentes à
intriga policial da obra de Larsson. E foi taxativa: “Stieg nunca o teria
permitido. Ele era muito cuidadoso com a sua obra”, disse, acrescentando que “é
de mau gosto tentar fazer mais dinheiro” a partir destes livros.
A história da feitura da
trilogia Millennium, ela própria digna de um romance com uma
intriga finalizada com um revés dramático, é bem conhecida: Stieg Larsson,
jornalista e escritor, terminou os primeiros três de uma série que planeava que
tivesse dez livros e morreu de ataque cardíaco em Novembro de 2004, aos 50
anos, antes de ver a saga de Lisbeth Salander e do seu suposto alter-ego Mikael
Blomkvist explodir em popularidade em 50 países e dar origem a quatro filmes -
três suecos e um made in Hollywood.
Os policiais, e típicos page
turners, viram-se envoltos na luta judicial entre o pai e o irmão de
Larsson e a sua companheira Eva Gabrielsson em torno dos direitos sobre o
legado literário do escritor - Gabrielsson terá o computador portátil em que o
escritor tinha esboçado cerca de três quartos de um quarto volume de Millennium.
Stieg Larsson morreu sem deixar em testamento os seus desejos quanto ao seu
espólio e obra e, como não eram casados, a batalha judicial adensou-se e Eva
Gabrielsson, também ela escritora, recusou revelar mais detalhes sobre a obra
inacabada até que lhe sejam atribuídos os direitos sobre o legado literário de
Larsson.
O amigo e colega de Larsson,
Kurdo Baksi, contou há três anos ao diário sueco Expressen alguns
desses detalhes que Gabrielsson quererá manter em segredo, nomeadamente que os
planos de Larsson nesse quarto volume davam mais protagonismo à irmã gémea de
Lisbeth,Camilla, e que levaria Blomkvist a vários países, como Irlanda, Suécia
e EUA. No livro
de Gabrielsson, Millennium, Stieg et moi (2011), ela
própria avança que o título de trabalho para o livro inacabado seria A
Vingança de Deus.
À BBC, Eva Gedin explicou agora:
“Decidimos deixar alguém tomar conta [da saga] e contar o que aconteceu a
seguir”. "Obviamente estamos muito entusiasmados. Acreditamos ter
encontrado um autor soberbo para este projecto”, disse a directora, desta feita
à AP. Lagercrantz, que aos 51 anos é autor de vários romances e de livros de
não-ficção como I Am Zlatan, é também citado pela BBC dizendo que
“já começou a escrevê-lo” e que “é terrivelmente divertido. É um mundo
fantástico onde entrar”.
Lagercrantz vive no bairro sueco
de Södermalm que Larsson retratou nos seus policiais e que é agora uma espécie
de local de romaria para turistas literários que visitam os cenários dos livros
e dos filmes. A Nordstedts descreve-o em comunicado como alguém que “procurou
constantemente na sua escrita personagens bizarras e génios complexos”.
https://www.publico.pt/2013/12/18/culturaipsilon/noticia/quarto-livro-da-saga-millennium-sem-stieg-larsson-editado-em-portugal-em-2015-1616751
A saga Millennium continua – o 7º volume
A saga Millennium continua
– a Pipi das Meias Altas tem tatuagens e piercings
Os três
primeiros livros da série foram um fenómeno. As preocupações sociais de Stieg
Larsson inovaram. O 7.º volume chama-se A Rapariga nas Garras da Águia,
foi escrito por Karin Smirnoff.
José Riço
Direitinho
31 de Janeiro de 2024, 20:30
Quase vinte
anos depois de ter sido publicado na Suécia o primeiro volume da saga Millennium – Os
Homens Que Odeiam as Mulheres (D. Quixote, 2009) – do malogrado
jornalista e escritor sueco Stieg Larsson (1954-2004), os livros desta série já
venderam mais de cem milhões de exemplares em todo o mundo. Que fenómeno é
este? Para se responder, é necessário recuar ao tempo da publicação do primeiro
livro e à mudança de paradigma que representou na literatura policial.
Nos meses
seguintes à sua publicação, esse volume vendeu cerca de dois milhões de
exemplares num país que tem uma população de nove milhões de habitantes. Anos
depois, em 2007, e de acordo com a revista The Bookseller, o seu
autor ocupou o segundo lugar da lista dos mais vendidos em todo o mundo, à
frente de Ken Follet, Stephenie Meyer e J. K. Rowling.
Quais foram as
razões do sucesso internacional (países nórdicos à parte, pois aí elas serão
mais ou menos óbvias) dos três livros de Larsson – a série continuou depois da
sua morte, mas pelas mãos de David
Lagercrantz e de Karin Smirnoff, mas já lá iremos – que falam apenas
da sociedade sueca, da cartografia de Estocolmo, da solidão e da frieza
nórdicas, mas sobretudo das falhas de um Estado que se supunha modelar e que
afinal parece ser controlado por poderosas e ocultas forças malévolas? Porque é
que um leitor português, grego ou israelita – e não apenas os suecos, ou os
nórdicos – também corre o risco de ficar agarrado (literalmente) aos livros
lendo-os sem pensar na manhã seguinte? Fez esta trilogia de Larsson parte da
onda de romances policiais nórdicos que se tornou moda um pouco por todo o
mundo? O que é mesmo o “policial nórdico”?
Comecemos então pelo princípio. Os hábitos de leitura são parte da tradição cultural dos nórdicos desde há muito tempo. Eles são tidos como os maiores leitores do mundo, não apenas de livros, mas também em números de jornais e de revistas existentes. Nos anos 1970, uma dupla de autores suecos, marido e mulher, Per Wahlöö e Maj Sjöwall, assinaram os primeiros êxitos de livros policiais e criaram a figura do primeiro “inspector” sueco, Martin Beck. O modelo usado para a personagem principal e para a arquitectura dos romances estava ainda muito preso ao que era tido (e ainda é) como canónico no género, o hard-boiled norte-americano, muito estereotipado, apesar de já aflorar questões sociais.
A Rapariga nas
Garras da Águia
Autoria: Karin Smirnoff
Tradução de Maria de Fátima Carmo
Editora: Dom Quixote
496 págs., 23,30€
Efeito Olof Palme
Segundo alguns
críticos e outros estudiosos do género, foi só a partir de finais da década de
80 que o “policial” escrito por autores nórdicos se começou a alterar, e houve
uma razão forte para isso: a sociedade sueca não se refez do assassinato
do primeiro-ministro social-democrata Olof Palme numa rua do centro de
Estocolmo, em 1986, quando, perto da meia-noite, regressava a casa com a
mulher, a pé e sem guarda-costas dirigindo-se para o metro, depois de terem
assistido a uma sessão de cinema.
O crime
continuou por resolver durante décadas, apesar das muitas pistas de teorias da
conspiração seguidas (desde os independentistas curdos do PKK aos que se
opunham ao fim do apartheid na África do Sul, passando pela
CIA e por vários delinquentes menores com problemas de drogas e de alcoolismo).
As questões emocionais relativas a este caso demoraram a ser esquecidas, não
apenas pela ausência de resposta à pergunta “quem foi?”, mas sobretudo por ter
levantado pela primeira vez entre os escandinavos problemas mais complexos
sobre a sociedade moderna, o espaço privado, a tolerância e a violência.
O género policial foi o único que quase de imediato abordou estas questões, e tentou, de uma maneira ou de outra, minimizar todos aqueles estragos emocionais. O modelo foi-se alterando aos poucos, os autores suecos (e por extensão também os dos outros países nórdicos) deixaram de estar apenas interessados em resolver o puzzle constituído pelos factos mais ou menos óbvios de um crime, ou na montagem de uma experiência voyeurista violenta para oferecer ao leitor, e passaram a centrar-se mais nas causas e nos efeitos de um acto violento no tecido social, aprofundando um pouco mais as personagens, obviamente nunca deixando de lado o importante aspecto lúdico. Como se o novo romance policial tivesse vindo ocupar na Escandinávia o lugar do romance realista do século XIX.
O “crime
nórdico” passou a ter quase sempre uma inscrição no campo social. Na literatura
policial que se escreveu na década de 2010, raros foram os casos de histórias
em que o acto violento era apenas passional, ou familiar, ou então entre sócios
desavindos por alguns milhões roubados. Houve sempre a presença extra de uma
qualquer força dificilmente controlável, quer fosse política, económica ou
mesmo religiosa. E, como consequência, as personagens principais deixaram de
ser obrigatoriamente apenas os habituais polícias ou detectives privados,
homens de meia-idade com alguns problemas com álcool, e passaram a ser também
os advogados intuitivos, os jornalistas de investigação ou os hackers (esta
foi a novidade trazida pela série Millennium).
Alguns
escritores que até então se dedicavam à escrita de livros da literatura chamada
“séria” converteram-se em autores de best-sellers – é o caso
do sueco Henning Mankell e da norueguesa Karin Fossum, até então uma aclamada
poeta. Com este input cultural, o género fortaleceu-se e em
muitos casos as fronteiras entre literatura “séria” e “policial”
desapareceram; um dos primeiros casos surgidos foi o do dinamarquês Peter Høeg
com o romance A Senhora Smilla e a Sua Especial Percepção da Neve.
A juntar a isto tudo, há ainda a tradição cultural das sagas nórdicas, de que
foi recuperado o seu “grande sentido de tragédia”, como referiu o norueguês Jo
Nesbø numa entrevista.
A continuação
Mas a
série Millennium continuou após a morte do seu criador, que no
início a tinha previsto para dez volumes (escreveu apenas três). Para a
continuar, foi escolhido um sueco, David Lagercrantz (n. 1962), que até então
era conhecido por escrever biografias de importantes figuras suecas, entre as
quais o futebolista Zlatan Ibrahimovic. Manteve as duas personagens centrais: o
par do jornalista cínico (Mikael Blomkvist) e da hacker abusada,
vulnerável, que transforma agonia em energia, a carismática Lisbeth Salander,
uma das mais originais heroínas romanescas dos últimos tempos, uma espécie de
reconversão da Pipi das Meias Altas (foi o próprio Stieg Larsson quem faz a
comparação) em justiceira pós-moderna, num “factor de entropia no caos”.
Os livros
escritos por Lagercrantz não deixaram de ter essa inscrição social que
caracterizava a trilogia inicial, tendendo mesmo a actualizar os assuntos para
adequar os romances a tempos mais actuais. Por exemplo, no sexto volume, A
Rapariga que Viveu Duas Vezes, a morte de um sem-abrigo vai aos poucos
ficando inesperadamente associada ao ministro da Defesa sueco; Lagercrantz
continuou a ligar escândalos políticos e jogos de poder com novas tecnologias,
genética, "fábricas" de trolls que criam e difundem
notícias falsas, influenciadores de resultados de eleições, etc. A personagem
Lisbeth Salander é, entretanto, dada como desaparecida, mas o leitor encontra-a
em Moscovo a ajustar contas com a irmã Camilla, e "desta vez será o
caçador e não a presa, será o gato e não o rato".
Stieg
Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava, com um olhar frio
do mundo expresso num tom jornalístico e furioso
Mais
recentemente foi publicado o sétimo volume da série, A Rapariga nas
Garras da Águia, escrito por Karin Smirnoff, uma das autoras de maior
sucesso na Suécia. Ela continua o registo de Larsson no submundo do crime. O
jornalista cínico vai casar a filha ao norte do país; o noivo é um dos
políticos mais influentes da região, e mais uma vez os temas da corrupção e do
poder político estão no centro do romance: corrupção ligada à exploração de
energias renováveis num ambiente político em que a extrema-direita está em
imparável ascensão. O tema do combate à violência contra as mulheres não está ausente.
Com a trilogia
inicial, Stieg Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava. A
escrita seguríssima de Larsson, o olhar frio do mundo expresso num tom
jornalístico e furioso, aliados ainda à construção narrativa assente num puzzle de
emoções, com sucessivas analepses ao passado das personagens, fizeram de cada
livro da série Millennium um verdadeiro achado viciante.
Durante quase
uma década esta foi a matriz de escrita de muitos autores de policiais
nórdicos, não apenas suecos, mas também noruegueses. No entanto, há alguns anos
que esta preocupação da "inscrição social" apenas se vai mantendo nos
livros desta série, tendo vindo a ser abandonada por autores que voltaram aos
seus polícias-inspectores de meia-idade com problemas de álcool, como os
criados por Jo Nesbø e Jørn Lier Horst.
Pedro Tadeu - Alguém ainda vota em partidos?
* Pedro Tadeu
O Partido Socialista que propôs ao Presidente da República substituir o primeiro-ministro demissionário, António Costa, pelo governador do banco de Portugal, Mário Centeno, para assim se manter no poder. É o mesmo PS que agora exige novas eleições na Madeira e recusa que o demissionário Miguel Albuquerque seja substituído por outra pessoa da coligação que venceu as eleições regionais em setembro?
O PSD de Luís Montenegro, que recusou a continuação do Governo de maioria absoluta do PS, após a demissão de António Costa, exigindo eleições antecipadas, é o mesmo Partido Social Democrata que agora implora a Marcelo Rebelo de Sousa a aceitação da nomeação de um substituto para Miguel Albuquerque, sem antecipação de eleições, para o partido se manter a governar a Madeira?
E o CDS de Nuno Melo, é o mesmo
CDS que agora na Madeira defende o contrário do que o seu líder nacional
defendeu em dezembro, após a renúncia de António Costa?
E o Presidente da República, que
anunciou publicamente ir dissolver a Assembleia da República quase dois meses
antes da concretização formal dessa intenção, é o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa
que não revela o que vai fazer sobre o futuro político madeirense, por estar
impedido de dissolver a Assembleia Regional da Madeira durante os próximos dois
meses?
O problema é que a batalha política das ideias foi, desde muito cedo na nossa democracia, substituída pela luta entre pessoas da política, e, apesar de o voto ser em partidos, a verdade é que o peso político individual dos candidatos “esmaga” o volume dos programas eleitorais, que até parecem não ter qualquer importância para o resultado do sufrágio.
DN 2924 01 31
https://www.dn.pt/2951359661/alguem-ainda-vota-em-partidos/
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
João Costa - [Martim Moniz, uma praça em Lisboa]
* João Costa
Aqui ao lado de
onde moro há um lugar, uma praça, onde as pessoas se sentam à conversa.
Falam das suas
vidas. Gostam de ouvir música, as suas preferidas, as que as transportam para
as memórias da sua infância. Quem não gosta dos sons com que cresceu?
Nessa praça,
encontram-se afinidades e discute-se a vida na terra. Sempre foi assim Lisboa,
uma terra onde se chega, com saudades da terra de onde se veio. Uma cidade que
acolhe e de onde “se vai à terra” e para onde se importam memórias e hábitos. O
que seria Lisboa sem os restaurantes dos courenses, a Casa do Alentejo ou os
seus mercados cheios dos produtos regionais? O que seria Lisboa sem os sotaques
preservados dos que há décadas chegaram do interior, do sul ou do norte?
Aqui na praça
os sotaques e as línguas encontram-se e fazem-se ouvir e percebemos todos que
somos mais felizes quando a língua que falamos é aquela com que as nossas mães
nos tranquilizaram e adormeceram ao colo.
Lá no largo, os
mais velhos sentam-se e conversam. Os mais novos brincam livremente com os seus
skates e bicicletas. Porque nas praças antigas sempre foi assim. O lugar do
convívio intergeracional.
Gostei de todas
as vezes em que me sentei na praça e meti conversa. Aprendi sempre.
À volta da
praça, os prédios cresceram feios, como em tantos lugares onde faltou o gosto.
Mas isso não impede o feliz encontro da praça.
Na praça
sentam-se muitos que descansam de trabalhos que outros não querem, escondem-se
nos sorrisos a fuga do pior e a esperança de quem sabe que ali é possível
estar, falar, dançar e cantar.
Ali no largo
abasteço-me dos ingredientes que trazem novos cheiros à minha cozinha. Preciso
de ajuda para saber como os usar e há mulheres e homens com paciência para me
explicar.
Nesta praça não
somos todos iguais. Porque não há nenhuma praça de iguais. A praça é o local do
encontro e da diferença. Iguais na dignidade e no direito a uma vida que já
escapou tantas vezes entre os dedos. A vida do merceeiro que não teve escolha
porque não teve escola, apesar da memória fotográfica. A vida da mulher que
veio porque quis dar aos seus filhos o que ela não pôde ter, porque o medo não
deixou.
Na praça, cada
um passa a sua moda. Há lenços bonitos, vestidos compridos, penteados com
estilo. Como em todas as praças, a vaidade também se passeia neste lugar.
Esta praça é só
mais uma praça, mas renasce. Que pena termos perdido a lentidão do encontro, a
vontade de nos sentarmos a conhecer-nos no exterior, o sabor da conversa sem
propósito, a disponibilidade de viver a rua como espaço de alegria serena.
Chama-se Martim
Moniz e recomenda-se. Explode de cor e conversa. E a cor e a conversa são o que
nos acorda e faz livres.
Porque é que a
extrema-direita tem medo do Martim Moniz?
Pelas razões de
sempre. Porque gosta do silêncio e teme a cor. Gosta do cinzento, aquela cor
das cidades sem pessoas.
Mas há as
flores, com cor, que, como escreve Drummond de Andrade, furam “o asfalto, o
tédio, o nojo e o ódio.”
Porque ignora
as flores. E é a ignorância que alimenta o seu medo. É a ignorância que
alimenta o seu ódio.
Não tenham
medo. Ali não mandam ninguém para a sua terra. Nunca fui mandado para Setúbal!
Ali não planeiam descer ou subir sobre outras praças e invadi-las.
O plano ali é
simples. Encontrar-se. Estar e deixar estar.
Ali renasce a
boa tradição das praças das cidades.
https://www.facebook.com/photo?fbid=7058101304306202&set=a.251408551642212
segunda-feira, 29 de janeiro de 2024
Nuno Pacheco - Anónimos de Abril, a história cantada de desconhecidos que ajudaram à revolução
Rogério
Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso são os rostos deste
espectáculo que resgata da sombra figuras da resistência e do 25 de Abril. A
estreia é esta segunda-feira.
28 de Janeiro
de 2024, 20:05
Foto
Rogério
Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso: os rostos não
anónimos dos Anónimos de Abril LUÍS FILIPE CATARINO
Sabem quem foi
Aurora Rodrigues? Belmira Gonçalves? Francisco Miguel Duarte? Albina Fernandes?
Jorge Alves? Luís e Herculana Carvalho? João Arruda? As suas vidas estão
ligadas à resistência contra o Estado Novo e ao 25 de Abril, mas os seus nomes
permanecem desconhecidos para a quase totalidade dos portugueses. É deles, e de
outros como eles, que nos fala (e canta) Anónimos de Abril, em
estreia esta segunda-feira no Tivoli BBVA (21h), em Lisboa. O espectáculo, inserido
nas comemorações dos 100
anos do Teatro Tivoli, vai ser gravado pela RTP, para posterior
transmissão.
O projecto de
Rogério Charraz e José Fialho Gouveia, com as participações de Joana Alegre e
João Afonso (vozes) e dos músicos Alexandre Frazão (bateria), Carlos Garcia
(piano), Marco Reis (guitarra) e Nuno Oliveira (baixo), surgiu quando o cantor
e compositor viu num texto de uma rede social a história de Celeste Caeiro,
recorda ao PÚBLICO. "Já conhecia o nome, sabia que começou por dar um
cravo a um militar, mas a maior parte dos portugueses está convencida de que
era florista, quando de facto ela trabalhava num restaurante que fazia um ano
no dia 25 de Abril [de 1974].”
Ele próprio não
conhecia a história e isso aguçou-lhe ainda mais a curiosidade. “Quando dei por
mim a deliciar-me com ela, pensei que deve haver muitas pessoas que tiveram um
papel simbólico ou até fundamental na resistência ou na revolução e que não são
muito faladas de cada vez que se celebra o 25 de Abril. Foi esse o ponto de
partida para este Anónimos de Abril: ir à procura de histórias
enterradas ou guardadas na gaveta.”
O passo
seguinte foi falar com José Fialho Gouveia, que já havia colaborado com Rogério
Charraz, como letrista, nos discos O Coreto (2021) e Reunião de Condomínio (2023), para combinar uma
ida aos arquivos, tarefa que começou a ser feita a dois.
“Fomos
encontrando histórias”, diz José Fialho Gouveia. “Falámos com pessoas que nos
passaram figuras que podiam encaixar neste projecto e fomos construindo uma
lista que depois tivemos de ir encurtando. Quisemos diversidade: não queríamos
quatro ou cinco exemplos cujo aspecto central fosse a vida na clandestinidade;
quisemos equilíbrio entre homens e mulheres, porque o 25 de Abril também
foi feito por muitas mulheres, embora os nomes mais conhecidos sejam de
homens; e quisemos regiões diferentes do país.”
O compositor
acrescenta: “No caso das mulheres, tivemos também a preocupação de não ir
buscar apenas as que eram de facto apoio de homens, como a Arajarir Campos
[secretária de Humberto
Delgado, morta pela PIDE na mesma emboscada em que ele foi assassinado, em
Fevereiro de 1965], mas mostrar os vários papéis que tiveram.”
Arajarir está
entre os “anónimos” aqui cantados. Tal como, entre vários outros, Belmira
Gonçalves, morta a tiro durante a “Revolta das Águas” na Madeira, em 1962; o
Padre Alberto Neto, fundamental na vigília
da Capela do Rato; Jorge Alves, o militar da GNR que ajudou na célebre fuga
dos presos do Forte de
Peniche; Francisco Sousa Mendes, neto do cônsul Aristides Sousa Mendes, que
integrou a coluna de Salgueiro Maia; Aurora
Rodrigues, estudante presa em 1973 e torturada durante três meses; ou o
casal Luís
e Herculana Carvalho. De uma família abastada do Porto, estes pais de um
destacado militante do PCP, Guilherme da Costa Carvalho, conseguiram
autorização para visitar o filho na colónia penal do Tarrafal. Ali tiraram
fotografias às campas dos prisioneiros mortos e no regresso percorreram o país
a entregar as imagens aos familiares dos detidos.
Recolhidas as
histórias, foi a vez das canções. “O processo foi o mesmo que usámos nos dois
discos anteriores”, conta Rogério Charraz. “Partir da história, da personagem,
fazer a letra – um trabalho do Zé, depois de aprofundar a pesquisa inicial, ao
ler os livros, conhecer as histórias a fundo, os pormenores –; em cima das
letras, eu construí as canções e os arranjos, para depois meter as vozes,
minha, do João e da Joana.”
Os cantores
foram já escolha de ambos. “Na minha cabeça, há um lado colectivo no canto de
intervenção”, explica o compositor. “Os cantautores cantavam muitas vezes
juntos, com as suas guitarras e as suas vozes, e isso está muito
presente no nosso imaginário. Fazia sentido ir buscar outras vozes,
[aliás] com ligações familiares a figuras da resistência: a Joana é filha de Manuel Alegre e o João é sobrinho do José Afonso.”
Depois dos
palcos, um disco
Joana Alegre
aceitou o convite antes de ouvir as canções, mas o que leu e ouviu deixou-a
tranquila: “Agradou-me muito a perspectiva literária, transversal, não
panfletária, igualitária, de contar a história de pessoas anónimas que também
construíram a liberdade”, diz.
“Esta narrativa
corrige um bocadinho aquela de que as mulheres ficaram reféns, e que menorizava
o seu papel na resistência e na construção da liberdade", sublinha a
cantora. "Há aqui histórias muito sensíveis, porque estamos a entrar no
plano dos traumas individuais, do sofrimento pessoal, mas as letras foram
feitas pelo Zé Fialho com muito cuidado.”
João Afonso
corrobora: “Também aceitei o desafio sem conhecer os poemas, mas a ideia em si
atraiu-me logo – porque é muito interessante a abordagem. O 25 de
Abril que conhecemos foi feito por oficiais, homens, mas estas histórias vão
mais além, falam do trabalho de resistência escondido, de personagens que não
vêm nos livros escolares.”
Após a estreia
do espectáculo em Lisboa, há já mais oito datas marcadas, além de outras ainda
à espera de confirmação: Portimão (16 de Março), Montijo (6 de Abril), Fafe (19
de Abril), Vila do Conde (20 de Abril), Santa Maria da Feira (24 de Abril, com
a Orquestra Sinfónica de Jovens), Barcelos (27 de Abril), Grândola (21 de
Setembro) e Loulé (26 de Outubro). Anónimos de Abril deverá
ainda dar lugar a um CD, a lançar em 2025.
domingo, 28 de janeiro de 2024
Alexandra Lucas Coelho - O racismo sem limites: agora a UNRWA
sexta-feira, 26 de janeiro de 2024
Luísa Semedo - Portugal, terra de islão
OPINIÃO
Por um lado, gostamos de nos dizer cosmopolitas, os reis da miscigenação por esse mundo fora; e por outro, existe a busca, dentro de fronteiras, de uma caricata brancura pura, inexistente.
25 de Janeiro de 2024, 6:41
Quando se vive em França, num dos
países com maiores comunidade muçulmanas da UE, conhece-se bem o que é a
islamofobia nas suas mais diversas expressões, desde as microagressões às
agressões mais violentas, do discurso descomplexado do comentariado televisivo
até a políticas governativas, passando pela violência e controlo policial com
base étnico-racial. São vítimas de islamofobia não somente as pessoas
efetivamente muçulmanas, mas também as que pareçam muçulmanas, árabes,
magrebinas, na qual me incluem muitas vezes porque não sou imediatamente
identificável como “luso-cabo-verdiana”.
Muitos portugueses em França
também vivem esta experiência de por vezes serem racializados como árabes e
muçulmanos
Muitos portugueses em França
também vivem esta experiência de por vezes serem racializados como árabes e,
portanto, como muçulmanos, visto existir em França uma verdadeira dificuldade
em separar duas realidades que podem, evidentemente, ser distintas. Não é só em
França que os portugueses podem ser vistos como não-brancos ou como “brancos
honorários” – para tomar emprestada a expressão da socióloga Margot
Delon, no seu artigo “Des 'Blancs
honoraires'?” –,
nos EUA isso também acontece e os neonazis do Norte da Europa costumam gozar
com a “aparência magrebina” dos nossos neonazis nacionais. A racialização é uma
construção fluida que pode variar “conforme a hora e o local onde estiverem”.
Em Portugal, vive-se uma relação
ambígua com todas estas complexidades: por um lado, gostamos de nos dizer
cosmopolitas, os reis da miscigenação por esse mundo fora; e por outro, existe
a busca, dentro de fronteiras, de uma caricata brancura pura inexistente. Esta
relação é problemática quando se trata de pessoas negras, mas também em relação
a pessoas de origem árabe e muçulmana. Existe uma espécie de “apagão”,
como se séculos de presença e a persistência de tantos vestígios e influências
ainda tão visíveis, inclusive a nível cultural e linguístico, nunca tivessem
existido. No contexto da guerra genocida contra a Palestina, assistimos, por
exemplo, à identificação de portugueses com Israel através da sua redução a um
país branco ocidental, fazendo parte do “eixo da civilização”, resistente face
a palestinianos, árabes e muçulmanos que pertencem ao “eixo do mal”, tão longe
de quem somos, esquecendo não somente a história do judaísmo, mas também da
história árabe e muçulmana em Portugal.
Esta semana, o canal francês
público France 2 difundiu uma reportagem que deveria ser mostrada nas escolas
em Portugal, justamente sobre esta realidade, intitulada “Portugal, terra de islão”, com a intervenção essencial,
entre outras, de Marc Terrisse, especialista em história árabe e muçulmana em
Portugal, autor dos livros Lisbonne, dans la ville musulmane e – a
sua obra mais recente, apresentada na Gulbenkian em Paris – Variations sur le Portugal, que será apresentado no
Instituto Francês em Lisboa na próxima semana, a 1 de fevereiro.
Este “apagão” reforça a
arabofobia e a islamofobia, em particular neste momento contra imigrantes de
origem sul-asiática, que cresceram de forma preocupante em Portugal,
nomeadamente em Lisboa, como, por exemplo, no bairro histórico da Mouraria.
Grupos de neonazis publicitaram a intenção de organizar uma manifestação
extremista para esse local e vários coletivos antirracistas já
apelaram – através
de uma carta aberta assinada por, até ao momento, cerca de duas mil
pessoas, na quais me incluo – à sua anulação, dirigindo-se ao
Presidente da República, ao Governo e a outras instâncias do Estado.
O Estado tem a obrigação de
proteger os residentes no seu território, sejam estrangeiros ou nacionais.
Relembro, o que deveria ser óbvio, que existem também portugueses muçulmanos e
o Estado não pode deixá-los desprotegidos, é para isso que existem leis antidiscriminação
e de proibição de incitamento ao ódio e à violência. O racismo, em todas as
suas formas, tem incidência não somente em quem está em Portugal, mas também na
vida dos portugueses no estrangeiro. Tomando emprestada e
"remixando", desta vez, a expressão de Fanon: "Quando ouvires
falar mal do muçulmano, presta atenção, estão a falar de ti."
A autora é colunista do
PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professora de Filosofia do ensino secundário
https://www.publico.pt/2024/01/25/opiniao/opiniao/portugal-terra-islao-207800