O “Diário de um retorno ao país
natal” de Aimé Césaire, por Leo Gonçalves
Uma das publicações mais
importantes feitas recentemente no Brasil, a meu ver, mas que passou em brancas
nuvens, foi o revolucionário poema Diário de um retorno ao país natal [Cahier
d’un retour au pays natal], de Aimé Césaire, editado pela Edusp em 2012 com
tradução e estudos de Lilian Pestre de Almeida. Se contarmos a data de sua
versão definitiva, a obra chega ao país com um atraso de pelo menos 56 anos.
Aimé Césaire (1913-2008) foi
poeta e político martinicano. Estudou em Paris numa época em que se respirava a
arte de vanguarda. Interessou-se pelo surrealismo na mesma época em que formou,
junto com Léopold Sédar Senghor, Léon-Gontram Damas e outros, um grupo de
discussões sobre identidades e valores culturais do homem negro. Fundaram,
nesta época, o jornal L’Étudiant Noir, onde aparece escrita, pela
primeira vez a palavra Negritude:
(…) queremos explorar os nossos
próprios valores, conhecer os nossos próprios valores, conhecer as nossas
forças por experiência pessoal, cavar a nossa própria profundeza, as fontes
eruptivas do humano universal, romper a mecânica identificação das raças,
rasgar os superficiais valores, abarcar em nós o negro imediato, plantar a
nossa Negritude como uma bela árvore até que ela traga os
frutos mais autênticos[1].
Considerado um dos maiores poetas
da língua francesa no século XX, Césaire foi saudado por André Breton (“E é um
Negro que maneja a língua francesa como não há hoje um Branco para manejá-la”)
que considerava o Diário “o maior monumento lírico de seu
tempo”. Jean-Paul Sartre, nos anos 1940, o via como o grande poeta vivo da
língua francesa: “Em Césaire, a grande tradição surrealista se acaba, toma seu
sentido definitivo e se destrói: o surrealismo, movimento poético europeu, é
roubado dos europeus por um negro que o volta contra eles e lhe assinala uma
função definida.”[2] Seu enterro em 2008, por fim, ganhou obséquias nacionais
do governo francês, homenagem geralmente prestada a personalidades francesas,
mas antes concedida somente a dois outros poetas: Paul Valéry e Victor Hugo.
O Diário de um retorno ao
país natal é o primeiro poema de Césaire que se tem notícia. Teve sua
primeira aparição na revista Volontés, n. 20, de agosto de 1939.
Foi revisto, reescrito e aumentado ao longo de pelo menos 17 anos, quando por
fim foi publicado pela Présence Africaine, que o edita até hoje. Pode, dentre
suas diversas leituras possíveis, ser considerado o poema fundador da identidade
cultural martinicana. Espécie de epopeia espiritual, relata o mergulho interior
em busca de sua camada mais profunda. Como nos programas estéticos do
surrealismo, o poeta faz uma busca do inconsciente e um esforço de supressão
das camadas sociais impostas. Ao retirar essas camadas, encontra aquilo que ele
chama de “Negre essentiel” [Negro essencial], a África e seus valores presentes
e sobreviventes no homem negro contemporâneo.
O retorno (retour) sugerido no
título é também um desvio (detour). Inconformista
inconformado, Césaire não gostava (nos primeiros anos de sua vida) da Martinica
onde havia crescido. De maioria negra, a ilha era segregadora, mantendo seu
povo de ex-escravos em condições subalternas e sub humanas, trabalhando em
lavouras de cana para uns poucos fazendeiros békés (brancos que permanecem
em race pure desde sua chegada no século XVII) ou levando uma
difícil vida urbana. Além disto, a ilha, tal como a maioria do Caribe, era o
paraíso, a promessa de descanso de americanos e franceses. Os negros que
conquistavam uma melhor condição de vida, passavam a se vestir como e a adotar
os costumes dos colonizadores. O próprio partido comunista martinicano defendia
a doutrina do assimilacionismo, ou seja, que a ilha fosse “assimilada” pelo
governo francês. Césaire porém, ao partir para a Europa, acaba por redescobrir
sua própria terra. Especialmente quando, ao visitar seu amigo Petar Guberina,
avista a ilha de Martiniska no Mediterrâneo, uma epifania que, segundo o autor,
estaria na gênese do poema.
O país natal de Césaire é, ao
mesmo tempo, a Martinica, sua ilha caribenha com a qual se reconcilia ao longo
do poema, e também a África, que ele redescobre como da maior importância para
a saúde de seu povo que, ao fazer esse poema (e isso não é um exagero)
reinventa. “A saúde da literatura, como escrita, consiste em inventar um povo
que falta” (Deleuze[3]).
porque não é verdade que a obra do homem está acabada
que não temos nada a fazer no mundo
que parasitamos o mundo
que basta que marquemos o nosso passo pelo passo do mundo
ao contrário a obra do homem apenas começou
e falta ao homem conquistar toda interdição imobilizada nos recantos do
seu fervor
e nenhuma raça possui o monopólio da beleza, da inteligência, da força
e há lugar para todos no encontro marcado da conquista e sabemos agora que o
sol gira em torno da terra iluminando a parcela fixada por nossa única vontade
e que toda estrela cai do céu na terra pelo nosso comando sem limite.[4]
O “retorno” se faz “desvio” na
própria estrutura do poema. Numa primeira seção, o personagem-poeta faz um
mergulho nas sombras, busca das imagens interiores e de esparsas recordações da
infância. Há um leitmotiv “No fim da madrugada” que ele repete incessantemente,
mantendo o tom onírico, entre o sono e a insônia. Enumera cânticos, paisagens
solares, espelhos, como numa descida aos infernos da memória.
…..E não são unicamente as bocas
que cantam, mas as mãos, os pés, as nádegas, os sexos, e a criatura inteira que
se liquefaz em sons, voz e ritmo.
…..Chegando ao ápice de sua
ascensão, a alegria arrebenta como uma nuvem. Os cantos não param, mas rolam
agora inquietos e pesados pelos vales do medo, os túneis da angústia e os fogos
do inferno.
…..Cada um põe-se a comer o pão
que o diabo mais próximo amassou até que o medo se desfaça invisivelmente nos
finos areais do sonho, e vive-se verdadeiramente como num sonho, e bebe-se e
grita-se e canta-se como num sonho, cochilando também como num sonho com
pálpebras de pétalas de rosa, e o dia chega aveludado como um sapoti, e o aroma
de chorume dos cacaueiros, e os perus que desfilam suas pústulas rubras ao sol,
e a obsessão dos sinos, e a chuva
…..os sinos… a chuva..
…..que repicam, repicam, repicam…
No fim da madrugada, essa cidade
achatada – exposta… [5]
Essa seção pode ser lida como um
inventário inacabado de recordações como quem recolhe seu povo (si mesmo?)
entre os destroços. Logo o tom do poema se transforma, oscilando entre a
revolta e o murmúrio. São dois pulsos de uma mesma ideia.
Quem e o que somos? Admirável pergunta!
De tanto olhar as árvores tornei-me uma árvore e meus longos pés de árvores
cavaram no solo largas bolsas de veneno altas cidades de ossadas
de tanto pensar no Congo
tornei-me um Congo farfalhante de florestas e rios
onde o chicote estala como um grande
estandarte
o estandarte do profeta
onde a água faz
licualá-licualá
onde o raio da cólera lança seu machado esverdeado e acua os javalis da
putrefação na bela orla violenta das narinas[6]
Pouco a pouco ele encontra e
fabrica os termos de sua própria negritude. Declara que “a velha Negritude se
cadaveriza” para dar lugar ao homem novo, de pé, que olha para o seu futuro de
frente.
E está de pé a negrada
a negrada arriada
inesperadamente de pé
de pé no porão
de pé nas cabines
de pé na ponte
de pé ao vento
de pé sob o sol
de pé no sangue
……….de pé
…………………e
………………………livre
Ao reconformar e ressignificar
sua relação com seu “país” (a Martinica) e com sua “terra” (a África), Césaire
prenuncia sua longa trajetória posterior de ativista pelos direitos do negro,
sua luta anticolonial, sua postura de pedra no caminho do racismo e da
injustiça, sua poesia e sua obra teatral subsequente, verdadeira lança em
punho, sua, por fim, história como líder político de seu povo, sendo ao mesmo
tempo grande exemplo para outros povos que lutavam por emancipação ao longo do
século XX.
E eis no fim desta madrugada minha prece viril
Que eu não ouça nem risos nem gritos, os olhos fixos nessa cidade que
profetizo, bela
dai-me a fé selvagem do feiticeiro
dai às minhas mãos poder de modelar
dai à minha alma a têmpera da espada
não me esquivo. Fazei da minha cabeça uma cabeça de proa
e de mim mesmo, meu coração, não façais nem um pai nem um irmão, nem um filho,
mas o pai, mas o irmão, não um marido, mas o amante deste povo único.
Fazei-me rebelde a toda vaidade, mas dócil ao seu gênio
Como o punho no estender do braço!
fazei-me comissário do seu sangue
fazei-me depositário do seu ressentimento
fazei de mim um homem de conclusão
fazei de mim um homem de iniciação
fazei de mim um homem de recolhimento
mas fazei também de mim um homem de semeadura
fazei de mim o executor dessas obras altas
é chegado o tempo de cingir os rins como um cavaleiro ─
Mas fazendo-o, meu coração, preservai-me de todo ódio
Não façais de mim esse homem de ódio por quem só tenho …..[ódio
Pois embora me restrinja a essa raça única
sabeis no entanto meu amor tirânico
sabeis que não é por ódio das outras raças
que me exijo lavrador dessa raça única
o que quero é pela fome universal
pela sede universal
intimá-la livre enfim
a produzir de sua intimidade fechada
a suculência dos frutos [7].
O lugar de enunciação é uma
Martinica negra com devir africano. Mas seu escopo aponta para o “universal”.
Não o universal do um para todos. “A poesia não produz universal, não, ela dá à
luz sacodimentos que nos transformam”, afirma Edouard Glissant[8] a respeito
do Cahier. É uma escrita de fúria lautréamontiana, realizada sem
pedidos de concessões, repleta de experimentação.
Por isso, a tarefa de traduzir
este poema não é nenhum pouco simples. Sua forma serpenteante (às vezes em
verso livre, às vezes em prosa reminiscente, às vezes em frases soltas) pode
dar a falsa ideia de ausência de ritmo, mas este mesmo poema rendeu ao autor a
acusação de “exagerar no ritmo do tam-tam”, acusação que levou à resposta de
seu amigo Senghor: “como se não fosse próprio às zebras possuir zebruras”. Além
da força rítmica, o vocabulário é dos mais herméticos, com palavras até hoje
controversas. Césaire gostava de palavras estranhas, incluía vocábulos sérvios,
árabes, ioruba, wolof, kréol, expressões trazidas do latim clássico, do grego e
até de línguas orientais. A especificidade do vocabulário de Césaire foi o tema
de um interessante trabalho, publicado por René Hénane, o Glossaire de
termes rares dans l’oeuvre d’Aimé Césaire. Outro interessante
trabalho, Le theme du retour dans le Cahier d’un retour au
pays natal (Aimé Césaire), da indiana Gloria Saravaya, relaciona o
poema às formas mais diversas da oralidade, incluindo aí seus aspectos
gestuais. Tudo isso sem impedir que o poema tenha se tornado uma das obras mais
populares da língua francesa em territórios tão diversos como as Antilhas, o
Canadá, a França e grande parte da África. Como transplantar tudo isso para o
falar brasileiro? Também traduzir um texto consiste na reinvenção de um povo. E
é essa a operação realizada por Lilian Pestre de Almeida, acompanhada de um
interessante estudo sobre a obra, cobrindo uma lacuna imperdoável para a
cultura brasileira que tanto se gaba de sua “mestiçagem” sanguínea e,
principalmente, cultural.
Notas
[1] Trecho do artigo “Nègreries: jeunesse noire et
assimilation” [Negrarias: juventude negra e assimilação] de Césaire citado em
Louis, Patrice. ABCésaire. Paris: Ibis Rouge, 2003. p.
42.
[2] Sartre, J-P. “Orphée noir” em Anthologie de la nouvelle poésie nègre
et malgache de langue française. Paris: Puf/Quadrige, 2008. p. XXVIII
[3] Deleuze. Crítica e clínica. São Paulo: 34, 1997. p. 14.
[4] Diário de um retorno ao país natal, p. 81
[5] Idem, p. 21.
[6] Idem, p. 37.
[7] Idem. p. 69
[8] Glissant, Edouard. La cohée du lamentin. Paris: Gallimard,
2005. p. 108.
Leo Gonçalves
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