* Jaime Nogueira Pinto
Colunista do Observador
Serão as
linhas vermelhas que alguns pretendem aplicar racionais, democráticas,
desejáveis, ou sequer eficazes e respeitadoras da vontade do povo?
27 jan. 2024,
00:1866
A 9 de Setembro
de 2016, no jantar de recolha de fundos “LGBT por Hillary” em Nova Iorque, a
candidata democrática à presidência dos Estados Unidos punha num mesmo saco, o
dos “deploráveis”, a maioria dos apoiantes de Donald Trump. E, encorajada
pelos risos e aplausos da assistência, prosseguia, especificando o conteúdo do
dito “basket of deplorables”, carregado de “racistas, sexistas, homofóbicos,
xenófobos e islamofóbicos”; carregado, enfim, de desqualificados opositores
políticos.
Só Deus sabe o
que leva um eleitor, sobretudo um indeciso de última hora, a votar nesta ou
naquela candidatura numa situação de oposição radical, mas a bravata de Hillary
talvez lhe tenha custado a eleição. Caricaturar os adversários políticos de
forma maniqueísta e enfiar num mesmo saco milhões de votantes, chamando-lhes
deploráveis, tinha tudo para ter consequências desagradáveis. E teve,
porque, ao contrário do que imaginam algumas pseudo-elites, o povo não é
estúpido.
Com as
transformações geopolíticas que vieram com o fim da Guerra Fria, as classes
populares e parte das classes médias do Ocidente viram-se marginalizadas e
penalizadas pelo “sistema”. Foi, também, o preço da melhoria de vida nas
periferias asiáticas, mas o que é certo é que quem o pagou foi parte
significativa dos cidadãos da América do Norte e da Europa ocidental. Era, por
isso, natural que a mudança do panorama político do Ocidente viesse pela mão
dos lesados, de “deploráveis” como os operários das fábricas de automóveis de
Detroit e das siderurgias de Pittsburgh ou os trabalhadores comunistas
franceses que, no início do século XXI, passavam do PCF para o Front National.
Os velhos
liberais da mão invisível ou os marxistas de uma luta de classes determinadas
pelo lugar na Produção não deviam ter estranhado o facto de a decadência da
indústria e a desindustrialização terem mudado as convicções e o sentido de
voto do povo. Mas estranharam. E estranham.
E
alhearam-se. Até porque, entretanto, os valores de Deus, de Nação, de
Família, de Justiça Social tinham já sido abandonados numa deriva – engolidos,
à direita, pelo globalismo agnóstico, mundialista ou federalista europeu; e, à
esquerda, pelas micro-causas, as micro-ofensas e as macro-inquisições
diacrónicas e sincrónicas de minorias urbanas de género e espécie, apostadas em
diluir no seu arco-íris planetário as lutas pela igualdade social, racial e
sexual do anterior paradigma.
Mas,
aparentemente, havia vazios deixados pelo fim de alguma prosperidade e
estatuto, pelo declínio do cristianismo social e pela falência do “sonho
comunista” que nem mesmo o mais inclusivo e frondoso dos arco-íris conseguia
preencher. Assim, os “danados da terra” – que, juntamente com as classes médias
empobrecidas, reagiam a uma “modernização dos costumes” imposta de cima, aos
“novos direitos humanos” endossados pelos milionários do World Economic Forum,
à imigração descontrolada e à corrupção que viam generalizar-se – passavam de
“vítimas da fome”, a defender e a mobilizar, a “deploráveis”, a desdenhar e a
cancelar.
Como sempre
acontece em épocas de mudança radical e desorientação geral, perante o
aparecimento de novas forças, as forças instaladas qualificavam como
ressentidos ou enganados os que, descontentes com as alternativas disponíveis,
migravam para novos movimentos políticos.
De resto, como
o vazio ideológico acaba por ser preenchido, o aparecimento à esquerda e à
direita de novos partidos e novos líderes não era de surpreender. À direita,
onde apareceram com força, a par de algum ateísmo pós-moderno e populismo
simplista comum ao das esquerdas mas de polo oposto, surgia um resgate e uma
renovação de valores identitários e vitais; valores espirituais e temporais,
éticos e políticos que tinham estado durante séculos em vigor na Europa, no
Ocidente, e surgido noutros pontos do globo.
Para os
combater e combater tudo isto, o sistema instalado – que à esquerda, ao centro
e até ao centro direita não é já o sistema tradicional, mas uma versão
esvaziada e contaminada pela retórica e pelo bullying ideológico
das esquerdas mais extremas – parece disposto a tudo. E cego às suas próprias
derivas totalitárias e à disrupção que encerra a “legislação avançada” que
levianamente encoraja ou permite, propõe-se empenhar as armas poderosas que tem
na cultura, no ensino e na comunidade mediática numa cruzada contra uma
“extrema-direita” que equipara aos totalitarismos fascistas e nazis ou aos
autoritarismos ditatoriais do passado.
Ora uma das
coisas que caracteriza estas novas direitas – populistas, populares,
nacionais-conservadoras ou o que se lhes quiser chamar – é precisamente o facto
de serem democráticas no acesso ao poder e no seu exercício, conquistando e
mantendo o poder democraticamente e cedendo o lugar quando o perdem
eleitoralmente – com mais ou menos ruído, mas cedendo.
Nestas
circunstâncias, serão as linhas vermelhas que alguns pretendem aplicar-lhes,
racionais, democráticas, desejáveis, ou sequer eficazes e respeitadoras da
vontade do povo?
Sem comentários:
Enviar um comentário