quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Chay Bowes - Palavras que matam:

Palavras que matam: como os manipulares de comunicação ocidentais desumanizam povos seleccionados para justificar a guerra

 Chay Bowes     15.Feb.24     Outros autores

O papel da comunicação social dominante na justificação e promoção das infindáveis guerras desencadeadas pelo “ocidente” está definitivamente posto à vista. Os casos da Ucrânia e da Palestina arrumaram a questão. Já vem de longe o recrutamento e a instrumentalização de jornalistas pelos serviços secretos e de “informações”, a subordinação dos media às estratégias do complexo militar-industrial. Tal com “a guerra é a continuação da política por outros meios”, esta rede mediática inteiramente manipulada e servil configura a “antecipação da guerra por outros meios”. 

Com a operação punitiva de Israel contra Gaza no seu quarto mês, é impossível não comparar a indignação ocidental em relação a outros conflitos com a moralidade selectiva agora a ser aplicada quando se trata de Israel.

Mesmo a mais breve avaliação da forma como as inúmeras guerras do Ocidente têm sido retratadas nos meios de comunicação social clientes rapidamente produz provas irrefutáveis de que o marketing dos conflitos, tal como justificado pelas potências ocidentais, é fundamental para a sua contínua legitimação.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm estado directa e indirectamente envolvidos em dezenas de guerras e golpes de Estado, a par de inúmeros conflitos secretos e abertos em todo o mundo. Dados os vastos recursos necessários para perpetuar este mecanismo agressivo de influência global, é importante reconhecer que os contribuintes a quem se pede que financiem estas “guerras eternas” talvez nunca as tivessem aceite sem a ajuda e o alinhamento secreto de um meio de comunicação social cliente.

A linguagem e a terminologia são, evidentemente, um elemento central e fundamental quando é necessário apresentar uma guerra como moralmente aceitável. Isto é claramente óbvio quando examinamos a forma como os meios de comunicação ocidentais estão a retratar a actual escalada em Gaza. Os meios de comunicação norte-americanos e britânicos retratam subtilmente as vítimas de um lado como sendo mais dispensáveis do que as do outro, por exemplo, referindo-se às baixas israelitas como tendo sido “mortas”, enquanto as palestinianas são descritas como tendo simplesmente “morrido”, enquanto os menores detidos por Israel, que estão detidos sem julgamento em alguns casos há vários anos, são referidos como “prisioneiros”, enquanto os israelitas detidos pelo Hamas são referidos como “reféns”.

Esta utilização intencional da linguagem para esterilizar e desumanizar uma vítima, ou mesmo toda uma etnia, não é de modo algum acidental. É um elemento essencial de um esforço psicológico para fazer pender a balança no cálculo de culpabilidade subconsciente dos espectadores (fisicamente afastados do conflito). É simples considerar justificável a eliminação de “terroristas”, ao passo que o assassínio em massa de muitos milhares de crianças, mulheres, doentes e idosos indefesos é uma tarefa muito mais difícil de vender a um público ocidental cada vez mais informado.

A manipulação dos meios de comunicação social ocidentais não é, de forma alguma, um desvio da norma. Os actuais consumidores de notícias “fidedignas” no Ocidente devem recordar a utilização generalizada de jornalistas pela CIA, tanto no país como no estrangeiro, para influenciar a opinião pública nos anos 60, largamente entendida como fazendo parte da “Operação Mockingbird”, uma operação labiríntica e com vastos recursos que se propunha influenciar as mensagens dos principais meios de comunicação social. Embora a existência dessa operação específica nunca tenha sido confirmada, os esforços anteriores da CIA para recrutar jornalistas - centenas deles, tanto no país como no estrangeiro - foram expostos numa investigação do Senado dos EUA.

Hoje em dia, dado o preço exorbitante da guerra por procuração na Ucrânia, o observador comum seria excepcionalmente ingénuo se presumisse que uma influência semelhante não está a ser aplicada aos meios de comunicação social quando se trata de justificar conflitos e de vilipendiar os supostos “inimigos” do Tio Sam, como a Rússia e a China. Convém lembrar que estamos a falar de meios de comunicação social que dependem quase exclusivamente das “boas relações” com a Casa Branca e Downing Street para terem acesso a informações “secretas” e se manterem na “faixa favorável” do negócio das notícias. Se sujarem o vosso babete uma vez, fazendo a pergunta errada, é para o deserto da informação que ides. Não é à toa que se chama “narrativa alimentada à colher”.

A análise da linguagem em torno do conflito na Ucrânia dá-nos uma boa ideia de como é incutido um preconceito no espectador e no leitor. Apesar das questões complexas e de longa data que contribuíram para a intervenção russa em 2022, os media ocidentais optam por uma narrativa descaradamente unilateral, intencionalmente atribuindo a culpa exclusiva à Rússia. A desumanização dos russos vivos e mortos parece ser uma pedra angular desta táctica, a par de revisões selectivas da história. Diz muito o indefensável fracasso de meios de comunicação social que se apresentam como os campeões da igualdade e da liberdade em enfrentar o impulso essencialmente xenófobo que constitui o cerne desta estratégia.

Qualquer pessoa que observe o fluxo e refluxo da cobertura ocidental do conflito ucraniano notará o surgimento de uma narrativa centralmente formada e “leve nos factos” que sugere que os ucranianos são totalmente inocentes, num conflito que, de facto, não começou em 24 de Fevereiro de 2022, mas com um golpe de Estado da CIA em Kiev, em 2014, impulsionado por ultranacionalistas e pela extrema-direita. As suas raízes são ainda mais profundas, décadas atrás, com as tentativas de desestabilização da RSS ucraniana pelas agências de informação ocidentais.

É claro que o espectador ocidental é convenientemente poupado a esses pormenores. A habilidade de enganar através da omissão de factos tem sido bem aperfeiçoada por empresas do calibre da BBC e da CNN. Para além disso, os meios de comunicação ocidentais também têm sido hábeis a ocultar os crimes de Kiev contra o seu próprio povo no rescaldo do golpe de Maidan de 2014. Não há espaço para relatar a corrupção grosseira, os batalhões punitivos neo-nazis desencadeados na região de Donbass, ou os assassinatos, raptos e violações cometidos contra as populações de língua russa que se recusaram a aceitar o mandato ilegítimo do governo pós-Maidan.

Assim, enquanto os meios de comunicação ocidentais se apegam alegremente a esta narrativa centralizada, há questões muito difíceis a colocar sobre as motivações e os instrumentos psicológicos que estão a ser utilizados para licenciar e vender a justificação da guerra e, no que diz respeito à Palestina, uma dessas realidades desconfortáveis é a utilização do racismo subconsciente.

Vejamos a conveniente demonização do Islão. Não é de modo algum um acidente o facto de a maioria das vítimas da catastrófica “guerra contra o terrorismo” dos EUA pós 11 de Setembro ser muçulmana. Décadas de demonização do Islão como uma religião selvagem empenhada em dominar o mundo tiveram um efeito subconsciente na “mente colectiva” do Ocidente. Este efeito é depois energicamente explorado pelos media ocidentais, conforme necessário.

Quando os refugiados sírios e africanos das guerras estimuladas pelas potências ocidentais procuraram refúgio na Europa, foram recebidos com protestos e, em muitos casos, com violenta objeção. No entanto, quando se tratou do conflito ucraniano, alguns comentadores ocidentais falaram abertamente do facto de os refugiados ucranianos “se parecerem connosco”, de poderem ser “a nossa gente”, de serem loiros e de olhos azuis. Foi uma demonstração chocante da forma como os ucranianos são tratados como seres humanos semelhantes, enquanto milhares de muçulmanos castanhos que se afogam no Mediterrâneo lutam para ocupar linhas nas colunas dos mesmos jornais.

A relação íntima entre os media clientes e o complexo militar industrial também requer investigação e análise profunda. Impérios mediáticos como o News Corp de Rupert Murdoch exercem uma vasta e esmagadora influência no discurso público quando se trata de justificar a guerra. A relação entre o complexo militar industrial, de importância crítica, e a criação de uma narrativa de guerra defensável é inegável, mas persistentemente negada. Assim, à medida que o mundo desvia o seu olhar da Ucrânia para o Médio Oriente, é notável a rapidez com que o conflito ucraniano deixou de estar no topo das notícias no Ocidente. É igualmente notável a forma como as críticas ao Presidente ucraniano Vladimir Zelensky se tornaram subitamente aceitáveis, quando as mesmas críticas, há apenas alguns meses, eram universalmente suprimidas nos meios de comunicação ocidentais.

Tudo isto sugere também que uma sinistra narrativa centralizada está a ser utilizada no interesse de uma vontade política e não na procura da verdade pelos meios de comunicação social do establishment. Qualquer observador objectivo tem de se esforçar muito para se convencer de que os media não estão agora a desempenhar um papel fundamental na justificação do conflito “do dia”. A deturpação intencional da representação de um grupo em oposição a outro, a utilização selectiva e astuta da história no cultivo de narrativas e o mal disfarçado uso do racismo para descrever um lado como essencialmente culpado pelo próprio tratamento brutal que lhe é infligido pelo outro.

Parece agora chocantemente óbvio que os meios de comunicação ocidentais estão determinados a suprimir qualquer debate informado sobre a razão de ser de um conflito quando esse conflito emana dos EUA ou de um dos seus clientes ou aliados. É também cada vez mais evidente que, mesmo quando os meios de comunicação social do sistema mudam de tom, o fazem para lubrificar uma mudança de direção política previamente acordada, como está a acontecer actualmente na Ucrânia. Meios de comunicação ocidentais como o Washington Post, o New York Times e o The Independent no Reino Unido estão agora a retratar abertamente um regime ucraniano à beira do colapso. A tão apregoada “contraofensiva” ucraniana, outrora incessantemente apregoada pelos media como uma manobra “revolucionária” liderada por mentes brilhantes e combatida com armamento ocidental inatacável, tornou-se agora uma fonte de escárnio aberto.

O que seria impensável assinalar há apenas alguns meses, tornou-se agora corrente. Surgiram milagrosamente relatos pormenorizados de “fontes anónimas” sobre a natureza fracturante do regime do Presidente Zelensky e sobre a intriga shakespeariana em Kiev, quando o Chefe das Forças Armadas, Zaluzhny, enfrenta o endemicamente corrupto establishment ucraniano. Esta narrativa tornou-se subitamente aceitável para os media clientes do Ocidente. Alguém acredita realmente que esta mudança de opinião não tenha sido aprovada ou moldada a nível central? Tendo em conta a história da relação íntima dos serviços secretos americanos com os meios de comunicação social nos Estados Unidos e não só, qualquer pessoa que acredite que o ADN da CIA não está presente nesta mudança radical de informação é excepcionalmente ingénua.

O manual para licenciar a guerra é, de facto, bastante simples. Primeiro, demonize o seu inimigo - chame-lhe orc, chame-lhe terrorista, cultive o medo entre a sua própria população e convença-a de que o seu inimigo não é o grosseiramente incompetente governo que gasta incessantemente milhares de milhões de dólares dos seus impostos em guerras no estrangeiro, mas sim os povos de terras longínquas que muito provavelmente sofrem as suas próprias privações devido a essas mesmas guerras perpétuas.

Depois, convencer os contribuintes de que as elites políticas que elegem não têm culpa destas guerras e das políticas económicas de dominação, que conduziram a vastas crises migratórias, como as enormes multidões de indivíduos que atravessam a fronteira sul dos EUA. Alguém sugere que a política externa norte-americana não teve qualquer influência nestes movimentos maciços de pessoas? Alguém sugere que os migrantes que morrem aos milhares no Mar Mediterrâneo, enquanto clamam desesperadamente por uma vida melhor na Europa, não foram levados para lá pelas inúmeras guerras no Médio Oriente? Estas guerras são travadas contra comunidades e países quase exclusivamente islâmicos que se tornaram endurecidos e radicalizados, não necessariamente pela religião em si, mas pelas políticas externas vazias e idiotas que resultaram da intromissão e interferência do Ocidente no Médio Oriente ao longo de séculos.

Para aqueles de nós que desejam uma paz justa e o fim das guerras eternas, há uma obrigação absoluta de desafiar o enganoso licenciamento dos conflitos por parte dos media clientes. Estas guerras desnecessárias empobrecem e tornam miseráveis não só as vítimas, mas também as populações enganadas dos países de onde emanam. Afinal de contas, são os contribuintes ocidentais que involuntariamente financiam esta grotesca fábrica de lucros circulares, um moedor de carne que suga vidas humanas e cospe uma vasta riqueza para uma pequena elite, a mesma pequena elite intimamente relacionada com a classe política que procura justificar esses conflitos desnecessários. Tudo licenciado e vendido como moralmente defensável pelos sempre leais meios de comunicação social clientes.

Fonte: HomeWorld News, 6 Fev 2024

https://www.odiario.info/palavras-que-matam-como-os-manipulares/ 


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