quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Luísa Semedo - A defesa dos Direitos Humanos é um crime?

OPINIÃO

Para além de se colar à posição de defesa de Direitos Humanos, que deveria ser consensual, a etiqueta de “esquerdista”, também se adicionam as etiquetas antissemita e pró-terrorista.

Luísa Semedo

28 de Dezembro de 2023, 6:50

Já não sei dizer quando isto aconteceu, mas um dia numa aula tive receio de falar de Direitos Humanos e dos valores da República francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Em França, temos o dever de neutralidade política e religiosa quando ensinamos jovens na escola pública. E, nesse momento, pensei que alguns alunos, pais ou direção pudessem considerar que estava a ser proselitista. Senti o mesmo medo em levar roupa que tenho onde figuram mensagens como “Mulheres contra o fascismo”. E pensei: mas porque é que os Direitos Humanos deixaram de ser uma luta universal?

Hoje, quando leio textos que apoiam ou relativizam, entre outros “cídios”, o infanticídio em massa que está a ser levado a cabo pelo poder israelita em Gaza, surpreende-me que vozes de direita insistam nas clivagens políticas entre o seu campo político e a esquerda, diabolizando e caricaturando esta última. Eu pergunto: ser contra matar, queimar, mutilar, traumatizar crianças é de esquerda? Ser contra enterrar vivas pessoas é de esquerda? Ser contra matar à fome e à sede é de esquerda? Ser contra punições coletivas é de esquerda?

É porque deveria ser uma evidência. Evidência esta que está consagrada em vários textos de direito internacional. E, por isso, tanto a ONU, pela voz de António Guterres, como várias ONG que defendem os Direitos Humanos por esse mundo fora são unânimes: é urgente um cessar-fogo, é necessário deixar entrar ajuda humanitária em Gaza, é fundamental encontrar uma solução política. Todas estas vozes com grande experiência de terreno dizem “nunca terem visto isto”. Tal como pôde testemunhar a jornalista da CNN Clarissa Ward, que, com quase 20 anos de experiência de teatros de guerra, na Síria, Iraque, Irão, Afeganistão, Iémen ou Ucrânia, confessou: “Digo, honestamente, penso nunca ter visto isto nesta escala.”

O “isto” é um nível de destruição apocalíptico, com a utilização de centenas de bombas massivas de 900 quilos, quatro vezes mais pesadas do que as maiores bombas utilizadas pelos EUA no Iraque, o que, segundo a CNN, não era visto desde a guerra no Vietname. Estas bombas numa área tão densamente povoada como é Gaza têm um efeito devastador, tanto em termos de mortes de civis, como de destruição. Ser contra isto não deveria ser uma posição polémica e, no entanto, temos vindo a assistir a uma criminalização da defesa dos Direitos Humanos, desde a proibição de manifestações pró-Palestina até à censura, remoção e redução da visibilidade nas redes sociais de contas e conteúdo pró-palestinianos denunciadas, há poucos dias, pela Human Rights Watch.

Para além de se colar à posição de defesa de Direitos Humanos, que deveria ser consensual, a etiqueta de “esquerdista”, também se adicionam as etiquetas antissemita e pró-terrorista. A ponto de se chegar a chamar nazi a António Guterres nas redes sociais. E as ONG credíveis que serviam a estas vozes, por exemplo, para denunciar, e bem, os crimes de Putin na Ucrânia deixam de ser credíveis quando denunciam o massacre de palestinianos. É a chamada magia do duplo padrão, da incongruência ou da hipocrisia. “Estes são os meus princípios, mas, se o poder em Israel não gostar, tenho outros.”

Como é que explicam ficarem mais chocados com slogans em cartazes do que com o efetivo e atual massacre de crianças em curso?

Por muito que procure, há quase três meses que não encontro a resposta a estas perguntas: quais são os limites dos apoiantes no exterior do governo extremista de Netanyahu? Até onde estão dispostos a defender o “amigo”? Como é que explicam ficarem mais chocados com slogans em cartazes do que com o efetivo e atual massacre de crianças em curso?

Sei quais são as respostas das vozes de extrema-direita, para as quais a ideia de um Estado etno-nacionalista supremacista é um ideal a replicar em casa, para os que sendo antissemitas preferem ver judeus longe, fora dos seus países, e para os quais a arabofobia e a islamofobia são o novo carburante. Vozes que consideram que ser terrorista é uma identidade que carregam todos os palestinianos, inclusive as crianças, culpadas, merecedoras da pena de morte. Vozes para as quais os Direitos Humanos sempre foram um crime. Mas o que têm para responder as outras?

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2023/12/28/opiniao/opiniao/defesa-direitos-humanos-crime-2075001


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