OPINIÃO
Para além de se colar à posição de defesa de Direitos Humanos, que deveria ser consensual, a etiqueta de “esquerdista”, também se adicionam as etiquetas antissemita e pró-terrorista.
Luísa Semedo
28 de Dezembro de 2023, 6:50
Já não sei
dizer quando isto aconteceu, mas um dia numa aula tive receio de falar de
Direitos Humanos e dos valores da República francesa: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade. Em França, temos o dever de neutralidade política e religiosa
quando ensinamos jovens na escola pública. E, nesse momento, pensei que alguns
alunos, pais ou direção pudessem considerar que estava a ser proselitista.
Senti o mesmo medo em levar roupa que tenho onde figuram mensagens como
“Mulheres contra o fascismo”. E pensei: mas porque é que os Direitos Humanos
deixaram de ser uma luta universal?
Hoje, quando
leio textos que apoiam ou relativizam, entre outros “cídios”, o infanticídio em
massa que está a ser levado a cabo pelo poder israelita em Gaza, surpreende-me
que vozes de direita insistam nas clivagens políticas entre o seu campo
político e a esquerda, diabolizando e caricaturando esta última. Eu pergunto:
ser contra matar, queimar, mutilar, traumatizar crianças é de esquerda? Ser
contra enterrar vivas pessoas é de esquerda? Ser contra matar à fome e à sede é
de esquerda? Ser contra punições coletivas é de esquerda?
É porque
deveria ser uma evidência. Evidência esta que está consagrada em vários textos
de direito internacional. E, por isso, tanto a ONU, pela voz de António
Guterres, como várias ONG que defendem os Direitos Humanos por esse mundo fora
são unânimes: é urgente um cessar-fogo, é necessário deixar entrar ajuda
humanitária em Gaza, é fundamental encontrar uma solução política. Todas estas
vozes com grande experiência de terreno dizem “nunca terem visto isto”. Tal
como pôde testemunhar a jornalista da CNN Clarissa Ward, que, com quase 20 anos
de experiência de teatros de guerra, na Síria, Iraque, Irão, Afeganistão, Iémen
ou Ucrânia, confessou: “Digo, honestamente, penso nunca ter visto isto nesta escala.”
O “isto” é um
nível de destruição apocalíptico, com a utilização de centenas de bombas
massivas de 900 quilos, quatro vezes mais pesadas do que as maiores bombas
utilizadas pelos EUA no Iraque, o que, segundo a CNN, não
era visto desde a guerra no Vietname. Estas bombas numa área tão densamente
povoada como é Gaza têm um efeito devastador, tanto em termos de mortes de
civis, como de destruição. Ser contra isto não deveria ser uma posição polémica
e, no entanto, temos vindo a assistir a uma criminalização da defesa dos
Direitos Humanos, desde a proibição de manifestações pró-Palestina até à
censura, remoção e redução da visibilidade nas redes sociais de contas e
conteúdo pró-palestinianos denunciadas, há poucos dias, pela Human Rights Watch.
Para além de se
colar à posição de defesa de Direitos Humanos, que deveria ser consensual, a
etiqueta de “esquerdista”, também se adicionam as etiquetas antissemita e
pró-terrorista. A ponto de se chegar a chamar nazi a António Guterres nas redes
sociais. E as ONG credíveis que serviam a estas vozes, por exemplo, para
denunciar, e bem, os crimes de Putin na Ucrânia deixam de ser credíveis quando
denunciam o massacre de palestinianos. É a chamada magia do duplo padrão, da
incongruência ou da hipocrisia. “Estes são os meus princípios, mas, se o poder
em Israel não gostar, tenho outros.”
Como é que
explicam ficarem mais chocados com slogans em cartazes do que
com o efetivo e atual massacre de crianças em curso?
Por muito que
procure, há quase três meses que não encontro a resposta a estas perguntas:
quais são os limites dos apoiantes no exterior do governo extremista de
Netanyahu? Até onde estão dispostos a defender o “amigo”? Como é que explicam
ficarem mais chocados com slogans em cartazes do que com o
efetivo e atual massacre de crianças em curso?
Sei quais são
as respostas das vozes de extrema-direita, para as quais a ideia de um Estado
etno-nacionalista supremacista é um ideal a replicar em casa, para os que sendo
antissemitas preferem ver judeus longe, fora dos seus países, e para os quais a
arabofobia e a islamofobia são o novo carburante. Vozes que consideram que ser
terrorista é uma identidade que carregam todos os palestinianos, inclusive as
crianças, culpadas, merecedoras da pena de morte. Vozes para as quais os
Direitos Humanos sempre foram um crime. Mas o que têm para responder as outras?
A autora é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
https://www.publico.pt/2023/12/28/opiniao/opiniao/defesa-direitos-humanos-crime-2075001
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