OPINIÃO
Gaza é o nosso
espelho. As vítimas da fome estão de pé, o mundo não. Israel está a ser roído
por dentro. Cravinho acertou o passo com Guterres.
Alexandra Lucas Coelho
7 de Fevereiro
de 2024
1. Há quatro
meses que troco mensagens com Gaza. A última vez que partilhei algumas aqui foi
no Natal. Como quase toda a população, o meu amigo W. foi deslocado para sul.
Passou semanas num hospital a meio da Faixa, em Deir Al Balah, com a família da
irmã, bombardeada. W. tem sequelas de ter sido torturado pelo Hamas, desloca-se
com dificuldade. Vou partilhar o mais importante desde o Natal, deixando quase
sempre de fora as expressões de afecto e cortesia que ele não abandona, nem no
horror.
30 de
Dezembro:
“Tenho muitas
dores, não há analgésicos. Estou a tentar ir para o Egipto mas há milhares de
casos médicos mais sérios. Preciso de transplante ósseo e fixação da clavícula.
E de tratar o joelho.”
3 de Janeiro:
“Um
bombardeamento a 30 metros do hospital. Gente em pânico a correr dos
estilhaços. Nusseirat, Bureij e Maghazi ficaram debaixo de fogo e a maior parte
das pessoas fugiu na nossa direcção. Milhares estão a dormir nas ruas. Hoje
comi um pedaço de pão e um tomate. Consegui também 250ml de água. Estou a
guardar 60ml para a noite. Sou sortudo. Muita gente não está a comer. Isso é
claro quando centenas de olhos se fixam no que tenho nas mãos. Muitos de nós
mendigam comida. A fome
tornou as pessoas estranhas. Vi gente roubar, muitas lutas. Nenhuma
privacidade. Zero higiene. O esgoto está por toda a parte. Milhares de membros
amputados. Queimaduras. Cadeiras de roda e bengalas. O hospital está tão cheio,
corredores, pátios. Centenas de feridos a dormir ao relento. Gaza já não é
habitável. Gaza, a bela casa, tornou-se uma grande pilha de entulho. As imagens
lembram-me Nagasáqui e Hiroxima. Mais de cem mil deficientes e cerca de 40 mil
vítimas. Recebi uma foto da minha casa e do meu bairro. É como um terramoto. Estamos
em choque. Desculpa, não devia preocupar-te. Acredita, estamos fortes. Mais do
que alguma vez imaginámos.”
6 de Janeiro:
“A minha casa
[foto de uma pilha de entulho). Não sobrou nada. As pessoas estão a ir
para Rafah.
Ainda não consegui um transporte.”
10 de
Janeiro:
“Deir Al Balah
e o hospital ficaram tão perigosos. Havia tiroteio e bombardeamento. Vi várias
pessoas serem mortas. Vim para Rafah há 4 dias. Estamos a metros do Egipto,
perto do mar. Tão atulhado, pobre, extremamente frio. Não há palavras para o
quanto a vida é miserável aqui. É a sexta vez que sou deslocado nos últimos 90
e tal dias. A água está contaminada, e há pouca. Conseguimos enlatados e temos
farinha para fazer pão. Duche é outro problema. Só urino à noite quando tenho a
certeza de que a multidão não pode ver. Tão inumano. Continuo a rezar para
sair.”
As filhas de W.
estudam fora de Gaza. Uma está no Egipto com a mãe. Elas esperam receber W., e
cuidar dele. Uma exposição do caso de W. é enviada às autoridades egípcias, com
documentos e radiografias. Resposta dos egípcios: que ele vá a um hospital e registe
o seu nome na lista dos que querem sair.
21 de
Janeiro:
“Milhares já
estão registados, incluindo casos muito sérios. Fiz tudo o que podia. Estou
numa tenda precária. A situação piora a cada dia. Nem acredito que ainda me
consigo mexer. Tanta fome. Tão sujo. Muitas dores e frio.”
26 de
Janeiro:
“Manda-me o que
souberes sobre a decisão do Tribunal
Internacional de Justiça.”
29 de
Janeiro:
“Linguagem
forte mas decisão pálida. Israel continuará. Sofreremos mais. Literalmente
morrendo às centenas por dia.”
31 de
Janeiro:
“Ainda em pé.
Mantenho esperança de sair daqui em breve ou ficar forte até este inferno
acabar.”
2 de
Fevereiro:
“Estou num
estado miserável minha amiga. Muito a dizer mas as palavras não bastam. Requer
mais que a minha capacidade. Inshallah conseguirei ultrapassar isto. Tenho
vergonha de partilhar, as pessoas que conheço não são mais as mesmas. O meu
povo hospitaleiro e decente tornou-se mendigo ou ladrão. Fomos privados de
tudo, até da nossa humanidade.”
Este foi o
último dia em que tive notícias de W. O meu outro amigo em Gaza, R., jornalista
profissional, mandou-me uma mensagem no dia seguinte, escrevendo “pedintes”
entre aspas, como se nem suportasse outra forma.
3 de
Fevereiro:
“Estamos
exaustos. Tornámo-nos ‘pedintes’, correndo atrás de mantimentos, cobertores e
água. Embaraça-me esperar numa fila por comida, bater à porta das ONG. Durmo
num cobertor, muito frio. E para tudo há uma longa fila, o que significa o dia
todo, e impossibilidade de trabalhar. Estamos a ser desumanizados. Preciso de
medicação para hipertiroidismo. Missão impossível.”
2. R. e W. não
se conhecem. Ambos são orgulhosos, inteligentes, cultivados. Falam excelente
inglês, viram o mundo quando era possível, antes de o gueto se fechar, porque
têm mais de 50 anos. E uma noção clara da herança histórica. Nenhum deles é
simpatizante do Hamas, pelo contrário. Quando os conheci eram homens saudáveis,
elegantes, com casas cuidadas, acolhedoras, crianças a correr, avós e retratos
nas paredes. Como incontáveis pessoas que conheci em Gaza desde 2002.
Incontáveis casas cuidadas, apesar de estarmos num campo de refugiados, onde
nos sentávamos em chãos limpos a partilhar comida maravilhosa. Jamais vi uma
pessoa pedir na rua em Gaza. Ninguém abandonado.
Foto
Em Gaza,
luta-se por comida todos os dias REUTERS/IBRAHEEM ABU MUSTAFA
Quando há pouco
escrevi o nome Bureij (um dos lugares agora bombardeados), lembrei-me de lá ter
ido com W. visitar uma anciã sobrevivente da Nakba que
falava do marido como de um namorado, refugiada numa casa que nunca desistiu de
ser bonita. Ela dedicara décadas a visitar palestinianos nas cadeias de Israel,
e para poder fazer isso adoptou 40.
A Palestina que
conheci nunca desistiu de ser bonita, começando por Gaza. A vergonha de R. e
W., ao verem o seu povo transformado em pedintes, esfomeados, essas imagens com
que somos bombardeados desde 7 de Outubro não são a vergonha da Palestina. São
a vergonha de Israel.
E de quem tem
sido cúmplice. As vítimas da fome estão de pé, o mundo não. Gaza é o nosso
espelho. O risco de genocídio que o tribunal de Haia considerou plausível não é
só a eliminação de um conjunto de pessoas. É a destruição de um povo cercado,
no seu território, com a sua cultura. Partirem-lhe a coluna, tirarem os órgãos,
matarem os filhos, queimarem a mente. Em Gaza, de forma radical, e na Cisjordânia,
devagar. Isto passa-se há quatro meses diante dos nossos olhos de uma forma que
não se parece com outra guerra. Os danados da terra somos todos nós, que
estamos vivos agora, enquanto isto acontece.
E Israel está a
ser roído por dentro. O tribunal de Haia decreta que façam tudo para prevenir o
genocídio e na manhã seguinte os ministros-colonos dançam
sobre os cadáveres de Gaza, juram plantar lá colonatos, enxotar os
palestinianos. E Biden pune “quatro colonos extremistas”. O nível a que chegou
a ficção. Singularizá-los é uma ficção. Eles são, hoje, o fruto e a faca do
sionismo, a máscara mais feia do estado de Israel, com a colaboração do mundo
rico, à custa da culpa colectiva pós-Holocausto, a bem de muitos negócios,
incluindo os regimes árabes.
Mas a pergunta
mais difícil vai além da culpa e dos negócios: porque é que as vidas
palestinianas não contam como as israelitas, as americanas, as europeias, as
australianas? Sabemos da culpa, sabemos dos negócios. Mas talvez não
soubéssemos da dimensão do racismo incrustado em cada um. E tomem racismo aqui
num sentido amplo, que abrange islamofobia. Tal como o anti-semitismo é
racismo.
Não é por acaso
que o processo em Haia chegou pela mão da África do Sul.
3. Masha
Gessen, jornalista e intelectual judia americana respondeu recentemente às
acusações de ser uma self-hating jew explicando que critica
Israel porque é por aí que deve começar. Sendo judia, é o comportamento de
Israel que a deve preocupar. É o que têm feito os judeus que corajosamente
pedem o cessar-fogo. Precisamos primeiro do que a coragem pede ao que nos é
mais próximo. Claro que do Irão à Arábia Saudita, do Líbano ao Egipto, é fácil
perder a conta aos líderes sinistros. Mas se somos europeus, se estamos em
Portugal, comecemos por nós.
Uma conjuntura
irrepetível faz com que esta guerra sem precedentes aconteça quando o
secretário-geral da ONU é um português. A firmeza de Guterres surpreendeu muita
gente. Biden tornou-se cúmplice da matança e agora prova do veneno de Ben-Gvir
e Smotrich, a ala terrorista do governo de Israel. A UE envergonhou-nos por
meses, e vários dos seus membros voltaram a envergonhar-nos ao suspender o
dinheiro da UNRWA. Critiquei há meses Marcelo e o Governo português.
Nomeadamente, João Cravinho: e por isso quero terminar a dizer que nos honra a
todos ver Portugal não só dar um
milhão extra à UNRWA, como usar palavras firmes quanto ao isolamento
internacional de Israel. Cravinho
acertou o passo com Guterres, dizendo ainda palavras que o secretário-geral
da ONU não poderia dizer. Precisávamos desse acto, desse gesto, dessas
palavras.
https://www.publico.pt/2024/02/07/mundo/opiniao/danados-terra-quatro-meses-2079518
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