segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Carlos Coutinho - Absoluta impiedade à beira do Mondego ou em Jarmelo?

 


[No alto de Jarmelo, nas traseiras do edifício da antiga Câmara Municipal, D. Inês de Castro está ladeada de duas crianças, ajoelhada e olha para três homens que revelam insensibilidade à sua dor. As estátuas em metal são do artista Rui Miragaia e inspiram-se no quadro de Columbano Bordalo Pinheiro intitulado O Drama de Inês de Castro.]

 

Carlos Coutinho

2024 02 19

Vamos por partes

ONTEM, na sequência de um momento picante da visita guiada em que participei ao centro histórico e à sé da Guarda, quase chorei. É que as décadas que levo de vida razoavelmente informada e cada vez mais sedenta de informação, tiveram sempre como certeza que a Quinta da Lágrimas, em Coimbra, foi o camoniano lugar onde três fulanos mataram Inês de Castro, a mando de um rei estratega e resoluto, D. Afonso IV.

Então não é que agora me garantem, com argumentação alegadamente bem documentada, que a tal dama ao serviço da Corte afonsina, aquela que depois de morta foi rainha, partiu desta para melhor num lugar serrano chamado Jarmelo ainda hoje integrado neste concelho ventoso e alto-beirão, a Guarda?

Vamos por partes.

Parte 1

Confirmei que o político assassínio ocorreu lá no alto da antiga vila de Jarmelo, nas traseiras do decrépito edifício que já foi o poiso da respetiva e desaparecida Câmara Municipal. Inês estátua metálica está aí ladeada por duas crianças aflitas, coisas de metal como a mãe.

Anotei que as esculturas são da autoria de Rui Miragaia que se inspirou num quadro famoso de Columbano, havendo ainda quem pense que D. Pedro mandou escombrar a vila porque um dos assassinos havia nascido lá. Foi o que fugiu para a Espanha, o Pêro Coelho, que depois seria recambiado para Portugal, tendo rei “Cruel” ou “Justiceiro” mandado que lhe tirassem de entre os pulmões o seu coração impiedoso.

Sem tomar partido por nenhuma destas duas versões da mesma execução, hoje consideradas lendárias pelos especialistas em indagações historiográficas, confesso que sempre que atravesso o Mondego em Coimbra, vou à Quinta das Lágrimas lançar um olhar condoído para as suas fontes, junto ao Mosteiro de Santa Clara a Velha.

A Fonte das Lágrimas, ao lado da Fonte dos Amores, era, segundo a lenda, o local dos encontros discretos e vulcânicos do príncipe herdeiro, casado com D. Constança, e a sua amada e já mãe, como a legítima rival. E foi aí que no dia 7 de janeiro de 1335 de banharam de sangue os punhais dos três fidalgos leais ao rei mandante. A fonte possui a forma de uma cruz e dela sai uma água profunda, serena e dolente que nunca seca.


Parte 2

Tendo tudo isto em conta, deambulei pelo centro histórico da Guarda, uma urbe com infância pré-romana que a Federação Europeia do Bioclimatismo galardoou com o título de Primeira “Cidade Bioclimática Ibérica” em 2002 e reparei que é desta região que partem as linhas de água subsidiárias das três maiores cidades portuguesas: para a bacia do Tejo que abastece Lisboa, para a bacia do Mondego que dá de beber a Coimbra e para a bacia do Douro donde brotam os melhores vinhos de Portugal, se não do mundo.

Na verdade, tenho alguma dificuldade em meter em mim a ideia de que os primeiros residentes conhecidos nesta região, muito antes da chegada dos romanos foram os celtiberos, coabitando com as feras tribos que Roma apelidou de lusitanas e de outras como as dos igediatanos, as dos ausetanos, bastulos, cessetanos, contestanos, edetanos, ilercavões, ilergetes, indigetes, laietanos, oretanos, lancienses opidanos e as dos transcudanos que preferiam a cerveja de bolota e lutavam com uma espada curva chamada falcata.

Estes povos colaboraram uns com os outros, durante mais de dois séculos, na resistência à romanização. Existência e ação especialíssimas teriam sido as a dos túrdulos. Seguiram-se aos romanos os bárbaros visigodos já cristianizados e, finalmente, os muçulmanos.

Admite-se, não sei como, que topónimo Guarda tenha derivado do de um castro sobranceiro ao Mondego, o Castro de Tintinolho.


Parte 3

O poeta e distribuidor de castelos que também mandou semear os os pinhais de Leiria e a quem chamaram o Lavrador, ficou mês e meio na Guarda em gozo de núpcias com D. Isabel de Aragão, onde também estudou as hipóteses de uma guerra com Castela, conflito que foi para a frente mas não deu em nada a não ser na assinatura do Tratado de Alcanizes que fixou os limites fronteiriços entre os dois reinos.

Também parece indesmentível que aconteceu aqui o “nascimento da língua portuguesa” em 1169, já que aqui foi escrito o primeiro texto literário em português pelo trovador galego Paio Soares de Taveiró para a sua amada Ribeirinha, ou seja, Maria Pais Ribeira, trova que chegou ao conhecimento de D. Sancho I que também fez dela sua amante e com ela semeou duas filhas e quatro filhos, além de mais nove em três outras mulheres.

À Ribeirinha, “branca de pele, de fulvos cabelos, bonita, sedutora” muitos a queriam para si, tal como este rei prolífico que também trovava e até dedicou o a seguinte cantiga de amigo a uma donzela que lhe caiu no goto:

Ay eu, coitada,

como vivo em gram cuydado

por meu amigo

que ey alongado!

muyto me tarda

o meu amigo na Guarda!

Ay eu, coitada, como vivo

en gram desejo por meu amigo

que tarda e non vejo!

muyto me tarda

o meu amigo na Guarda!

 

Tudo isto na minha emoção se sobrepôs à contemplação da maravilhosa sé com o seu magnífico retábulo em pedra de ançã executado na oficina do célebre João de Ruão.


Parte 4

À tarde, a minha excursão dirigiu-se a Celorico da Beira, aonde eu já no ia há mais de quatro décadas, apesar de ser considerada a “capital do queijo da serra”. Terão sido os túrdulos os primeiros povos a povoar a zona., a partir do ano 500 a.n.e. – dizem alguns historiadores, mas outros garantem que esta povoação foi fundada 2 000 anos antes da nossa era. De todos ficaram resíduos arqueológicos de grande monta que têm vindo a ser postos à luz do dia.

D. Afonso Henriques atribuiu-lhe o primeiro foral que foi várias vezes remodelado por outros reis e aqui nasceu, já no século XX um certo António Rosa, que foi almirante e tão Coutinho como eu.

À tarde parti para Trancoso, aonde eu também já não ia há muitos anos.

Devo dizer que era absolutamente urgente para mim o reencontro com um sapateiro que já morreu há 479 anos e se chamava Gonçalo Annes, o Bandarra. Grande alvoroço e acontecimentos inenarráveis, diria Camilo Castelo Branco, ele causou em Portugal durante mais de três séculos.

Muito familiarizado com o Antigo Testamento, compôs uma série de trovas e profecias que aludem ao futuro de Portugal e do mundo, assim como da vinda de um segundo Messias a quem chamou o Encoberto.

Alegava ele que tais prenúncios lhe eram fornecidos em sonhos e profetizava papa Portugal a constituição de um V Império que virou a cabeça ao jesuíta Padre António Vieira e a muitos outros visionários mais ou menos bacocos, chegando a inspirar repetidamente Fernando Pessoa, o poeta com mais heterónimos que eu conheço.

Foi, enfim, o sebastianismo e o milenarismo lusitano, desvarios que assustaram a Inquisição porque via neles provas insofismáveis de judaísmo e condenaram o sapateiro de Trancoso a integrar na fila de um auto de fé no Rossio.

A seguir foi obrigado a voltar para Aldeia Velha, antiga cabeça do concelho que existia a sudoeste da vila de Trancoso. Aí onde morreu em 1556 e há agora na vila uma rua com o seu nome, além de uma estátua de bronze que faz um sapateiro parecer um alcaide. As sua trovas foram incluídas em 1581 no “Catálogo dos Livros Proibidos”.

Em 1642, D. Álvaro Abranches, general da província da Beira, mandou fazer um epitáfio o tumulo do Bandarra, na Igreja de São Pedro da Vila de Trancoso, com os seguintes dizeres:

“Aqui jaz Gonçaliannes Bandarra natural desta Vila que profetizou a restauração deste reino, e que havia de ser no ano de seiscentos e quarenta por el Rei D João o quarto nosso senhor, que hoje reina, faleceu na era de mil e quinhentos e quarenta e cinco.”


Parte 5

Se formos à Wiquipédia, veremos que em Trancoso há histórias ainda mais atordoantes que tudo o que tenho vindo a escrever aqui.

Só é cidade desde dezembro de 2004, mas as suas muralhas apertam lendas e histórias verdadeiras que surpreendem até o mais abstrato dos visitantes. Uma delas é a de um padre que viveu no século XV e terá gerado 299 filhos em 53 mulheres, muitas das quais suas familiares diretas ou próximas, incluindo irmãs e a própria mãe.

A história do padre Costa parece ter começado em 1487 quando, por carta régia datada de 31 de agosto, o monarca português «legitimou Maria Gomes, filha de Diogo Gomes, pároco da Igreja de São Pedro (de Trancoso) e de Maria Eanes, mulher solteira, residente na vila de Trancoso».

As fornicações quase sem intervalos do Padre Costa também incluíram 1 tia, de quem teve 3 filhos, e a própria mãe, na qual terá incubado 2 irmãos-tios ou tios-irmãos, como se queira.

A lenda refere que o prior terá sido julgado em 1487, com 62 anos, e condenado a ser “degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou”.

No entanto, apesar da tétrica sentença, conta-se que “El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos 17 dias do mês de março de 1487 com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo, e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo”.

Sentença proferida no processo contra o prior de Trancoso (1487)

(Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7)

“Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de:

– ter dormido com 29 afilhadas e tendo delas 97 filhas e 37 filhos;

– de 5 irmãs teve 18 filhas;

– de 9 comadres 38 filhos e 18 filhas;

– de 7 amas teve 29 filhos e 5 filhas;

– de 2 escravas teve 21 filhos e 7 filhas;

– dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve 3 filhas, da própria mãe teve 2 filhos.

 

Total: 299 filhos, sendo 214 do sexo feminino e 85 do sexo masculino, tendo concebido em 53 mulheres.


Parte 6

Já que falei dos túrdulos, talvez não seja enjoativo regressar a eles.

Formavam uma antiga tribo tartéssica, ou melhor, um povo pré-romano que vivia no Sul de Portugal, assentada, a leste do Alentejo, entre os vales do rio Guadiana e do Guadalquivir, aproximadamente entre a Oretânia e a Turdetânia.

A sua capital foi o antigo ópido de Ipolka, conhecida como Obulco na época dos romanos, correspondendo atualmente à cidade de Porcuna, em Jaén. Entre outras particularidades, crê-se que os túrdulos se diferenciavam dos demais povos ibérios de então na língua, supostamente de origem tartéssia.

Eis o que encontrei em castelhano e não parece necessário traduzir:

"Porcuna es un pueblo con historia, con una gran historia bajo su gruesa piel de olivos. Un lugar que no ha dejado de estar habitado en los últimos 5.000 años y que entraña numerosos tesoros aún por descubrir. Fue poderosa nación ibera, Ipolka, y decisiva ciudad romana después, Obvlco. De sus épocas tartesias e iberas aún quedan por pulir muchas aristas, mientras que de su glorioso pasado romano las evidencias asoman en cada rincón de la urbe. Pero no menos importante fue para visigodos y musulmanes, y en la Edad Media los reyes deseaban en sus dominios a Porcuna."


Parte 7

Em Coimbra, no regresso a casa, parei no Largo da Portagem e logo desci para a Rua dos Gatos, porque Miguel Torga não veio à janela do seu consultório e na rua escura em que me embrenhei nem o mais infeliz dos felinos me apareceu.

Torga tinha morrido, afinal, como Inês e o próprio Joaquim António de Aguiar, o pedreiro livre que foi cartista e chefe de governo três vezes no século XIX, ainda continua em silêncio a olhar para o Mondego, desde o dia 26 de maio de 1861.


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