[No alto de Jarmelo, nas traseiras do edifício da antiga Câmara Municipal, D. Inês de Castro está ladeada de duas crianças, ajoelhada e olha para três homens que revelam insensibilidade à sua dor. As estátuas em metal são do artista Rui Miragaia e inspiram-se no quadro de Columbano Bordalo Pinheiro intitulado O Drama de Inês de Castro.]
2024 02 19
Vamos por partes
ONTEM, na sequência de um momento
picante da visita guiada em que participei ao centro histórico e à sé da
Guarda, quase chorei. É que as décadas que levo de vida razoavelmente informada
e cada vez mais sedenta de informação, tiveram sempre como certeza que a Quinta
da Lágrimas, em Coimbra, foi o camoniano lugar onde três fulanos mataram Inês
de Castro, a mando de um rei estratega e resoluto, D. Afonso IV.
Então não é que agora me
garantem, com argumentação alegadamente bem documentada, que a tal dama ao
serviço da Corte afonsina, aquela que depois de morta foi rainha, partiu desta
para melhor num lugar serrano chamado Jarmelo ainda hoje integrado neste concelho
ventoso e alto-beirão, a Guarda?
Vamos por partes.
Parte 1
Confirmei que o político
assassínio ocorreu lá no alto da antiga vila de Jarmelo, nas traseiras do
decrépito edifício que já foi o poiso da respetiva e desaparecida Câmara
Municipal. Inês estátua metálica está aí ladeada por duas crianças aflitas,
coisas de metal como a mãe.
Anotei que as esculturas são da
autoria de Rui Miragaia que se inspirou num quadro famoso de Columbano, havendo
ainda quem pense que D. Pedro mandou escombrar a vila porque um dos assassinos
havia nascido lá. Foi o que fugiu para a Espanha, o Pêro Coelho, que depois
seria recambiado para Portugal, tendo rei “Cruel” ou “Justiceiro” mandado que
lhe tirassem de entre os pulmões o seu coração impiedoso.
Sem tomar partido por nenhuma
destas duas versões da mesma execução, hoje consideradas lendárias pelos
especialistas em indagações historiográficas, confesso que sempre que atravesso
o Mondego em Coimbra, vou à Quinta das Lágrimas lançar um olhar condoído para
as suas fontes, junto ao Mosteiro de Santa Clara a Velha.
A Fonte das Lágrimas, ao lado da
Fonte dos Amores, era, segundo a lenda, o local dos encontros discretos e
vulcânicos do príncipe herdeiro, casado com D. Constança, e a sua amada e já
mãe, como a legítima rival. E foi aí que no dia 7 de janeiro de 1335 de
banharam de sangue os punhais dos três fidalgos leais ao rei mandante. A fonte
possui a forma de uma cruz e dela sai uma água profunda, serena e dolente que
nunca seca.
Parte 2
Tendo tudo isto em conta,
deambulei pelo centro histórico da Guarda, uma urbe com infância pré-romana que
a Federação Europeia do Bioclimatismo galardoou com o título de Primeira
“Cidade Bioclimática Ibérica” em 2002 e reparei que é desta região que partem
as linhas de água subsidiárias das três maiores cidades portuguesas: para a
bacia do Tejo que abastece Lisboa, para a bacia do Mondego que dá de beber a
Coimbra e para a bacia do Douro donde brotam os melhores vinhos de Portugal, se
não do mundo.
Na verdade, tenho alguma
dificuldade em meter em mim a ideia de que os primeiros residentes conhecidos
nesta região, muito antes da chegada dos romanos foram os celtiberos,
coabitando com as feras tribos que Roma apelidou de lusitanas e de outras como
as dos igediatanos, as dos ausetanos, bastulos, cessetanos, contestanos,
edetanos, ilercavões, ilergetes, indigetes, laietanos, oretanos, lancienses
opidanos e as dos transcudanos que preferiam a cerveja de bolota e lutavam com
uma espada curva chamada falcata.
Estes povos colaboraram uns com
os outros, durante mais de dois séculos, na resistência à romanização.
Existência e ação especialíssimas teriam sido as a dos túrdulos. Seguiram-se
aos romanos os bárbaros visigodos já cristianizados e, finalmente, os muçulmanos.
Admite-se, não sei como, que
topónimo Guarda tenha derivado do de um castro sobranceiro ao Mondego, o Castro
de Tintinolho.
Parte 3
O poeta e distribuidor de
castelos que também mandou semear os os pinhais de Leiria e a quem chamaram o
Lavrador, ficou mês e meio na Guarda em gozo de núpcias com D. Isabel de
Aragão, onde também estudou as hipóteses de uma guerra com Castela, conflito que
foi para a frente mas não deu em nada a não ser na assinatura do Tratado de
Alcanizes que fixou os limites fronteiriços entre os dois reinos.
Também parece indesmentível que
aconteceu aqui o “nascimento da língua portuguesa” em 1169, já que aqui foi
escrito o primeiro texto literário em português pelo trovador galego Paio
Soares de Taveiró para a sua amada Ribeirinha, ou seja, Maria Pais Ribeira,
trova que chegou ao conhecimento de D. Sancho I que também fez dela sua amante
e com ela semeou duas filhas e quatro filhos, além de mais nove em três outras
mulheres.
À Ribeirinha, “branca de pele, de
fulvos cabelos, bonita, sedutora” muitos a queriam para si, tal como este rei
prolífico que também trovava e até dedicou o a seguinte cantiga de amigo a uma
donzela que lhe caiu no goto:
Ay eu, coitada,
como vivo em gram cuydado
por meu amigo
que ey alongado!
muyto me tarda
o meu amigo na Guarda!
Ay eu, coitada, como vivo
en gram desejo por meu amigo
que tarda e non vejo!
muyto me tarda
o meu amigo na Guarda!
Tudo isto na minha emoção se
sobrepôs à contemplação da maravilhosa sé com o seu magnífico retábulo em pedra
de ançã executado na oficina do célebre João de Ruão.
Parte 4
À tarde, a minha excursão
dirigiu-se a Celorico da Beira, aonde eu já no ia há mais de quatro décadas,
apesar de ser considerada a “capital do queijo da serra”. Terão sido os
túrdulos os primeiros povos a povoar a zona., a partir do ano 500 a.n.e. – dizem
alguns historiadores, mas outros garantem que esta povoação foi fundada 2 000
anos antes da nossa era. De todos ficaram resíduos arqueológicos de grande
monta que têm vindo a ser postos à luz do dia.
D. Afonso Henriques atribuiu-lhe
o primeiro foral que foi várias vezes remodelado por outros reis e aqui nasceu,
já no século XX um certo António Rosa, que foi almirante e tão Coutinho como
eu.
À tarde parti para Trancoso,
aonde eu também já não ia há muitos anos.
Devo dizer que era absolutamente
urgente para mim o reencontro com um sapateiro que já morreu há 479 anos e se
chamava Gonçalo Annes, o Bandarra. Grande alvoroço e acontecimentos
inenarráveis, diria Camilo Castelo Branco, ele causou em Portugal durante mais
de três séculos.
Muito familiarizado com o Antigo
Testamento, compôs uma série de trovas e profecias que aludem ao futuro de
Portugal e do mundo, assim como da vinda de um segundo Messias a quem chamou o
Encoberto.
Alegava ele que tais prenúncios
lhe eram fornecidos em sonhos e profetizava papa Portugal a constituição de um
V Império que virou a cabeça ao jesuíta Padre António Vieira e a muitos outros
visionários mais ou menos bacocos, chegando a inspirar repetidamente Fernando
Pessoa, o poeta com mais heterónimos que eu conheço.
Foi, enfim, o sebastianismo e o
milenarismo lusitano, desvarios que assustaram a Inquisição porque via neles
provas insofismáveis de judaísmo e condenaram o sapateiro de Trancoso a
integrar na fila de um auto de fé no Rossio.
A seguir foi obrigado a voltar
para Aldeia Velha, antiga cabeça do concelho que existia a sudoeste da vila de
Trancoso. Aí onde morreu em 1556 e há agora na vila uma rua com o seu nome,
além de uma estátua de bronze que faz um sapateiro parecer um alcaide. As sua
trovas foram incluídas em 1581 no “Catálogo dos Livros Proibidos”.
Em 1642, D. Álvaro Abranches,
general da província da Beira, mandou fazer um epitáfio o tumulo do Bandarra,
na Igreja de São Pedro da Vila de Trancoso, com os seguintes dizeres:
“Aqui jaz Gonçaliannes Bandarra
natural desta Vila que profetizou a restauração deste reino, e que havia de ser
no ano de seiscentos e quarenta por el Rei D João o quarto nosso senhor, que
hoje reina, faleceu na era de mil e quinhentos e quarenta e cinco.”
Parte 5
Se formos à Wiquipédia, veremos
que em Trancoso há histórias ainda mais atordoantes que tudo o que tenho vindo
a escrever aqui.
Só é cidade desde dezembro de
2004, mas as suas muralhas apertam lendas e histórias verdadeiras que
surpreendem até o mais abstrato dos visitantes. Uma delas é a de um padre que
viveu no século XV e terá gerado 299 filhos em 53 mulheres, muitas das quais
suas familiares diretas ou próximas, incluindo irmãs e a própria mãe.
A história do padre Costa parece
ter começado em 1487 quando, por carta régia datada de 31 de agosto, o monarca
português «legitimou Maria Gomes, filha de Diogo Gomes, pároco da Igreja de São
Pedro (de Trancoso) e de Maria Eanes, mulher solteira, residente na vila de
Trancoso».
As fornicações quase sem
intervalos do Padre Costa também incluíram 1 tia, de quem teve 3 filhos, e a
própria mãe, na qual terá incubado 2 irmãos-tios ou tios-irmãos, como se
queira.
A lenda refere que o prior terá
sido julgado em 1487, com 62 anos, e condenado a ser “degredado de suas ordens
e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo
e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi
arguido e que ele mesmo não contrariou”.
No entanto, apesar da tétrica
sentença, conta-se que “El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em
liberdade aos 17 dias do mês de março de 1487 com o fundamento de ajudar a
povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo, e guardar no Real
Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o
processo”.
Sentença proferida no processo
contra o prior de Trancoso (1487)
(Torre do Tombo, Armário 5, Maço
7)
“Padre Francisco da Costa, prior
de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e
arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e
postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi
arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de:
– ter dormido com 29 afilhadas e tendo delas 97 filhas e 37 filhos;
– de 5 irmãs teve 18 filhas;
– de 9 comadres 38 filhos e 18 filhas;
– de 7 amas teve 29 filhos e 5 filhas;
– de 2 escravas teve 21 filhos e 7 filhas;
– dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve 3 filhas, da
própria mãe teve 2 filhos.
Total: 299 filhos, sendo 214 do
sexo feminino e 85 do sexo masculino, tendo concebido em 53 mulheres.
Parte 6
Já que falei dos túrdulos, talvez
não seja enjoativo regressar a eles.
Formavam uma antiga tribo
tartéssica, ou melhor, um povo pré-romano que vivia no Sul de Portugal,
assentada, a leste do Alentejo, entre os vales do rio Guadiana e do
Guadalquivir, aproximadamente entre a Oretânia e a Turdetânia.
A sua capital foi o antigo ópido
de Ipolka, conhecida como Obulco na época dos romanos, correspondendo
atualmente à cidade de Porcuna, em Jaén. Entre outras particularidades, crê-se
que os túrdulos se diferenciavam dos demais povos ibérios de então na língua,
supostamente de origem tartéssia.
Eis o que encontrei em castelhano
e não parece necessário traduzir:
"Porcuna es un pueblo con
historia, con una gran historia bajo su gruesa piel de olivos. Un lugar que no
ha dejado de estar habitado en los últimos 5.000 años y que entraña numerosos
tesoros aún por descubrir. Fue poderosa nación ibera, Ipolka, y decisiva ciudad
romana después, Obvlco. De sus épocas tartesias e iberas aún quedan por pulir
muchas aristas, mientras que de su glorioso pasado romano las evidencias asoman
en cada rincón de la urbe. Pero no menos importante fue para visigodos y
musulmanes, y en la Edad Media los reyes deseaban en sus dominios a
Porcuna."
Parte 7
Em Coimbra, no regresso a casa,
parei no Largo da Portagem e logo desci para a Rua dos Gatos, porque Miguel
Torga não veio à janela do seu consultório e na rua escura em que me embrenhei
nem o mais infeliz dos felinos me apareceu.
Torga tinha morrido, afinal, como
Inês e o próprio Joaquim António de Aguiar, o pedreiro livre que foi cartista e
chefe de governo três vezes no século XIX, ainda continua em silêncio a olhar
para o Mondego, desde o dia 26 de maio de 1861.
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