* Carla Romualdo
19/02/2024
Era um modesto hotel de uma cidade de província. Um desses estabelecimentos semifamiliares, em que o dono parece ter conseguido desenvolver o dom da ubiquidade, não só para controlar os empregados e guardar a sua propriedade, mas também para observar com deleite a nossa cara de susto quando nos surpreendia em cada esquina. Era um homem calvo, de rosto amarelado, com um dente de ouro que reluzia em simultâneo com o relógio de pulso, uma espécie de sincronização prévia à dos smartwatches com os smartphones que me pareceu muito original. Esperava os hóspedes pela manhã, chegava a persegui-los se ousavam esquivá-lo, para indicar-lhes a salinha, mesmo ali ao lado, onde o pequeno-almoço estava a ser servido, como se estivéssemos em Xanadu e houvesse o risco de perder-nos. Desejava que estivesse “tudo de feição” e indagava detalhes sobre a nosso relacionamento com o colchão: demasiado brando, quiçá muito duro? E que tal as almofadas? A mantinha extra está na prateleira de cima do armário, favor não esquecer. Era diligente, atencioso, insuportável.
O dono alternava com um rapazola na recepção. O rapazola dava indicações sobre como abrir a fechadura da porta do quarto e qual a melhor estrada para a cidade mais próxima com a rispidez de quem já perdeu a paciência para velhadas e os olhos indisfarçadamente postos no “Velocidade Furiosa 14”, que a TV frente ao balcão parecia estar sempre a transmitir. Já o dono sintonizava a CMTV, para animar o ambiente.
A cidade era monótona, o tempo chuvoso, o quarto arcaico. Ao pequeno-almoço, sentávamo-nos todos na salinha acanhada e falávamos baixo porque todos escutavam todos, a rádio tocava “os grandes sucessos da década de oitenta” e havia sempre alguém a lutar para libertar o pão da torradeira (“ela prende muito”, esclarecia a empregada), enquanto uma jovem, a única que apreciava ser escutada por todos, de gorro cor-de-rosa e botas altas, apetrechada para uma neve imaginária, garantia ao marido que já sabia que iria ter problemas com a Cátia, porque ela não tem consideração por ninguém e até a mãe se queixa dela no supermercado.
As cidades onde não acontece rigorosamente nada, são agradáveis, à sua maneira. Visitei mercados vazios e castelos encerrados (“Tem de vir cá na Primavera!”), li os anúncios necrológicos afixados nas paredes, avistei uma fauna pujante e sabiamente misantrópica (um casal de javalis, de passeio com os javardinhos, escapou da estrada com a destreza de celebridades habituadas a esquivarem paparazzi), evitei experiências gastronómicas e preferi seguir o conselho dos locais, e, por fim, cheguei ao sítio onde realmente queria ir, no qual me esperavam paisagens deslumbrantes e um gato zarolho, mas cuja história fica para outro dia.
Pelo caminho, assisti aos exercícios de uns quantos praticantes de BTT, a quem admirei a valentia e lamentei a falta de juízo, enquanto os via lançar-se pela ribanceira enlameada, evitando os pinheiros por um triz, e dizia para mim mesma o que dizem todos os cobardes, que o que nos temos é um elevadíssimo instinto de autopreservação.
Os dias passaram com uma lentidão prazenteira, quanto bastasse para que eu pudesse entregar-me aos habituais devaneios sobre uma vida no campo em que me dedicaria a cultivar alfazema e a ordenhar as minhas cabritas que teriam os nomes das irmãs Brontë, até ao momento do regresso a casa, quando alegremente adio sine die estes planos e recordo que tanto as cabras como a alfazema provavelmente me fariam espirrar, e que o campo só é aceitável quando fica perto da esplanada de um bar, como nos ensinou certa canção.
Quem me conhece reserva sempre uma palavra de cepticismo desdenhoso para os meus planos de fuga para o campo, porque as pessoas, em geral, têm pouca fé nos seus semelhantes e houve um ou outro episódio em que fugi de certos animais que afinal eram amistosos (como se eu pudesse saber!) ou em que me esbardalhei por um caminho de cabras e amaldiçoei o concelho inteiro. Enfim, o que lá vai lá vai.
Saí do hotel a transbordar de amor pelas cidades de província, pelos castelos fechados até Março, pelos praticantes de BTT, pelas torradeiras que prendem muito, e até, talvez, pela jovem Cátia que nem pela mãe parece ser apreciada.
Bem vos avisei que não ia acontecer nada.
https://aventar.eu/2024/02/19/historia-em-que-nao-acontece-nada/#more-1341557
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