OPINIÃO
Fábrica de
monstros
Em vários contextos de guerra, massacres, genocídios, existem constantes que passam por desumanizar os inimigos, relegando-os para o lugar de animais considerados repugnantes ou nocivos.<
Luísa Semedo
14 de Dezembro
de 2023, 6:19
Ainda hoje,
quando entro na Biblioteca Nacional de França, passados mais de dez anos, sinto
uma estranha sensação de opressão. Vivi ali dentro uma espécie de memória
traumática de que o meu corpo se lembra de forma involuntária. Para a minha
tese de doutoramento sobre a nossa capacidade de empatia, passei algumas
semanas a ler sobre como se fabricam monstros. Como podem pessoas banais
transformar-se em verdadeiros monstros morais. Como se pode destruir a empatia,
a humanidade de uma pessoa, naturalmente constituída de emoções e
comportamentos morais, indispensáveis à sobrevivência dos animais sociais que
somos.
O que mais me
impressionou nessa altura foi o trabalho imersivo de entrar na cabeça de quem
foi um monstro, como antigas crianças-soldados, torcionários e terroristas. Os
seus testemunhos sobre essa fase das suas vidas, do processo de desempatia, da
maneira como viam as suas vítimas no momento da violência são muito
desestabilizadores. Pensei neles quando li alguns testemunhos de jornalistas
que viram os vídeos das câmaras subjetivas do ataque do Hamas e de como lhes
impressionou essa perspetiva inédita de ver a violência do ponto de vista de
quem a perpetra.
Em vários
contextos de guerra, massacres, genocídios, existem constantes que passam por
desumanizar os inimigos, relegando-os para o lugar de animais considerados
repugnantes ou nocivos como baratas, ratos ou serpentes. E, ainda, a
desindividualização, passando a ser impossível ver o inimigo como uma pessoa,
mas como uma massa informe em que toda a gente passa a culpada ou dispensável,
passível de ser transformada em meio para um fim, ou dano colateral.
Muitos dos
testemunhos descrevem o facto de se olhar para o inimigo sem nunca pensar que
este tem “uma irmã ou um irmão” ou ainda que, sendo “animais sem alma nem
consciência” e não fazendo parte da mesma humanidade, toda a violência é
possível. Faz parte do processo de desumanização retirar a roupa do inimigo
porque um corpo nu está mais perto do animal e a nudez permite uma maior
despersonalização. Para garantir que não se veja a sua humanidade vendam-lhes
os olhos, baixam-lhes a cabeça ou posicionam-se atrás das vítimas, porque o
“olhar nos olhos” é um perigo, visto este poder acordar a humanidade do monstro
agressor.
Camião com
palestinianos feitos prisioneiros pelo exército israelita, a 10/12/2023, na
Faixa de Gaza YOSSI ZELIGER/REUTERS
Lembrei-me
destes testemunhos quando vi as imagens recentes de palestinianos sem roupa, de
cabeça baixa ou de costas capturados pelos soldados israelitas no Norte de
Gaza. A questão da humanidade que surge através da cara do outro é uma das
constantes no testemunho dos torcionários: “Lembro-me da primeira pessoa que
olhou para mim, no momento do golpe final. Foi qualquer coisa. Os olhos daquele
que matamos são imortais (…) Os olhos do morto, para o assassino, são, se este
os vê, a sua calamidade. Eles são a acusação daquele que ele matou”, conta um
dos assassinos do genocídio em Ruanda.
As guerras
feitas através de bombas, de dispositivos à distância e agora com a ajuda da
inteligência artificial têm a terrível consequência de não deixarem grande
hipótese ao surgimento de um qualquer traço de humanidade inibidor de
violência. A prevenção de massacres humanos passa, entre outras coisas, pela
responsabilização dos agressores porque o sentimento de impunidade é fator
agravante da violência, mas igualmente por uma educação sobre estes mecanismos
de desumanização que implicam também a profunda desumanização do agressor.
“Senti que já não tinha alma, que tinha passado a ser outra pessoa, que a minha
alma se tinha separado do meu corpo, sentia que estava a perder o meu
sentimento de humanidade”, “não éramos só criminosos, passámos a ser uma espécie
feroz num mundo bárbaro”, relatam alguns torcionários.
Lamento, hoje,
não ter investigado sobre o processo de desumanização de testemunhas
exteriores, porque agora custa-me compreender como alguém não diretamente
implicado, sentado confortavelmente num sofá, consegue apoiar
incondicionalmente o massacre em Gaza de tantos civis, de tantas crianças.
Questiono-me sobre os limites da sua (des)humanidade.
A autora é
colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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