sábado, 24 de fevereiro de 2024

O OCIDENTE ‘OXIDANTE’ (‘L'’OXYDANT ‘) – por Alain de Benoist

O OCIDENTE ‘OXIDANTE’  (‘L'’OXYDANT ‘) – por Alain de Benoist (*), tradução de Alfredo  Barroso

Há muito tempo que o Ocidente não se define pela sua oposição ao “Oriente”. O que hoje se designa por “Ocidente”, é o conjunto político-tecno-económico que associa, sob domínio anglo-saxónico, os Estados-Unidos da América e a Europa Ocidental. Ora, os Estados-Unidos nasceram de um desejo de romper com a Europa e, após terem substituído, quase por completo, as populações autóctones, e de terem criado uma nova Terra Prometida, nunca deixaram de impor ao mundo, desde então, uma americanização indissociável da extensão planetária do comércio livre, da “sociedade aberta” e da lógica do mercado. Um prelúdio do velho sonho de um Estado mundial.

Dum lado e doutro do Atlântico, os interesses são necessariamente divergentes. Tomar partido pelo Ocidente, é tomar partido pelo Mar contra a Terra, pelas potências comerciais marítimas contra as potências políticas continentais, ou seja, ignorar os dados mais fundamentais da geopolítica. Porque o Ocidente é, antes de tudo o mais, isso: uma aberração histórica, ideológica e geopolítica.

O OCIDENTE, CONTRASTE DO SUL GLOBAL

Nem por isso o “ocidentalismo” deixa de estar mais presente do que nunca. Como é habitual, ele reúne, em proporções variáveis, os idiotas úteis e os colaboracionistas estipendiados. Tem-se visto a propósito do consenso mediático relativo à guerra na Ucrânia ou ao conflito israelo-palestiniano: os grandes partidos da direita e da esquerda estão hoje convertidos ao atlantismo, em ruptura com a tradição de independência característica duma linha “gaullista” hoje repudiada. O ocidentalismo, é uma espécie de inventário à Prévert: reúne atlantistas de sempre, que endossam sem estados de alma o papel de vassalos da América; liberais que acham que tudo o que vem de além-Atlântico é necessariamente melhor; bravos conservadores que ainda acreditam que o Ocidente é a “civilização”; leucodermes alucinados, pertencentes aos meios marginais da chamada “lunatic fringe” que se atém no essencial a um “nacionalismo puro” (um nacionalismo vazio, sem raízes sociais-históricas, portanto tipicamente americano) totalmente impolítico.

«Aqueles que (‘esquerda’ cosmopolita à cabeça) - escreve Panagiotis Kondylis - acreditam numa coesão do Oeste baseada exclusivamente na comunidade dos valores, são politicamente e historicamente ingénuos. A comunidade dos valores não cria só por si comunidade de interesses – pode mesmo suceder o contrário». No passado, aliás, a comunidade dos valores nunca impediu os países europeu de fazerem a guerra uns contra os outros.

Mas, de que valores estamos a falar? Ontem, o Ocidente era respeitado ou detestado, mas em geral invejado. Hoje, todavia, é considerado decadente, depravado, envergonhado da sua própria existência e, precisamente por essa razão, (justamente) desprezado. Para uma maioria de países que se recusam a considerar que a teoria do género e os delírios LGBT, a “cancel culture” e o “wokismo” são “valores universais”, o Ocidente já não é um modelo. É apenas um repelente.

«A política supremacista ocidentalista conduzida desde o fim da URSS conduziu-nos à situação em que estamos hoje», disse recentemente Hubert Védrine. Mas Joe Biden, esse, garante friamente que «a liderança americana é o que hoje une o mundo» (qualificando, de passagem, a ajuda à Ucrânia como «investimento inteligente que renderá dividendos para a segurança dos EUA por várias gerações»!). Na Europa, o ocidentalismo só pode, por conseguinte, tender para a direcção dos países e dos povos por um governador-geral [um ‘gauleiter’] de além-Atlântico. Em última análise, um tal conceito de Ocidente remete para a colonização e para a submissão. Uma Europa «ocidental» é uma Europa que já não tem nem a vontade nem os meios de determinar a sua política em função dos seus interesses. A adesão ao Ocidente é sinónimo de dependência e de vassalagem.

Tal como o capitalismo predatório, também o Ocidente é o inimigo da Europa. Um inimigo ‘íntimo’ se preferirem, um inimigo interno, sinónimo da tentação de ceder ao conforto da impotência e da vassalagem.

Trotsky passa por ter dito que «a guerra é a locomotiva da história». Mas foi de facto Marx que afirmou que «as revoluções são a locomotiva da história» (‘A Luta de Classes em França’, 1850). Mas é verdade que a guerra da NATO contra a Rússia, conduzida na Ucrânia, desempenhou o papel dum formidável acelerador dos processos em curso. Por pouco que analisemos todas as suas consequências, vê-se perfeitamente que ela já mudou o mundo.

Na assembleia geral da ONU, quarenta países que representam dois terços da humanidade recusaram-se a condenar a entrada de tropas russas na Ucrânia e a aprovar a política americana de sanções contra a Rússia. Dezanove países já fazem hoje fila à porta dos BRICS [Brasil, Rússia, India, China, África do Sul] que contribuem por si sós para uma maior parte do crescimento mundial do que os países do G7. Como então, nestas condições, continuar a falar de uma «comunidade internacional» que só representa os países anglo-saxónicos e os seus aliados?! Se há, doravante, uma comunidade internacional, ela tem de ser sobretudo a dos países emergentes, que recusam considerar o Ocidente como a encarnação do «mundo civilizado».

Uma nova clivagem se impõe, anunciadora de um Nomos da Terra fundado na multipolaridade (ou no ‘pluriversalismo’) e no não-alinhamento: de um lado, o «Ocidente colectivo» e o seu núcleo anglo-saxónico; do outro lado, o «resto do mundo», a começar pelos países que durante muito tempo foram qualificados como «emergentes» e que surgem agora como potências de futuro. Há um Sul periférico, assim como há uma França periférica. Este corte entre o «Ocidente colectivo» e o «resto do mundo» só pode aprofundar-se. Há que ver nisso uma boa notícia. Como escreve Max-Erwan Gastineau em “A era da afirmação”, é a desocidentalização que constitui uma possibilidade para uma Europa que está em dormência [entorpecida, sonolenta, em estado soporífero].

O futuro da Europa não está a Oeste, do lado do estado ‘terminal’ do Poente californiano. Está do lado do Sol nascente, do Levante.

(*) Na revista francesa “éléments”, número 206, de Fevereiro-Março de 2024

 

2024 02 23 (*), tradução de Alfredo  Barroso

Há muito tempo que o Ocidente não se define pela sua oposição ao “Oriente”. O que hoje se designa por “Ocidente”, é o conjunto político-tecno-económico que associa, sob domínio anglo-saxónico, os Estados-Unidos da América e a Europa Ocidental. Ora, os Estados-Unidos nasceram de um desejo de romper com a Europa e, após terem substituído, quase por completo, as populações autóctones, e de terem criado uma nova Terra Prometida, nunca deixaram de impor ao mundo, desde então, uma americanização indissociável da extensão planetária do comércio livre, da “sociedade aberta” e da lógica do mercado. Um prelúdio do velho sonho de um Estado mundial.

Dum lado e doutro do Atlântico, os interesses são necessariamente divergentes. Tomar partido pelo Ocidente, é tomar partido pelo Mar contra a Terra, pelas potências comerciais marítimas contra as potências políticas continentais, ou seja, ignorar os dados mais fundamentais da geopolítica. Porque o Ocidente é, antes de tudo o mais, isso: uma aberração histórica, ideológica e geopolítica.

O OCIDENTE, CONTRASTE DO SUL GLOBAL

Nem por isso o “ocidentalismo” deixa de estar mais presente do que nunca. Como é habitual, ele reúne, em proporções variáveis, os idiotas úteis e os colaboracionistas estipendiados. Tem-se visto a propósito do consenso mediático relativo à guerra na Ucrânia ou ao conflito israelo-palestiniano: os grandes partidos da direita e da esquerda estão hoje convertidos ao atlantismo, em ruptura com a tradição de independência característica duma linha “gaullista” hoje repudiada. O ocidentalismo, é uma espécie de inventário à Prévert: reúne atlantistas de sempre, que endossam sem estados de alma o papel de vassalos da América; liberais que acham que tudo o que vem de além-Atlântico é necessariamente melhor; bravos conservadores que ainda acreditam que o Ocidente é a “civilização”; leucodermes alucinados, pertencentes aos meios marginais da chamada “lunatic fringe” que se atém no essencial a um “nacionalismo puro” (um nacionalismo vazio, sem raízes sociais-históricas, portanto tipicamente americano) totalmente impolítico.

«Aqueles que (‘esquerda’ cosmopolita à cabeça) - escreve Panagiotis Kondylis - acreditam numa coesão do Oeste baseada exclusivamente na comunidade dos valores, são politicamente e historicamente ingénuos. A comunidade dos valores não cria só por si comunidade de interesses – pode mesmo suceder o contrário». No passado, aliás, a comunidade dos valores nunca impediu os países europeu de fazerem a guerra uns contra os outros.

Mas, de que valores estamos a falar? Ontem, o Ocidente era respeitado ou detestado, mas em geral invejado. Hoje, todavia, é considerado decadente, depravado, envergonhado da sua própria existência e, precisamente por essa razão, (justamente) desprezado. Para uma maioria de países que se recusam a considerar que a teoria do género e os delírios LGBT, a “cancel culture” e o “wokismo” são “valores universais”, o Ocidente já não é um modelo. É apenas um repelente.

«A política supremacista ocidentalista conduzida desde o fim da URSS conduziu-nos à situação em que estamos hoje», disse recentemente Hubert Védrine. Mas Joe Biden, esse, garante friamente que «a liderança americana é o que hoje une o mundo» (qualificando, de passagem, a ajuda à Ucrânia como «investimento inteligente que renderá dividendos para a segurança dos EUA por várias gerações»!). Na Europa, o ocidentalismo só pode, por conseguinte, tender para a direcção dos países e dos povos por um governador-geral [um ‘gauleiter’] de além-Atlântico. Em última análise, um tal conceito de Ocidente remete para a colonização e para a submissão. Uma Europa «ocidental» é uma Europa que já não tem nem a vontade nem os meios de determinar a sua política em função dos seus interesses. A adesão ao Ocidente é sinónimo de dependência e de vassalagem.

Tal como o capitalismo predatório, também o Ocidente é o inimigo da Europa. Um inimigo ‘íntimo’ se preferirem, um inimigo interno, sinónimo da tentação de ceder ao conforto da impotência e da vassalagem.

Trotsky passa por ter dito que «a guerra é a locomotiva da história». Mas foi de facto Marx que afirmou que «as revoluções são a locomotiva da história» (‘A Luta de Classes em França’, 1850). Mas é verdade que a guerra da NATO contra a Rússia, conduzida na Ucrânia, desempenhou o papel dum formidável acelerador dos processos em curso. Por pouco que analisemos todas as suas consequências, vê-se perfeitamente que ela já mudou o mundo.

Na assembleia geral da ONU, quarenta países que representam dois terços da humanidade recusaram-se a condenar a entrada de tropas russas na Ucrânia e a aprovar a política americana de sanções contra a Rússia. Dezanove países já fazem hoje fila à porta dos BRICS [Brasil, Rússia, India, China, África do Sul] que contribuem por si sós para uma maior parte do crescimento mundial do que os países do G7. Como então, nestas condições, continuar a falar de uma «comunidade internacional» que só representa os países anglo-saxónicos e os seus aliados?! Se há, doravante, uma comunidade internacional, ela tem de ser sobretudo a dos países emergentes, que recusam considerar o Ocidente como a encarnação do «mundo civilizado».

Uma nova clivagem se impõe, anunciadora de um Nomos da Terra fundado na multipolaridade (ou no ‘pluriversalismo’) e no não-alinhamento: de um lado, o «Ocidente colectivo» e o seu núcleo anglo-saxónico; do outro lado, o «resto do mundo», a começar pelos países que durante muito tempo foram qualificados como «emergentes» e que surgem agora como potências de futuro. Há um Sul periférico, assim como há uma França periférica. Este corte entre o «Ocidente colectivo» e o «resto do mundo» só pode aprofundar-se. Há que ver nisso uma boa notícia. Como escreve Max-Erwan Gastineau em “A era da afirmação”, é a desocidentalização que constitui uma possibilidade para uma Europa que está em dormência [entorpecida, sonolenta, em estado soporífero].

O futuro da Europa não está a Oeste, do lado do estado ‘terminal’ do Poente californiano. Está do lado do Sol nascente, do Levante.

(*) Na revista francesa “éléments”, número 206, de Fevereiro-Março de 2024

 

2024 02 23

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