O OCIDENTE ‘OXIDANTE’
(‘L'’OXYDANT ‘) – por Alain de Benoist
(*), tradução de Alfredo Barroso
Há muito tempo
que o Ocidente não se define pela sua oposição ao “Oriente”. O que hoje se
designa por “Ocidente”, é o conjunto político-tecno-económico que associa, sob
domínio anglo-saxónico, os Estados-Unidos da América e a Europa Ocidental. Ora,
os Estados-Unidos nasceram de um desejo de romper com a Europa e, após terem
substituído, quase por completo, as populações autóctones, e de terem criado
uma nova Terra Prometida, nunca deixaram de impor ao mundo, desde então, uma
americanização indissociável da extensão planetária do comércio livre, da
“sociedade aberta” e da lógica do mercado. Um prelúdio do velho sonho de um
Estado mundial.
Dum lado e
doutro do Atlântico, os interesses são necessariamente divergentes. Tomar
partido pelo Ocidente, é tomar partido pelo Mar contra a Terra, pelas potências
comerciais marítimas contra as potências políticas continentais, ou seja,
ignorar os dados mais fundamentais da geopolítica. Porque o Ocidente é, antes
de tudo o mais, isso: uma aberração histórica, ideológica e geopolítica.
O OCIDENTE,
CONTRASTE DO SUL GLOBAL
Nem por isso o
“ocidentalismo” deixa de estar mais presente do que nunca. Como é habitual, ele
reúne, em proporções variáveis, os idiotas úteis e os colaboracionistas
estipendiados. Tem-se visto a propósito do consenso mediático relativo à guerra
na Ucrânia ou ao conflito israelo-palestiniano: os grandes partidos da direita
e da esquerda estão hoje convertidos ao atlantismo, em ruptura com a tradição
de independência característica duma linha “gaullista” hoje repudiada. O
ocidentalismo, é uma espécie de inventário à Prévert: reúne atlantistas de
sempre, que endossam sem estados de alma o papel de vassalos da América;
liberais que acham que tudo o que vem de além-Atlântico é necessariamente
melhor; bravos conservadores que ainda acreditam que o Ocidente é a
“civilização”; leucodermes alucinados, pertencentes aos meios marginais da
chamada “lunatic fringe” que se atém no essencial a um “nacionalismo puro” (um
nacionalismo vazio, sem raízes sociais-históricas, portanto tipicamente
americano) totalmente impolítico.
«Aqueles que
(‘esquerda’ cosmopolita à cabeça) - escreve Panagiotis Kondylis - acreditam
numa coesão do Oeste baseada exclusivamente na comunidade dos valores, são
politicamente e historicamente ingénuos. A comunidade dos valores não cria só
por si comunidade de interesses – pode mesmo suceder o contrário». No passado,
aliás, a comunidade dos valores nunca impediu os países europeu de fazerem a
guerra uns contra os outros.
Mas, de que
valores estamos a falar? Ontem, o Ocidente era respeitado ou detestado, mas em
geral invejado. Hoje, todavia, é considerado decadente, depravado, envergonhado
da sua própria existência e, precisamente por essa razão, (justamente)
desprezado. Para uma maioria de países que se recusam a considerar que a teoria
do género e os delírios LGBT, a “cancel culture” e o “wokismo” são “valores
universais”, o Ocidente já não é um modelo. É apenas um repelente.
«A política
supremacista ocidentalista conduzida desde o fim da URSS conduziu-nos à
situação em que estamos hoje», disse recentemente Hubert Védrine. Mas Joe
Biden, esse, garante friamente que «a liderança americana é o que hoje une o
mundo» (qualificando, de passagem, a ajuda à Ucrânia como «investimento
inteligente que renderá dividendos para a segurança dos EUA por várias
gerações»!). Na Europa, o ocidentalismo só pode, por conseguinte, tender para a
direcção dos países e dos povos por um governador-geral [um ‘gauleiter’] de
além-Atlântico. Em última análise, um tal conceito de Ocidente remete para a
colonização e para a submissão. Uma Europa «ocidental» é uma Europa que já não
tem nem a vontade nem os meios de determinar a sua política em função dos seus
interesses. A adesão ao Ocidente é sinónimo de dependência e de vassalagem.
Tal como o
capitalismo predatório, também o Ocidente é o inimigo da Europa. Um inimigo
‘íntimo’ se preferirem, um inimigo interno, sinónimo da tentação de ceder ao
conforto da impotência e da vassalagem.
Trotsky passa
por ter dito que «a guerra é a locomotiva da história». Mas foi de facto Marx
que afirmou que «as revoluções são a locomotiva da história» (‘A Luta de
Classes em França’, 1850). Mas é verdade que a guerra da NATO contra a Rússia,
conduzida na Ucrânia, desempenhou o papel dum formidável acelerador dos
processos em curso. Por pouco que analisemos todas as suas consequências, vê-se
perfeitamente que ela já mudou o mundo.
Na assembleia
geral da ONU, quarenta países que representam dois terços da humanidade
recusaram-se a condenar a entrada de tropas russas na Ucrânia e a aprovar a
política americana de sanções contra a Rússia. Dezanove países já fazem hoje
fila à porta dos BRICS [Brasil, Rússia, India, China, África do Sul] que
contribuem por si sós para uma maior parte do crescimento mundial do que os
países do G7. Como então, nestas condições, continuar a falar de uma
«comunidade internacional» que só representa os países anglo-saxónicos e os
seus aliados?! Se há, doravante, uma comunidade internacional, ela tem de ser
sobretudo a dos países emergentes, que recusam considerar o Ocidente como a
encarnação do «mundo civilizado».
Uma nova
clivagem se impõe, anunciadora de um Nomos da Terra fundado na multipolaridade
(ou no ‘pluriversalismo’) e no não-alinhamento: de um lado, o «Ocidente
colectivo» e o seu núcleo anglo-saxónico; do outro lado, o «resto do mundo», a
começar pelos países que durante muito tempo foram qualificados como
«emergentes» e que surgem agora como potências de futuro. Há um Sul periférico,
assim como há uma França periférica. Este corte entre o «Ocidente colectivo» e
o «resto do mundo» só pode aprofundar-se. Há que ver nisso uma boa notícia.
Como escreve Max-Erwan Gastineau em “A era da afirmação”, é a
desocidentalização que constitui uma possibilidade para uma Europa que está em
dormência [entorpecida, sonolenta, em estado soporífero].
O futuro da
Europa não está a Oeste, do lado do estado ‘terminal’ do Poente californiano.
Está do lado do Sol nascente, do Levante.
(*) Na revista
francesa “éléments”, número 206, de Fevereiro-Março de 2024
2024 02 23 (*), tradução de Alfredo Barroso
Há muito tempo
que o Ocidente não se define pela sua oposição ao “Oriente”. O que hoje se
designa por “Ocidente”, é o conjunto político-tecno-económico que associa, sob
domínio anglo-saxónico, os Estados-Unidos da América e a Europa Ocidental. Ora,
os Estados-Unidos nasceram de um desejo de romper com a Europa e, após terem
substituído, quase por completo, as populações autóctones, e de terem criado
uma nova Terra Prometida, nunca deixaram de impor ao mundo, desde então, uma
americanização indissociável da extensão planetária do comércio livre, da
“sociedade aberta” e da lógica do mercado. Um prelúdio do velho sonho de um
Estado mundial.
Dum lado e
doutro do Atlântico, os interesses são necessariamente divergentes. Tomar
partido pelo Ocidente, é tomar partido pelo Mar contra a Terra, pelas potências
comerciais marítimas contra as potências políticas continentais, ou seja,
ignorar os dados mais fundamentais da geopolítica. Porque o Ocidente é, antes
de tudo o mais, isso: uma aberração histórica, ideológica e geopolítica.
O OCIDENTE,
CONTRASTE DO SUL GLOBAL
Nem por isso o
“ocidentalismo” deixa de estar mais presente do que nunca. Como é habitual, ele
reúne, em proporções variáveis, os idiotas úteis e os colaboracionistas
estipendiados. Tem-se visto a propósito do consenso mediático relativo à guerra
na Ucrânia ou ao conflito israelo-palestiniano: os grandes partidos da direita
e da esquerda estão hoje convertidos ao atlantismo, em ruptura com a tradição
de independência característica duma linha “gaullista” hoje repudiada. O
ocidentalismo, é uma espécie de inventário à Prévert: reúne atlantistas de
sempre, que endossam sem estados de alma o papel de vassalos da América;
liberais que acham que tudo o que vem de além-Atlântico é necessariamente
melhor; bravos conservadores que ainda acreditam que o Ocidente é a
“civilização”; leucodermes alucinados, pertencentes aos meios marginais da
chamada “lunatic fringe” que se atém no essencial a um “nacionalismo puro” (um
nacionalismo vazio, sem raízes sociais-históricas, portanto tipicamente
americano) totalmente impolítico.
«Aqueles que
(‘esquerda’ cosmopolita à cabeça) - escreve Panagiotis Kondylis - acreditam
numa coesão do Oeste baseada exclusivamente na comunidade dos valores, são
politicamente e historicamente ingénuos. A comunidade dos valores não cria só
por si comunidade de interesses – pode mesmo suceder o contrário». No passado,
aliás, a comunidade dos valores nunca impediu os países europeu de fazerem a
guerra uns contra os outros.
Mas, de que
valores estamos a falar? Ontem, o Ocidente era respeitado ou detestado, mas em
geral invejado. Hoje, todavia, é considerado decadente, depravado, envergonhado
da sua própria existência e, precisamente por essa razão, (justamente)
desprezado. Para uma maioria de países que se recusam a considerar que a teoria
do género e os delírios LGBT, a “cancel culture” e o “wokismo” são “valores
universais”, o Ocidente já não é um modelo. É apenas um repelente.
«A política
supremacista ocidentalista conduzida desde o fim da URSS conduziu-nos à
situação em que estamos hoje», disse recentemente Hubert Védrine. Mas Joe
Biden, esse, garante friamente que «a liderança americana é o que hoje une o
mundo» (qualificando, de passagem, a ajuda à Ucrânia como «investimento
inteligente que renderá dividendos para a segurança dos EUA por várias
gerações»!). Na Europa, o ocidentalismo só pode, por conseguinte, tender para a
direcção dos países e dos povos por um governador-geral [um ‘gauleiter’] de
além-Atlântico. Em última análise, um tal conceito de Ocidente remete para a
colonização e para a submissão. Uma Europa «ocidental» é uma Europa que já não
tem nem a vontade nem os meios de determinar a sua política em função dos seus
interesses. A adesão ao Ocidente é sinónimo de dependência e de vassalagem.
Tal como o
capitalismo predatório, também o Ocidente é o inimigo da Europa. Um inimigo
‘íntimo’ se preferirem, um inimigo interno, sinónimo da tentação de ceder ao
conforto da impotência e da vassalagem.
Trotsky passa
por ter dito que «a guerra é a locomotiva da história». Mas foi de facto Marx
que afirmou que «as revoluções são a locomotiva da história» (‘A Luta de
Classes em França’, 1850). Mas é verdade que a guerra da NATO contra a Rússia,
conduzida na Ucrânia, desempenhou o papel dum formidável acelerador dos
processos em curso. Por pouco que analisemos todas as suas consequências, vê-se
perfeitamente que ela já mudou o mundo.
Na assembleia
geral da ONU, quarenta países que representam dois terços da humanidade
recusaram-se a condenar a entrada de tropas russas na Ucrânia e a aprovar a
política americana de sanções contra a Rússia. Dezanove países já fazem hoje
fila à porta dos BRICS [Brasil, Rússia, India, China, África do Sul] que
contribuem por si sós para uma maior parte do crescimento mundial do que os
países do G7. Como então, nestas condições, continuar a falar de uma
«comunidade internacional» que só representa os países anglo-saxónicos e os
seus aliados?! Se há, doravante, uma comunidade internacional, ela tem de ser
sobretudo a dos países emergentes, que recusam considerar o Ocidente como a
encarnação do «mundo civilizado».
Uma nova
clivagem se impõe, anunciadora de um Nomos da Terra fundado na multipolaridade
(ou no ‘pluriversalismo’) e no não-alinhamento: de um lado, o «Ocidente
colectivo» e o seu núcleo anglo-saxónico; do outro lado, o «resto do mundo», a
começar pelos países que durante muito tempo foram qualificados como
«emergentes» e que surgem agora como potências de futuro. Há um Sul periférico,
assim como há uma França periférica. Este corte entre o «Ocidente colectivo» e
o «resto do mundo» só pode aprofundar-se. Há que ver nisso uma boa notícia.
Como escreve Max-Erwan Gastineau em “A era da afirmação”, é a
desocidentalização que constitui uma possibilidade para uma Europa que está em
dormência [entorpecida, sonolenta, em estado soporífero].
O futuro da
Europa não está a Oeste, do lado do estado ‘terminal’ do Poente californiano.
Está do lado do Sol nascente, do Levante.
(*) Na revista
francesa “éléments”, número 206, de Fevereiro-Março de 2024
2024 02 23
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