OPINIÃO
* Guilherme d’Oliveira Martins
A primeira visita de Sophia de Mello Breyner a Teixeira de Pascoaes possui um sentido mítico. Ocorreu 12 anos antes da morte do Cenobita do Marão. Partindo de Amarante a cavalo, rumou a São João de Gatão, até à casa misteriosa e plena, que muitos de nós conhecemos. Contudo, Sophia perdeu-se entre nevoeiros nos “campos, caminhos e atalhos”, até que finalmente lhe apareceu a casa, de modo surpreendente, “grande, antiga, maravilhosa e branca”. E o espanto deveu-se ao facto de ter lá chegado pelo “lado de trás da casa”. A destemida jovem de então, esperava, como qualquer viajante comum, chegar à entrada brasonada do solar tão celebrado dos Teixeira de Vasconcelos, mas assim não aconteceu. O próprio Pascoaes ao recebê-la surpreendeu-se: “Por este caminho nunca chegou ninguém.” A literatura e o sonho misturam-se, naturalmente. Paisagem e poema tornam-se uma mesma realidade - como tantas vezes afirmou Gonçalo Ribeiro Telles, o paisagista por excelência. “Tudo naquele lugar era igual à poesia de Pascoaes.” E Sophia viu naquele surpreendente desvio um caminho que correspondia exatamente à leitura de um poema. Como diz Carlos Mendes de Sousa: “Os textos sobre os poetas e a poesia estão muito próximos dos contos que escreveu, concretamente pelo efeito de surpresa e pela força das imagens, como a espantosa chegada a cavalo à casa de Pascoaes.” Isto, para não esquecer a evocação da descoberta do amigo Ruy Cinatti, a dizer versos sobre a beira de um tanque…
Sophia é um exemplo de amor à língua e à cultura, como essências de uma autêntica educação para as pessoas. Como candidata a deputada, nas campanhas eleitorais, em vez de discursos sobre a democracia e a liberdade, preferia ler poemas - “porque, para mim, a poesia é a liberdade”. E assim compreendia as pessoas simples do campo e os mais exigentes. “Havia sempre um silêncio especial, mais profundo e mais atento para ouvir poesia.” Por isso, afirmou na revista Colóquio que “a poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira”.
Um dia, convidei Sophia para inaugurar a escola que tem o seu nome, em Carnaxide. Respondeu-me, com a amabilidade habitual e a fidalguia que sempre lhe conhecemos, que só aceitaria na condição de alunos e professores da escola prepararem uma representação de cor do conto A Menina do Mar. Não calculam a alegria que senti da parte dos membros da comunidade escolar ao conhecerem a disponibilidade da poeta e, poucos dias depois, confirmaram que tudo estava combinado e acertado.
Mas, cética, Sophia confessou-me: “Dizem-me que se desaprendeu o método de decorar nas escolas, esquecendo-se, etimologicamente, o que é aprender com o coração.” Veio o dia aprazado, entusiasmo total, alunas e alunos, professoras e professores, famílias, grupos cantando mornas e coladeiras, tudo em festa. E a homenageada segredou-me: “Recebem-me como uma rainha…” A inauguração consistiu nesse entusiasmo. No ginásio, em vez de discursos, apenas a presença dos jovens - e de um modo perfeito, numa adaptação adequada, ouvimos, de cor, sem uma dúvida ou hesitação: “Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia, onde cresciam lírios brancos e uma planta que dava flores brancas, amarelas e roxas.” Os jovens intérpretes figuravam o enredo. Nadavam e riam, o polvo, o caranguejo, o peixe e a menina. Sophia estava surpreendida e feliz. E quando a protagonista disse “Agora a tua terra é o mar” e quando, no epílogo, o Rei do Mar estava sentado no seu trono de nácar, as palmas e os aplausos irromperam espontâneos e Sophia levantou-se com alegria juvenil: “Vejo que a língua e as escolas estão vivas.” Valera a pena o desafio. A Educação precisa sempre da liberdade e da exigência.
Dedico esta lembrança à memória de uma amiga e incansável mulher da Educação - Maria Helena Valente Rosa.
16 janeiro 2024
Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian
https://www.dn.pt/7662928991/a-menina-do-mar/
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