sábado, 17 de fevereiro de 2024

José Pacheco Pereira - A São na campanha do PS

* José Pacheco Pereira

17 de Fevereiro de 2024


Pedro Nuno Santos não é único, a São está por todo o lado nos textos eleitorais, mas ele pôs-se mais a jeito.


Cartaz de propaganda eleitoral do Partido Socialista, Fevereiro de 2024 DR

  Experimentem dizer alto “Ação”. Os mais velhos, que têm a memória de como se diz “Acção”, dirão direito, os mais novos educados já na novilíngua, e os mais velhos modernaços e oficialmente muito obedientes, dirão “A São”. Entrou, pois, a São na campanha eleitoral do PS, e Pedro Nuno Santos quer “mais a São”.

 Por que raio quer ele mais a São? Não sei, mas duvido que haja muitas razões benévolas para isso, e as perversas ficam para as redes sociais. Repito o plebeísmo, que é sempre apropriado para estas coisas enquanto não for proibido. Por que raio Pedro Nuno Santos resolveu, logo no seu primeiro cartaz de propaganda eleitoral, usar uma das palavras que ficaram mais estragadas com o novo acordo ortográfico? Indiferença é de certeza, ignorância também, mas fico-me pela primeira, que é, junto com a inércia, a grande força motora do novo acordo ortográfico, em bom rigor, a única. Pedro Nuno Santos não é único, a São está por todo o lado nos textos eleitorais, mas ele pôs-se mais a jeito.

 Por que raio Pedro Nuno Santos resolveu, logo no seu primeiro cartaz de propaganda eleitoral, usar uma das palavras que ficaram mais estragadas com o novo acordo ortográfico? Indiferença é de certeza, ignorância também, mas fico-me pela primeira

O Acordo Ortográfico de 1990, pomposamente assinado pela maioria dos países de língua portuguesa, foi um dos maiores desastres diplomáticos dos últimos anos, com países como Angola e Moçambique a continuarem na mesma e todos os outros com diferentes graus de implementação. E, mesmo no Brasil, cada um escreve como quer, o que é aliás um dos factores do dinamismo do português do Brasil, fruto da pujança da sociedade brasileira, para o bem e para o mal.

Os resultados do Acordo foram separar ainda mais, uns dos outros, os países cuja língua oficial é o português e, dentro de cada um, haver na prática duas ortografias, como se vê neste jornal. Mesmo quando todos os passos legais para a sua implementação foram dados, quem escreve português bem, recusa o Acordo. E mais: considera uma questão de princípio escrever com a ortografia antiga, o que torna muito mais radical a divisão. Basta comparar os jornais dos vários países da CPLP para perceber isso, já para não falar de Portugal. Só que em Portugal deu-se um passo, cuja legalidade é contestada, de obrigar instituições, escolas e outras dependências do Estado a usar esse abastardamento da língua portuguesa que é o Acordo de 1990. E isso trouxe, como aliás a decisão de fazer o Acordo, muitos interesses económicos em jogo, que só se têm reforçado e hoje são um lóbi poderoso.

Apesar de uma enorme contestação, por que razão não se volta a escrever o português que tem a riqueza da memória da língua? A razão principal é que os nossos governantes, do PSD ao PS, estão-se literalmente nas tintas para o que é importante na nossa identidade cultural, mesmo quando se mostram muito indignados com a bandeirinha vermelha e verde, cuja história também desconhecem, ou se esquecem de colocar no orçamento as verbas para comemorar o Camões.

 (No Arquivo Ephemera não nos ensaiamos nada para colocar o episódio do Velho do Restelo em painéis pelas cidades com estes versos em negrito

"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

para envergonhar a São…)

A memória de uma língua, que muitas vezes se traduz na ortografia – e não me venham com o “pharmacia”, que é outra coisa –,​ faz parte da sua riqueza, nunca impediu ninguém que fale português no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde ou na Guiné, de ler Camões, Vieira, Camilo, Eça de Queirós ou Pessoa. Aliás, são mais lidos no Brasil do que cá. O que atenta contra essa capacidade de ler é outra coisa, é o ataque à leitura em papel, é a progressiva desaparição dos livros nas escolas, como se os ecrãs os substituíssem, é a desaparição da herança cultural das histórias da mitologia clássica ou da Bíblia, que são indispensáveis para ler, por exemplo, Os Maias, que é suposto ser lido nas escolas e que eu duvido muito se possa ler sem essas histórias, e, por fim, a progressiva limitação do vocabulário circulante, que empobrece a capacidade de expressão, logo, o poder de quem fala ou escreve.

 Quando o Ministério Público está a espatifar o sistema político e a democracia, entre a intencionalidade e a irresponsabilidade, quando a campanha eleitoral foge de tudo o que é importante cá dentro e lá fora, quando Trump apela à invasão russa da Europa, quando a traição à Ucrânia e aos palestinianos mostra a nossa cobardia e vergonha, quando Putin assassina na cadeia o seu principal opositor, porque é que a São é relevante? Porque a diferença entre a São e a Acção tem que ver connosco, com a nossa identidade, com a nossa língua, com a nossa cultura, com a nossa capacidade de falar bem, logo, de pensar bem, logo, de sermos mais fortes. E vamos muito precisar de ser mais fortes nos tempos que aí vêm.

 

O autor é colunista do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2024/02/17/opiniao/opiniao/sao-campanha-ps-2080597


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