terça-feira, 8 de abril de 2008

Na trilha de Macunaíma (2)



por Celio Turino*


A redução da jornada de trabalho e a conquista de uma vida emancipada

2- Ócio e Trabalho
Ausência de malícia, recursos abundantes, despreocupação em estocar riquezas ou alimentos. Porque um povo que vivia nestas circunstâncias iria preferir o trabalho ao descanso? A própria organização da vida social prescindia de um corpo estatal, inexistindo um poder político que pudesse coagi-los a abandonar sua vida em ócio. Para os recém chegados europeus, era inaceitável que aquelas pessoas vivessem tão perto da felicidade e que isso acontecesse com tão pouco esforço. Mesmo com a recorrente comparação ao Paraíso (...a inocência desta gente é tal, que a Adão não seria maior, quanto a vergonha), a missão que eles se auto-colocaram foi a de salvar essa gente do pecado (como se houvesse pecado no Paraíso):

''...o melhor fruto que nela se pode fazer, me parece que será salvar essa gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar''

Claro que antes de sugerir a salvação dos moradores do Èden, Caminha descreve mais uma vez as riquezas da terra, sempre presentes nas intenções de todos que cruzaram o Oceano à procura do Novo Mundo:

''...um deles pôs olho no colar do capitão, e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata''


''Isto tomávamos nós por assim o desejarmos''. Ao menos Caminha foi sincero nos propósitos do Reino que, para realizar seus desejos, como que cumprindo uma ordem divina, desde então repetiu os versos do Gênesis para todo aquele povo que ainda vivia como Adão:


''Maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de sua vida. Com o suor do teu rosto comerás teu pão.'' (Gênesis, 3:17-9).

Estas palavras marcariam para sempre o destino dos moradores do continente que seria chamado de América, assim como marcaram o destino dos descendentes de Adão e Eva. Desde a expulsão do Paraíso o trabalho surge como pena divina a redimir uma vida em pecado e ligada indissoluvelmente à preguiça. A vida ociosa e feliz do paraíso transforma-se em promessa que só será reconquistada após a morte e como prêmio para uma existência de virtudes e sacrifícios. Após a carta de Caminha, a terra de Vera Cruz deixou de ser Paraíso integrando a história dos homens.


Obter o sustento sem sacrifício não mais seria possível, até porque os índios não trabalhariam apenas para suas tribos. Era preciso domesticar aqueles selvagens, salvando-lhes a alma, mesmo que isso significasse a destruição de seu corpo e de suas mentes. O que se seguiu àquele primeiro encontro, em que houve espaço até para a dança, foi uma história de horror e extermínio. Os índios teriam que aprender a lidar com os rigores do trabalho, mesmo que Caminha tivesse atestado que ''a terra em si é de mui bons ares'', o que não exigiria o armazenamento de alimentos para os rigorosos tempos de inverno ou estiagem. Mas apesar de dispor de uma produção que já era suficiente para todos, atendendo até mesmo aos visitantes mais inesperados, era preciso produzir mais.



Trabalho para purgar os pecados, mesmo representando um castigo, torna-se virtude. Marilena Chauí chama atenção ao paradoxo do que significa o desprezo à preguiça e a valorização do trabalho, pois ele surge como castigo divino e está presente ''...em quase todos os mitos que narram a origem das sociedades humanas como efeito de um crime cuja punição será a necessidade de trabalhar pra viver''. A origem da palavra trabalho é encontrada no latim tripalium, instrumento de tortura para empalar escravos, derivado de palus, estaca. O exército de escravos liderados por Espártacus, depois de derrotado por Roma, teve esse destino: a morte por empalamento, no tripalium. Da mesma forma, labor, que significa dobrar-se sobre o peso de uma carga, dor, sofrimento.



A etimologia do trabalho nos auxilia a perceber a contradição entre virtude e pecado como atribuições sociais desdobradas em preconceitos, condutas e mentalidades e por isso é importante que a levemos em consideração. Mas esta é uma construção ocidental de trabalho e seria um equivoco atribuir-lhe uma dimensão negativa em si.


Para os povos do oriente, o conceito é outro:


''A idéia de trabalho no ocidente é construída (...) em oposição ao lazer e ao ócio. Por isso o trabalho associa-se, freqüentemente, à obrigação e mobiliza os sentimentos de castigo, sofrimento, pena, cruz que carrega, ao passo que o não trabalho se vincula ao ideário da recompensa, descanso, prêmio, etc... No oriente, a idéia de trabalho funda-se na oposição entre trabalho intelectual e manual. Neste sentido, o trabalho dignifica a vida se possibilitar o desenvolvimento da criatividade, inventividade e da capacidade cognitiva humana em suas múltiplas dimensões'' (BLASS, Leila Maria da Silva, in. Desafios da Globalização – Otávio Ianni (org), pg. 150)


A noção de trabalho como sinônimo de escravidão é produto da expropriação do trabalho alheio, bem como da alienação imposta ao trabalhador expropriado, que se vê destituído do usufruto do resultado de seu trabalho e do próprio processo de produção, que é compartimentado e abstrato. Mas na perspectiva de uma sociedade emancipada, livremente regulada, o trabalho, ou um novo tipo de trabalho, continuará tendo uma função social vital. Deverá haver, isso sim, uma relação de maior equilíbrio entre o tempo de trabalho e o de não trabalho e neste caso, a humanização da vida social levaria por humanizar o próprio trabalho. Sobre o tema, Ricardo Carlos Gaspar, em recente publicação, apresenta uma significativa contribuição:

''A caracterização do ser humano livre como sendo aquele homem sem obrigação de trabalhar, cuja generalização coletiva supostamente caracterizaria a utopia comunista, parece-nos equivocada, não apenas por identificar exclusivamente o trabalho à necessidade – portanto, a atividade trabalho seria ontologicamente incompatível com a liberdade, o que contraria a legítima interpretação de Luckács acerca da ontologia marxiana do trabalho, na qual este aparece como domínio do indivíduo genérico sobre sua própria singularidade particular e, enquanto tal, modelo de toda a liberdade-, como por diluir as diferenças que sempre prevalecerão – embora não mais de caráter antagônico- entre a atividade produtiva socialmente regulamentada e o ócio, nas suas diferentes formas de manifestação'' (GASPAR, Ricardo Carlos – As Fronteiras do possível: trabalho, lazer e civilização – pg. 128 – Ed. Germinal, 2003)

''Mãe dos vícios!'', ''Morada do demônio'', ''Preguiçoso como um índio'' (depois, como um negro, ou nordestino, ou pura e simplesmente como um pobre, um despossuído vítima de si mesmo), são imagens recorrentes da preguiça, onde ''o laço que ata preguiça e pecado é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo'' (CHAUÍ, Marilena – Prefácio a O Direito à Preguiça – pg. 10 – Ed HUCITEC – 2000). Este modo de perceber a preguiça está incorporado ao cotidiano da sociedade e vai muito além de uma visão religiosa. Analisando o dicionário de língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda percebemos cinco diferentes significados para o ócio:

1. Descanso do trabalho, folga, repouso;
2. Tempo que se passa desocupado, quietação, lazer;
3. Falta de trabalho, desocupação, ociosidade;
4. Preguiça, indolência, moleza;
5. Trabalho mental ou ocupação suave, agradável.


A representação mais comum, no entanto, relaciona preguiça à indolência, um valor negativo, pecaminoso.

''O diabo sempre inventa uma maldade para quem está de mãos vazias''

Diz o ditado. Como se a ocupação e o trabalho possuíssem ''a virtude milagrosa de transformar todos em virtuosos, maduros, livres, dignos de mérito e felizes'', e o ócio, em oposição, seria ''promotor do enfraquecimento das virtudes, como a antecâmara de todas as perversões, como ocasião de tédio, violência e uso de drogas'' (DE MASI, Domenico – A Economia do ócio – pg. 22 – Ed. Sextante – 2001). Penetrando no imaginário, nas pequenas atitudes, brincadeiras e comentários, essa percepção do ócio tem um efeito direto na vida prática, no comportamento familiar, educacional e social, bem como na definição de políticas públicas em áreas como: lazer, cultura, esportes, educação e a própria formação para o trabalho.



Jacques Derrida demonstrou que os aspectos mais básicos da identidade humana podem ser encontrados na estrutura da linguagem que usamos para expressa-los, onde a disputa pelo conceito em torno das palavras é, sobretudo, uma questão política, de poder e controle social. Assim também acontece em relação ao ócio, à preguiça ou ao lazer. E esta disputa de idéias e conceitos começou na Europa, a partir do século 19, com a intensificação da luta entre proletários e capitalistas. Primeiro o genro de Karl Marx, Paul Lafargue, escrevendo ''O direito à preguiça'' (que analisaremos mais à frente); depois, na década de 1930, o grande pensador britânico, Bertrand Russel, com ''O elogio ao ócio''.

(continua)

No próximo capítulo: O elogio ao ócio






*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.



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in vermelho - 25 DE FEVEREIRO DE 2008 - 18h20
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