por Celio Turino*
Apresentação
Esta série, com 16 artigos, faz parte do livro Na Trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC, 2005), de autoria de Célio Turino, e trata a preguiça, como um elemento da própria identidade brasileira, um ócio criativo, gingado e inovador. O objetivo é contribuir na luta pela redução da jornada de trabalho no Brasil, subsidiando sindicalistas, militantes e pessoas de mente aberta a re-questionarem valores como ócio e trabalho e inserindo este debate para além da fronteira estritamente economicista.
Está autorizada a reprodução destes artigos para fins não comerciais, desde que citada a fonte (nome do autor, livro e site Vermelho).
O autor
Célio Turino - mestre em história pela Unicamp, autor de diversos ensaios e livros é militante comunista desde 1978. Atualmente exerce a função de Secretário Nacional de Programas e Projetos – Ministério da Cultura, sendo responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura em todo o Brasil.
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A redução da jornada de trabalho e a conquista de uma vida emancipada
1- Encontro com o Paraíso
''Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio, Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito'' (Pero Vaz de Caminha, TERRA DE VERA CRUZ, abril de 1500)
Aos primeiros dias na terra que viria a ser o Brasil dá-se um alegre encontro entre os povos da terra e aqueles que haviam chegado do mar; e o coletor de impostos, almoxarife Diogo Dias, homem gracioso e de prazer, meteu-se com os índios a dançar. Essa foi a primeira troca simbólica do país que começava a nascer; nenhuma palavra foi dita, apenas gestos e sons. Mas antes deste encontro, os povos que habitavam o lugar, viviam em festa, obtendo seu sustento com pouco esforço, pois a terra lhes oferecia tudo que fosse necessário. ''Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância'', este foi o mundo que os portugueses encontraram ao cruzar o Atlântico. A impressão é de que haviam chegado ao Éden.
À época de Colombo, muitas foram as discussões a este respeito. Mapas indicavam a localização do Paraíso, cosmógrafos ajustavam suas cartas, teólogos debatiam o Gênese. O próprio Cristóvão Colombo dá a entender que chegou à porta do Paraíso por especial graça de Deus:
''Já disse, aquilo que achava deste hemisfério e da sua feiúra, e creio, se passasse por debaixo da linha equinocial, que ali chegando, neste lugar mais alto, achara maior temperança e diversidade nas estrelas e nas águas, não porque acredite que onde se acha a altura extrema seja possível navegar-se ou seja possível subir até lá, pois creio que lá está o Paraíso Terrestre, onde ninguém pode chegar, salvo por vontade divina...'' (in. Visão do Paraíso, pg. 194).
Sérgio Buarque de Holanda parte do imaginário medieval do Paraíso, encontrado no Gênese para compreender esse deslumbramento com o mundo que se descortinava:
''...o Senhor Deus, tendo criado o homem, em quem insuflou o fôlego da vida e o fez assim alma vivente, plantou para sua habitação um horto ‘da banda do Oriente’. Ali espalhou por toda parte, plantas agradáveis à vista e boas para comida...''
Nessa terra de muito bons ares, a comida estava ao alcance das mãos, bastava extrair frutos, plantar -pois ''dar-se-á de tudo, por bem das águas que tem'', caçar ou pescar. Santo Isidoro de Sevilha , chamou as terras encontradas de Ilhas Afortunadas (Insulae Fortunatae) e assim o fez por considerar que possuem todos os bens necessários a uma vida feliz e ditosa:
''Espontaneamente dão muito rico fruto nas árvores; os bosques cobrem-se espontaneamente de vides; em vez de ervas há ali messes: de onde aquele erro dos gentios, e dos versos dos poetas quando julgam que tais ilhas, pela fecundidade do solo, constituem o Paraíso. Situam-se no Oceano, do lado esquerdo da Mauritânia, próximas do Ocidente e separadas dela pelo mar'' (Visão do Paraíso, pg. 195).
Na carta de Caminha há uma primeira descrição sobre a ida à terra firme em busca de água e comida:
''Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água (...). Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos''
Beber e folgar ao mesmo tempo em que se busca o alimento, esse era o cotidiano de trabalho encontrado nas terras de Pindorama. Os índios sabiam extrair da terra aquilo que ela lhes oferecia e assim que conseguiam o suficiente podiam se dedicar à arte, às brincadeiras e à festa. Na verdade, a arte, as brincadeiras e a festa estavam misturadas com a busca do sustento. O sentido do trabalho em um ambiente como este, certamente era diferente da realidade da Europa medieval e os portugueses da frota cabralina que foram buscar água e comida, por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, também se deixaram folgar pelo caminho e mesmo assim, colheram muitos e bons palmitos. E essa percepção de um reino da abundância, não foi apenas dos portugueses, um anônimo inglês deixou o seguinte relato:
''...aqueles que lá estiveram são acordes, sem exceção, que viram os melhores e mais verdes prados e campinas, os outeiros mais aprazíveis, cobertos de árvores e frutas de toda casta, os mais formosos vales, os mais deleitosos rios de águas frescas, providas de infinitas variedades de peixes, as florestas mais densas, sempre verdejantes, cheias de frutos, que possam exibir no mundo inteiro''
Mas no mesmo tempo que a riqueza natural da terra deslumbrou os visitantes, ela também despertou a cobiça e, quase que na mesma seqüência, a inveja em relação àqueles povos que prescindiam do trabalho para levar as suas vidas. Prescindiam do trabalho e também do Estado, dois dos principais axiomas da civilização ocidental. A falta da necessidade de um trabalho duro estava presente não apenas entre povos nômades, como também em relação aos agricultores tupis-guaranis; portugueses, franceses ou espanhóis não admitiam uma realidade assim, a ociosidade nativa os chocava. O antropólogo Pierre Clastres faz a seguinte descrição do ritmo de trabalho destes povos:
''Uma mesma área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida era abandonada, por esgotar-se o solo (...) O grosso do trabalho efetuado pelos homens consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com o auxílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa no fim da estação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola – plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executado por mulheres.''
Cabe ressaltar que a tradição atribuída aos índios de atear fogo para abrir plantações, já era conhecida dos portugueses e utilizada na Ilha da Madeira em dimensões muito maiores do que a queimada localizada dos Tupis. Um relato de 1455, de João Gonçalves Zarco, sobre a queimada na Ilha da Madeira, ou seja, de antes da chegada dos portugueses ao Brasil, descreve a experiência dos portugueses na transformação da Ilha:
''...não havia ali um palmo de terra que não fosse coberto por árvores grandíssimas. Para cultiva-la, tiveram os primeiros povoadores de recorrer ao sistema que depois usariam no Brasil, de destruir a mata deitando-lhe fogo. O qual fogo andou lavrando pela ilha grande espaço de tempo, e foi tamanho, que os moradores com suas mulheres e filhos, tiveram-se que acolher-se à água do mar, e assim estiveram com ela até o pescoço dois dias e duas noites, sem comer nem beber, pois de outro modo teriam morrido queimados. Desaparecendo por essa forma o bosque, tudo se tornou um terreno para cultivo, além das canas doces, de vinhas e trigo'' (Visão do Paraíso, pg. 188).
A queimada localizada é uma prática indígena; mas a queimada em proporções dantescas, antes de representar uma prova da preguiça nativa, é resultado da ganância e da busca do lucro sem medir conseqüências. Clastres conclui que, para os homens havia a necessidade de apenas dois meses de trabalho duro a cada quatro anos, o tempo restante era passado em ocupações como a pesca e a caça que, apesar de proverem a comunidade de alimentos, não eram consideradas penosas e sim como prazer, estando misturadas, como dissemos, com festas e brincadeiras. Cabe lembrar, no entanto, que, entre os tupi-guaranis, a divisão de trabalho existia na diferença entre homens e mulheres. Engels e Marx, em uma concepção um tanto quanto romântica, conforme aponta Herbert Marcuse, devem ter se inspirado neste modelo de comunismo primitivo ao fazerem sua conhecida descrição da futura sociedade comunista: ''onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico'' (A ideologia Alemã – pg. 47).
Mesmo entre os índios da atualidade, a presença do trabalho na vida cotidiana é bastante reduzida. J. Lizot, antropólogo que viveu vários anos entre os yanomami da Amazônia venezuelana, estudou o tempo que os adultos dedicavam ao trabalho, marcando todas as atividades necessárias para o cumprimento da tarefa. Em qualquer situação esse tempo nunca ultrapassou três horas diárias. Pierre Clastres, mesmo sem uma contagem exata do tempo, constatou que em sua experiência pessoal no contato com os índios guaiaquis, do Paraguai, o tempo que eles dedicavam ao trabalho nunca superou metade do dia ''...passavam pelo menos metade do dia em quase completa ociosidade, uma vez que a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, mais ou menos, 6 e 11 horas da manhã''. A lógica destas sociedades não é exatamente da recusa do trabalho; eles trabalham pouco é verdade, mas enfrentam suas obrigações, a diferença [em relação aos europeus] é que param no momento que suas necessidades são satisfeitas. Ou seja, dependendo das condições ecológicas, podem trabalhar mais ou menos, no entanto, o sentido de suas vidas é encontrado no lazer, na busca do significado das coisas e não na acumulação de riquezas materiais. Essa foi a diferença encontrada pelos portugueses há quinhentos anos.
''Águas são muitas; infinitas'', de forma poética, Vaz de Caminha descreveu a realidade vista por ele em que a abundância de recursos naturais parecia inesgotável. Lamentavelmente essa idéia de que as riquezas naturais do Brasil são infinitas está presente até os dias de hoje, fazendo com que os recursos da terra sejam extraídos como se nunca acabassem. Até que um dia acabam. Inclusive as águas, que já foram muitas. Foi um encontro com o Paraíso:
''A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso tem tanta inocência como em mostrar o rosto. (...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas ta altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha''.
(continua)
No próximo capítulo: Ócio e Trabalho
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*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.
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