Na trilha de Macunaíma (4)
por Celio Turino*
4-O direito à preguiça
''Preguiça mãe das artes e das virtudes nobres,
seja o bálsamo das angústias humanas!''
È desta forma que Paul Lafargue, genro de Marx, encerra o seu panfleto, ''O Direito à Preguiça''. Texto preciso em seus argumentos é, ao mesmo tempo, persuasivo e comovente, um clássico da literatura panfletária, podendo ser lido como instrumento de análise, crítica e, sobretudo, de ação revolucionária. Até o inicio do século 20, a publicação desta obra entre o movimento socialista internacional só foi inferior à circulação do Manifesto Comunista; na Rússia, ela foi traduzida antes mesmo que o Manifesto de Marx e Engels, sendo que entre 1905-1907, contou com 17 edições. Laura Marx e Paul Lafargue praticaram eutanásia, injetando veneno nas veias, morreram com sessenta e cinco e setenta anos. Em uma nota em O Direito à Preguiça, Lafargue, de certa forma, antecipa esta sua decisão: ''Os índios das tribos belicosas do Brasil matam seus inválidos e velhos; demonstram sua amizade pelo atingido pondo fim a uma vida que não se alegra mais com os combates, festas e andanças. Todos povos primitivos deram aos seus estas provas de afeto'', trinta anos depois, a carta escrita pelos dois dizia algo muito semelhante: ''São de corpo e de mente, eu me sinto antes que a velhice impiedosa, que me retirou um por um os prazeres e as alegrias da existência e que me privou dos recursos físicos e intelectuais, paralise a minha energia e destrua a minha vontade, fazendo com que eu me torne um peso para mim mesmo e para os demais''. O discurso no funeral de Paul e Laura Lafargue, foi proferido em 3 de dezembro de 1911, por Lênin, o líder da Revolução Russa, atestando a importância de Lafargue para o movimento comunista internacional:
''Os operários conscientes e todos os social-democratas da Rússia aprenderam a estimar Lafargue profundamente como um dos divulgadores mais dotados e mais profundos do marxismo, cujas idéias foram tão brilhantemente confirmadas pela experiência da luta de classes na revolução e contra revolução russas. [...] Para nós que tivemos a felicidade de buscar, nas obras de Lafargue e seus amigos, o conhecimento direto da experiência e do pensamento revolucionários dos operários europeus, é-nos agora particularmente evidente que o triunfo da causa, a cuja defesa Lafargue dedicou sua vida, aproxima-se rapidamente''.
De fato, seis anos depois, o mundo presenciaria a vitória da revolução proletária na Rússia e muitos dos líderes da revolução foram iniciados no marxismo lendo O Direito à Preguiça. É mérito desse manifesto recuperar o sentido grego de ócio e assim travar o primeiro combate aos ideais burgueses de trabalho e preguiça. Sua obra foi publicada na forma de artigos e começa com a seguinte constatação:
''Uma estranha loucura tomou conta das classes operárias [...] Essa loucura trouxe consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, levada até o esgotamento da energia vital do indivíduo e de seus filhos. [...] Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de todas as degenerações intelectuais, de todas as deformações orgânicas''.
Seu estilo literário é irônico, direto e ao mesmo tempo sagaz e elegante, dirigindo seus ataques não somente à ordem burguesa como também à hipocrisia cristã. Logo no início ele caracteriza a santificação do trabalho como uma ''aberração mental'' e toda sua argumentação desconstrói a idéia da preguiça como pecado capital. Declarando-se não cristão, ele apresenta o sermão da montanha, proferido por Jesus, como um louvor à preguiça:
''Contemplai os lírios dos campos: não trabalham ou tecem, porém eu vos digo que Salomão, em toda sua glória, jamais esteve mais nobremente vestido'' (Evangelho segundo São Mateus, cap. VI)
Ou então invoca à própria conduta de Deus, que:
''...deu aos seus adoradores o exemplo supremo de preguiça ideal: após seis dias de trabalho, descansou por toda a eternidade''
De fato, a Igreja Católica, prega a preguiça como pecado apenas para os fiéis; para eles próprios, os monges e cléricos, o ideal máximo para se aproximar de Deus é a vida em mosteiro, o estado de contemplação, mesmo que frugal. ''Nos tempos medievais, as interpretações cristãs de Aristóteles atribuíam uma índole sagrada à contemplação, à sabedoria e à beleza que deveriam ser cultivadas pelos monges dentro dos mosteiros. Nesse ambiente, o trabalho manual só era permitido depois da quietude alcançada pela contemplação da divindade''. (Uribe Ortega, Graciela – Identidade Cultural, território e lazer – in Lazer numa sociedade globalizada – WorldLeisure – 2000)
Essa é uma prática comum a todas as outras religiões que buscam se ‘religar’ com Deus isolando-se de todas e quaisquer preocupações mundanas, com exceção do protestantismo, como apontou Max Weber e que retomaremos um pouco à frente. Sebastian de Grazia aponta que São Tomás de Aquino, na Summa Theológica, via no trabalho uma necessidade da natureza que, porém, em havendo condições para que as pessoas pudessem viver sem trabalhar, a sociedade (ou parte dela) estaria desobrigada de faze-lo. Para São Tomás de Aquino:
''...a atividade religiosa está por cima da atividade secular, porém a contemplação está por cima de tudo mais, coroando o homem da mais alta faculdade – o poder de conhecer a verdade – regozijando a quem a realiza. O homem contempla porque ama a verdade, porque quer conhece-la e entende-la. O fim do homem é contemplar Deus cara a cara, ato que o faria totalmente feliz; contempla-lo, considera-lo em sua mente lhe proporciona um brilho de verdadeira felicidade'' .
Ao apontar a contradição filosófica de colocar o ócio [a contemplação é um estado de ócio] como pecado capital, Lafargue também não é indulgente com os trabalhadores, e alerta:
''E, no entanto, o proletariado, a grande classe que abarca todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao se emancipar, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo seus instintos, desconhecendo sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Seu castigo foi rude e terrível. Todas as misérias individuais e sociais nasceram de sua paixão pelo trabalho''
Ele lembra que a lógica do trabalho, além de produzir riquezas usufruídas apenas pelos detentores do capital, é uma lógica do controle sobre o povo que trabalha. ''Quanto mais meu povo trabalhar, menos vícios terá'', escreveu Napoleão e até hoje tantos outros escrevem, ou repetem frases semelhantes. Para Lafargue, as fábricas modernas tornaram-se as ''prisões ideais'', formas de ''dobrar os sentimentos de orgulho e de independência que [a preguiça] traz consigo''. Mais uma vez, ele faz um alerta ao proletariado, particularmente o francês, defendeu a lei de doze horas de trabalho, como uma conquista republicana:
''Vergonha para o proletariado francês! Apenas escravos teriam sido capazes de tamanha baixeza. [...] Eles entregaram aos barões da indústria suas mulheres. Com suas próprias mãos, demoliram seu lar. Com suas próprias mãos, demoliram suas casas e secaram o leite de suas mulheres. Com suas próprias mãos estragaram a vida e o vigor de seus filhos.
Envergonhe-se proletariado!
[...] Dizem que nossa época é o século do trabalho. Na verdade é o século da dor, da miséria e da corrupção.''
(continua)
Próximo capítulo: A recuperação da idéia grega de ócio
*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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in Vermelho - 10 DE MARÇO DE 2008 - 15h54
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