quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Brasil na vida e na obra de Ferreira de Castro

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* Maria Saraiva de Jesus
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Poucos autores como José Maria Ferreira de Castro possuem uma obra tão inextricavelmente ligada à sua vida..

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A sua experiência de vida na Amazónia, dos 12 aos 16 anos, é apro­veitada para as intrigas de Criminoso por Ambição (1916), Carne Faminta (1922), «O Escravo Redimido» (texto integrado no volume de novelas Sendas de Lirismo e de Amor - 1925), A Selva (1930) e Instinto Supremo (1968). A observação da vida de outros emigrantes serviu-lhe para a escrita de Emigrantes (1928), tendo localizado no estado de São Paulo uma intriga que certamente seria também verosímil em outros estados do Brasil.

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Das três primeiras obras citadas pouco se sabe, pois o autor não permitiu a sua reedição, considerando-as apenas experiências de juventude.
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Criminoso por Ambição, redigida no seringai Paraíso, quando o autor tinha 14 anos, é, no entanto, estudada por José Tavares 1, que dela transcreve extensos parágrafos. De Ossela, freguesia onde nasceu Ferreira de Castro, parte o herói, pobre e digno, para o Brasil, a fim de ganhar fortuna que o possa aproximar da sua amada, menina rica que lhe corresponde na paixão, mas que é também pretendida por um homem rico e de mau carácter. Após algumas aventuras, Simão vai trabalhar para um seringal, nas margens do rio Purus, no alto Amazonas, mas não alcança por esse meio a fortuna pretendida. E com um bilhete da lotaria que enriquece, deixando a seguir o Pará para ir casar com a sua amada a Ossela. Nesta ingénua narrativa de acção, o cenário brasileiro do Amazonas e do Pará está apenas brevemente marcado, como o está em Carne Faminta e em «O Escravo Redimido».
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Estas duas novelas são analisadas por Alexandre Cabral como ante­cedentes d'A Selva 2, pois também se passam em seringais amazónicos, apresentando algumas coincidências de enredo que serão mais desenvolvidas n'A Selva. Carne Faminta trata de um incesto entre mãe e filho, num espaço social em que não há outras mulheres. Também A Selva sublinha a frustração sexual dos seringueiros e demais empregados, num cenário em que as mulheres escasseiam e as poucas existentes são guardadas pelos maridos, que não hesitariam em matar a hipotética adúltera e o seu amante. Em «O Escravo Redimido», tal como n'A Selva, aparece o ex-escravo Tiago, em ambas as obras também conhecido pela alcunha «Estica», por coxear de uma perna, e em ambas este negro incendeia o barracão, causando a morte do dono do seringai. Nas duas obras o negro Tiago solidariza-se, no episódio do incêndio, com os seringueiros, vítimas do sistema esclavagista posto em prática pelo patrão. Em «O Escravo Redimido» os actos esclavagistas são provocados pela revolta dos seringueiros, causada pelo aumento dos preços dos géneros alimentícios, num contexto de desvalorização da borracha, e Tiago recebe claramente a soli­dariedade do autor, o que, aliás, é evidente no título da novela. N'A Selva, o acto de Tiago é directamente provocado pelo facto de o patrão ter mandado prender a um tronco cinco fugitivos com débito e de os ter mandado chicotear até provocar sangue com um peixe-boi. Alberto imagina-se num tribunal, como advogado de acusação de Tiago, e a atitude de solidariedade do autor fica, assim, mais diluída.
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O facto de o autor apenas aflorar a sua experiência amazonense nestas obras de juventude deveu-se ao misto de medo e fascínio com que o autor considera as suas reminiscências daquele «inferno verde», nas palavras sugestivas de Olavo Bilac. O autor confessa-o na introdução que escreveu para a edição comemorativa d'A Selva, de 1955:
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Foi também por isso, talvez, que durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras. [...] .
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Esse velho terror dominou-me sempre que tentei aproximar-me da selva nos meus primeiros livros; e das poucas vezes que o fiz, para eles colhi apenas alguns ramos marginais, nunca indo além do passeante distraído que estende o braço e, sem parar, arranca a folha do arbusto erguido à beira do seu caminho 3.
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É A Selva a obra que mais coincidências oferece com a vida do autor, apesar dos elementos fictícios. Tal como Alberto, Ferreira de Castro também emigra para Belém, capital do Pará, recomendado a um conterrâneo, que logo se descarta da responsabilidade de o sustentar, enviando-o para o seringai Paraíso, numa das margens do rio Madeira, no alto Amazonas. Mas enquanto Ferreira de Castro emigra com apenas 12 anos, após a conclusão do ensino primário, Alberto é um jovem estudante do 4.º ano de Direito e tem 26 anos, quando se vê forçado a ir para Espanha e daí para o Brasil, para fugir à perseguição de que são alvo os monárquicos, após a derrota de Monsanto. No caso de Alberto, é um tio que o recebe em Belém do Pará e que o convence a ir para o seringai Paraíso. Tanto Ferreira de Castro como Alberto para lá se dirigem na terceira classe do barco «Justo Chermont»; Ferreira de Castro regressa a Belém do Pará no «Sapucaia» e para Alberto também se anuncia o retorno a Belém no mesmo barco. Ferreira de Castro regressa com 16 anos, tendo passado quatro no seringai, primeiro como seringueiro e depois como empregado no armazém aviador do seringai. Alberto também começa a trabalhar como seringueiro, passando para o armazém e o escritório, devido às circunstâncias de não produzir muito na colecta da borracha, de ter habi­litações superiores às de todas as outras personagens e também pelo facto de Binda, o antigo empregado do armazém, ser necessário para a fiscalização do seringai. Alberto e Ferreira de Castro têm várias outras tarefas, entre elas a de limparem e conservarem aceso o farol que indicava à navegação a localização do seringai. Mas, quando se consegue libertar, após alguns meses, Alberto planeia a partida imediata de Belém para Portugal, e Ferreira de Castro passa ainda cinco anos em Belém, totalmente abandonado pelo conterrâneo que se incumbira da sua protecção. Foram anos em que passou da extrema miséria, em grandes períodos de desemprego ou ocupando-se de actividades mal remuneradas, à relativa consideração que as suas actividades jornalísticas e a publicação em folhetins do seu primeiro romance, Criminoso por Ambição, lhe granjearam. Assim, em 1918 visita Manaus, convidado por uma associação de poveiros, e em 1919 faz uma viagem ao Sul do país, visitando o Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades.

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Foi provavelmente nessa viagem que obteve os vastos conhecimentos sobre a paisagem e as relações de trabalho que se verificavam no estado de São Paulo, de que dá mostras no romance Emigrantes.

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Tanto Emigrantes como A Selva possuem personagens individualizadas, no percurso das quais se centra a acção. No primeiro caso trata-se de Manuel da Bouça, pobre camponês analfabeto que emigra para o Brasil em busca de melhor sorte, com a esperança de ganhar um dote para a filha e de poder comprar as terras circunvizinhas às suas courelas, onde pensa construir uma casa nova. No segundo caso, é Alberto que centraliza os eventos narrados.

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Tanto Manuel da Bouça como Alberto regressam a Portugal tão pobres como tinham partido.

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Manuel da Bouça, após nove anos de dura labuta no interior e na cidade de São Paulo, vem mesmo muito mais pobre, porque entretanto perdera as suas courelas, hipotecadas para pagar os gastos da viagem de ida, e porque lhe morrera a mulher. O trabalho no Brasil não permite a nenhum deles sequer pagar a viagem de regresso. Manuel da Bouça só pudera comprar a passagem devido ao facto de, durante a confusão originada por uma revolução, ter roubado os anéis, a corrente e um relógio a um morto. Alberto só logra libertar-se da situação de quase escravidão que vivera no seringai Paraíso por a sua mãe se ter sacrificado para lhe enviar o dinheiro da viagem, depois de saber que os monárquicos tinham sido amnistiados em Portugal.
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N'A Selva assume maior importância a experiência de vida no Brasil. Por isto o romance inicia-se em Belém do Pará, desenvolve a descrição da viagem de vários dias no «Justo Chermont» e centra os episódios mais importantes na descrição da floresta amazónica e na vida vivida no seringai. Uma primeira macro-sequência passa-se em Belém, no barco e na chegada ao seringai, consistindo nos primeiros quatro capítulos. A macro-sequência que narra a vida na selva está estruturada em três sequências menores. Do capítulo V ao VIII, descreve-se a selva e o trabalho dos seringueiros. Do capítulo IX ao XIV, apresentam-se as relações sociais de Alberto com as personagens que vivem mais próximas do patrão e narra-se a fuga de cinco seringueiros, com c auxílio de Alberto. No capítulo XV prepara-se a partida de Alberto, com a recepção da personagem que o vem substituir, narra-se a chegada dos cinco seringueiros capturados, o castigo que lhes é aplicado e o incêndio do barracão.
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Emigrantes compõe-se de um percurso transatlântico que se organiza em três macro-sequências: Portugal - Brasil - Portugal. A primeira parte, introdutória, localiza-se do primeiro ao capítulo IX e apresenta as experiências na aldeia e na vila, aonde Manuel da Bouça vai tratar da documentação, os vários passos que dá em Lisboa, a viagem na terceira classe do navio «Darro» e os primeiros contactos com a paisagem brasileira, quando da entrada na baía da Guanabara e do passeio por algumas ruas do Rio de Janeiro. A parte referente à vida no Brasil, mais extensa, pode subdividir-se em três sequências menores. Na primeira ( do capítulo X até ao XI) desenvolve-se a consciencialização da dificuldade de encontrar trabalho em Santos e a contratação de Manuel da Bouça para ir trabalhar num cafezal do interior de São Paulo. A segunda sequência ( do capítulo XII ao XV) centra na fazenda Santa Efigénia as várias experiências das personagens, migrantes brasileiros e estrangeiros. A terceira sequência (desde o início da «Segunda Parte» até ao capítulo V) localiza na capital uma nova experiência de trabalho de Manuel da Bouça. Carregador num armazém, Manuel da Bouça encontra nesta tentativa o mesmo insucesso. Contacta com outro emigrante que vem na mesma ilusão de enri­quecimento e com outras personagens pobres, tendo algumas delas esperanças de construírem uma sociedade melhor, com uma revolução contra o governo. Manuel da Bouça, na sua alienação, pouco compreende e pouco participa na revolução. Embarcando em Santos, regressa a Portugal. A terceira macro-sequência (entre o capítulo VI da segunda parte e o capítulo VIII), cuja acção se localiza em Portugal, mostra na personagem a consciência de que já não tem lugar na sua aldeia. Envergonhado do seu fracasso, Manuel da Bouça mente, dando a impressão de que tivera sucesso, e vai para Lisboa esconder a pobreza, destinado «a uma outra vida que era ainda, para ele, um enigma» 4 . Na aldeia, num contraste irónico com as expectativas da partida, descobre que quem fizera um palacete na terra que pretendia comprar fora o Nunes, que lhe tinha tratado do passaporte e da passagem, agora enriquecido com a emigração de outros camponeses iludidos. Este facto não causa surpresas ao leitor, pois na primeira macro-sequência já o narrador omnisciente tinha revelado as mentiras da propaganda que o Nunes faz imprimir num jornal.
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Apesar de Emigrantes e A Selva possuírem protagonistas individualizados, torna-se evidente que ambos representam outras personagens, iden­tificadas nos títulos.
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Por detrás de Alberto, está a grande personagem da obra: a própria selva, da qual faz parte o grupo humano que nela vive, tentando domesticá-la para a extracção das suas riquezas. Em numerosos trechos, a selva encontra-se animizada, dotada de um poder de agressão comparado ao das suas feras, e mesmo antropomorfizada, como uma força oculta que combate o avanço dos seringueiros:
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Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica! [...] Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada. Estava de sentinela, silencioso, encapotado, a vedar-lhe todos os passos, a fechar-lhe todos os caminhos, a subjugá-lo no cativeiro. Era a grande muralha verde e era a guarda avançada dos arbustos que vinham crescer em redor da cacimba e, degolados pelo terçado de Firmino, brotavam de novo, numa teima absurda e alucinante. A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quantos anos - mas um dia! [...] A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua actividade, o seu sacrifício e a sua ambição [p. 158].
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A Selva é, nitidamente, um romance de espaço, na clássica classificação de Wolfgang Kayser 5. É, sobretudo, um espaço geográfico e telúrico, em que se vem inscrever o espaço social. A função de Alberto, personagem com maior capacidade de reflexão, é a de orientar a focalização do mundo narrado, vendo os seres e as situações com olhos críticos, veiculando assim a visão do mundo do autor textual. Reagindo face aos mistérios e à exuberância da selva, Alberto está preparado para se dar conta do drama da luta insana dos cearenses maranhenses e pernambucanos que dela tentam arrancar meios para a sobrevivência, num sistema de trabalho que os acorrenta ao dono do seringai, numa dívida constante que os escraviza. Trata-se, também aqui, de migrações internas e externas, que vêm fazer incidir a luz sobre o drama do homem transplantado do seu meio, na luta pela vida.
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Mas é em Emigrantes que a temática da emigração mais tipicamente se revela. Trata-se de um romance de espaço social. Manuel da Bouça é um tipo social que representa todos os emigrantes, como se torna evidente no plural do título. A divisão em três cenários (Portugal - Brasil - Portugal) vem representar o percurso do emigrante português que foi típico no século XIX e na primeira metade do século XX.
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Joel Serrão comenta um quadro de João Evangelista que revela o destino dos emigrantes portugueses no continente americano. Entre 1880 e 1960, o Brasil recebeu 75,7 % da emigração portuguesa 6. Noutro quadro de João Evangelista apresenta-se o número de repatriados em estado de indigência. Entre 1919 e 1930, do Brasil regressam 9 596 indigentes, num total de 10 496 distribuídos pelo Brasil, os Estados Unidos da América, a França, a Espanha e diversos 7.

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Apesar desses dados, o Brasil representava então o Eldorado, paraíso de todas as opulências. A América do Norte também já começava a mitificar-se, através da propaganda dos engajadores, como se torna evidente na primeira macro-sequência da obra e na queixa final de Manuel da Bouça, ao pensar que, se tivesse ido para a América, talvez tivesse enriquecido.
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Mas não apenas em Portugal se difundia o mito do Brasil-Eldorado. De toda a Europa saíam pobres camponeses em busca das milagrosas riquezas do Brasil. As descrições do grupo humano da terceira classe dos navios e também no Brasil mostra italianos, espanhóis, polacos, romenos, russos, sérvios, croatas e eslovenos, etc. - personagens que embarcam no limiar da miséria, esperando ascender, pelo valor do seu trabalho, a um nível de vida verdadeiramente humano, e que afinal vão encontrar a mesma miséria no Brasil. São descritos por um narrador enternecido, em imagens colectivas que consideram globalmente o grupo humano: são «o rebanho» [pp. 88, 136, 141, 153, etc], «dóceis animais» [p. 87], «o grupo» [p. 135], «o feixe humano» [p. 135], «a sinistra manada» [p. 137], «o magote de homens» [p. 154]. A terceira classe em que viajam é o «curral humano» [p. 253].
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São Paulo, interessado em fazer produzir a lavoura no interior, organizava a recepção a estes emigrantes, oferecendo-lhes durante seis dias comida e estadia numa hospedaria, aonde iam ter os engajadores que lhes ofereciam trabalho nas fazendas. Alguns iam a expensas do governo estadual, com a promessa de ganharem grandes lotes de terra para cultivo. Depois, na Hospedaria dos Imigrantes, viam que as promessas se reduziam a um trabalho rude e mal pago por algum coronel proprietário que com eles queria enriquecer depressa. O dono da fazenda vendia-lhes a crédito ferramentas e géneros alimentícios, pelo dobro do seu valor. Daí que, com o seu pequeno salário, não conseguissem saldar a dívida e muito menos economizar dinheiro para a ascensão tão desejada.

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Também A Selva apresenta uma relação de trabalho semelhante, com a agravante de os produtos serem vendidos aos migrantes pelo triplo e até pelo quádruplo do seu valor, num contexto de desvalorização progressiva da borracha. Os seringueiros estavam quase sempre em débito, pelo que dificilmente conseguiam saldar a dívida e regressar ao seu estado. Quando algum tentava fugir, tinha atrás de si a polícia e era geralmente levado para o seringai, onde recebia duro castigo.
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Referem-se ainda imigrantes japoneses, vistos no «Justo Chermont», para o cultivo de mandioca, cana e milho, nos seringais pouco produtivos. No contexto da crise mundial dos anos 20 e 30, no Brasil a única saída para a imigração era então a agricultura, tendo passado o tempo em que, no comércio das cidades, havia lugar para os portugueses que se estabeleciam e que em alguns casos faziam sócios os seus caixeiros, como aparece na literatura do século XIX, em especial na obra de Camilo Castelo Branco. Tanto Alberto como Manuel da Bouça, nas cidades em que aportam, são esclarecidos sobre a falsidade dessa ilusão. A ficção certamente contribuiu para se difundir o mito do Brasil-Eldorado, mas já no século XIX Gomes de Amorim representa, no romance Aleijões Sociais (1870), a consciência das mentiras dos engajadores e o sistema de exploração a que eram sujeitos os imigrantes no Brasil.
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Para além das obras referidas, Ferreira de Castro publica em 1968 a sua última obra, cuja acção é passada em cenário brasileiro. Trata-se de Instinto Supremo, novela que narra a missão de pacificação dos índios parintintins, na selva amazónica, por um grupo de discípulos do general Cândido Rondon. O famoso lema de Rondon orienta a acção dos homens enviados pelo Serviço de Protecção aos índios e transmite-se aos trabalhadores por eles recrutados: «Morrer se necessário for; matar, nunca!» 8 . O etnólogo Curt Nimuendajú, um alemão naturalizado brasileiro, é a personagem que assume maior relevância, servindo de porta-voz do autor, na defesa da civilização a que querem levar os índios:
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Não há dúvida que a civilização está cheia de contradições. Está. [...] Mas só quem for cego pode admitir que a vida primitiva e a ignorância trazem a felicidade aos homens, como pensam alguns. Há muitas pequenas e grandes satisfações que somente os espíritos instruídos podem ter. E elas compensam largamente as nossas responsabilidades e mesmo alguns novos sofrimentos que a nossa evolução nos tenha dado e nos dê [p. 983].
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A evolução da acção é linear. Uma primeira macro-sequência pode ser identificada até ao capítulo VI, com a derrubada da mata para o acampamento, a chegada de Nimuendajú, o recrutamento da turma expedicionária e a ida para a floresta. No capítulo VII ergue-se o acampamento e, no terceiro dia, realiza-se o primeiro contacto, hostil, com os índios. Vários episódios de con­fronto e tentativas de pacificação preenchem esta segunda macro-sequência. Finalmente, o capítulo XII pode consistir numa última macro-sequência, pois nele dá-se a pacificação dos índios. Com a actuação de um intérprete, a comunicação entre civilizados e selvagens torna-se mais eficaz. A novela conclui-se com um telegrama em que se dá a notícia das pazes feitas e pede-se roupas e um professor primário. A obra baseia-se em factos históricos, acontecidos em 1922, indicando o autor a bibliografia em que se baseou. Mas, para Jacinto do Prado Coelho, «O Instinto Supremo é muito menos uma novela histórica que uma epopeia: se o episódio narrado tem raízes na história recente do Brasil, amplifica-se no espírito do leitor pelo seu vasto significado, como expressão da luta vitoriosa do Homem contra a Natureza - essa luta que dá um sentido à vida e um motivo para o Homem se orgulhar da sua dignidade» 9.

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Nas três obras da fase de maturidade cuja acção se passa no Brasil, estão bem representadas as características da realidade brasileira. Os diálogos utilizam um léxico e uma organização sintáctica típicos do português do Brasil, estando nalguns casos marcada a pronúncia das classes populares. Sobretudo A Selva, mas também O Instinto Supremo, apresentam um riquíssimo conjunto de informações sobre a fauna e a flora da região amazónica. Podemos, portanto, reafirmar o grande enriquecimento que ofereceu a Ferreira de Castro a sua experiência de vida no Brasil, apesar de todos os obstáculos que teve de enfrentar.

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Folhas, Letras & Outros Ofícios, Ano II, N.º 3 . Aveiro: Grupo Poético de Aveiro (Junho, 1998), 30-37.

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1 - JOSÉ TAVARES, Homenagem de Oliveira de Azeméis a Ferreira de Castro, separata do Arquivo do Distrito de Aveiro, Aveiro, 1970.
2 - ALEXANDRE CABRAL, «Antecedentes de "A Selva"» in Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro: 1916-1966, Lisboa, Portugália Editora, 1967, pp. 43-56.
3 - FERREIRA DE CASTRO, A Selva, Lisboa, Guimarães & Ca, [s.d.], pp. 19-20. Daqui para diante, as páginas desta obra serão indicadas no corpo de trabalho.
4 - FERREIRA DE CASTRO, Emigrantes, Lisboa, Guimarães & Ca, [s.d.], p. 290. Daqui para diante, as páginas desta obra serão indicadas no corpo de trabalho.
5 - Cf. WOLFGANG KAYSER, Análise e Interpretação da Obra Literária (Introdução à Ciência da Literatura), 6a ed. revista pela 16.ª alemã por Paulo Quintela, Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1976, pp. 399-406.
6 - Cf. JOEL SERRÃO, A Emigração Portuguesa: Sondagem Histórica, 4.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1982, p. 46.
7 - Cf. Idem, ibidem, p. 38.
8 - FERREIRA DE CASTRO, Obras de Ferreira de Castro, 3.ª ed., vol. Ill, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1979, 4 vols., p. 959. Outra página desta obra será indicada no corpo do trabalho.
9 - JACINTO DO PRADO COELHO, «"O Instinto Supremo": quando a ética se torna humanitária», in In Memoriam de Ferreira de Castro, intr. e estruturação de Adelino Vieira Neves, [Cascais], Arquivo Bio-Bibliográfico dos Escritores e Homens de Letras de Portugal, 1976, pp.47-49 (p. 49).
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Gravura - A Selva: romance / Ferreira de Castro; [capa de Bernardo Marques]. - [1.ª ed.]. - Porto: Civilização, 1930. - 333 p.; 19 cm. - Broch.
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