por Celio Turino*
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7- A influência da revolução russa na redefinição de um conceito de ócio
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Paradoxalmente, a importância do lazer no movimento comunista é relativizada exatamente no momento em que o operariado tem, pela primeira vez, a oportunidade de construir o seu modelo de sociedade, emancipando-se do trabalho forçado. Com a Revolução Russa em 1917, as tarefas da construção do socialismo exigiam, antes do lazer, a exaltação ao trabalho. E não apenas exaltação, como a que se apresenta nas obras do realismo socialista, mostrando trabalhadores felizes dirigindo tratores ou forjando o aço, mas de trabalho pesado, estafante. Não pretendemos fazer uma descrição minuciosa desse período, muito menos um julgamento. Mas, para entendermos melhor essa relação dialética entre ócio e trabalho e a postura dos comunistas em relação à preguiça, é necessário avaliar o que imediatamente após a Revolução Bolchevique.
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A Rússia estava isolada, invadida por exércitos estrangeiros, além da movimentação de diversos exércitos leais ao regime czarista que ainda atuavam em seu território. A solidariedade à revolução era intensa, em todo mundo pipocavam greves, inclusive no Brasil, onde os anos de 1917/18 foram considerados anos vermelhos e a greve de 1917 praticamente paralisou São Paulo. Mas a revolução não vingou em nenhum outro país além da Rússia, apenas na Hungria, por um breve período em 1919 e por uma série de circunstâncias particulares, instalou-se uma república bolchevique, liderada por Bela Kun que, em seu discurso de renúncia, acusava o próprio proletariado pela falta de sustentação política necessária, de modo que essa experiência não se mantivesse por mais de noventa dias. Por outro lado, o Exército Vermelho que, ao contrário do que se pensa, avançou para além da Rússia, procurando expandir ao máximo a revolução, foi derrotado na batalha de Varsóvia, em 1920 e teve que recuar. O embaixador britânico Lorde D´Abernon, considerou a vitória polonesa, ''a batalha decisiva da história do mundo''. Esse dado de realidade impôs à Rússia a tarefa de construir o socialismo apenas em suas fronteiras.
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Construir o socialismo sob intenso cerco capitalista era algo impensável nas previsões de Marx, mas não havia outra alternativa. Um milhão de russos morreram de fome, as indústrias e a infra-estrutura estavam destruídas, era preciso trabalho, muito trabalho; trabalho e mais trabalho. Em maio de 1919, Lênin convocou os trabalhadores para os ''Sábados Comunistas''. A instituição dos Sábados Comunistas deveria acontecer em função de uma excepcionalidade de guerra, mas foi muito utilizada em todo o período de construção do socialismo na URSS e consistia num apelo à ''autodisciplina voluntária'', muitas vezes convocada pela Cheka (Comissão Extraordinária para Todas as Rússias (Chekka) para ''combater a contra-revolução e a sabotagem'' ). Sobre esse momento, Eric Carr, autor da monumental História da Revolução Russa, constata que:
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''...milhares de trabalhadores em Moscou e Petrogrado se apresentaram como voluntários para trabalhar horas extras sem remuneração, a fim de intensificar o envio de soldados e suprimentos para as frentes de combate, e esse precedente foi seguido um ano mais tarde. A instituição dos udarnik, ou trabalhadores de choque, para realizar trabalho particularmente importante com grande rapidez, data desta época.'' [e que, provavelmente]''...sem essa combinação de dura coação e entusiasmo espontâneo a guerra civil não poderia ter sido vencida''.
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Durante toda a primeira fase da revolução russa, até a Segunda Guerra Mundial, a continuidade dessas convocações teve um papel estratégico (econômico e não apenas de mobilização ideológica) no desenvolvimento econômico da ''pátria socialista'' e certamente modificou a forma de ''ver'' e perceber o ócio e preguiça.
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Após a Revolução Russa, a circulação de O Direito à Preguiça é arrefecida, mas a cada novo fluxo revolucionário, ela aparece com toda a força. A obra de Lafargue foi um dos textos políticos mais lidos na República Espanhola em particular no período da guerra civil, tendo sido o único a ser apreciado tanto por anarquistas como por marxistas; na França foi publicado clandestinamente pela resistência e ao final da Segunda Guerra contou com diversas edições patrocinadas pelo Partido Comunista Francês, sendo uma de suas obras de maior circulação. Quando das revoltas estudantis de 1968 estava traduzido em quase todos os idiomas, tendo sido assumido por diversos movimentos esquerdistas em todo o mundo e desde então tem sido constantemente difundido. Também inspirou o surgimento do Movimento Situacionista (entre 1958 e 1969), na França, que adotando uma postura de subversão de códigos, hábitos e formas de pensar, de certa forma profetizou ''o Maio de 68'' em Paris com ‘A Sociedade do Espetáculo’ de Gui Debord, ao demonstrar que a mercadoria ‘contempla a si mesma em um mundo que ela própria criou''. No final do século 20, o grupo Krisis em seu Manifesto contra o trabalho (1996) retoma a herança de ''O Direito à Preguiça ao lembrar que ''...o que, para que e com que conseqüência se produz, no fundo não interessa nem ao vendedor da mercadoria força-de-trabalho nem ao comprador. Os trabalhadores das usinas nucleares e das indústrias químicas protestam veementemente quando se pretende desativar as suas ‘bombas-relógio’. E os ''empregados'' da Volkswagen, Ford e Toyota são os defensores mais fanáticos do programa suicida automobilístico''.
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No Brasil constantemente nos deparamos com situação semelhante: centrais sindicais como a CUT ou Força Sindical defendendo incentivos fiscais para a indústria automobilística, modelos de carro popular. Envergonhe-se proletariado! , diria Lafargue. Note-se que a França, onde Lafargue viveu a maior parte de sua vida e lá fundou o precursor do Partido Comunista Francês, sempre esteve presente nesses momentos de ressurgimento de O Direito à Preguiça, indicando que talvez não seja apenas uma coincidência o fato de ser esse o país que mais avançou nas ações pela redução da jornada de trabalho.
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Do mesmo modo que aconteceu no período anterior às revoluções burguesas, quando era preciso travar um duro combate contra o parasitismo da aristocracia do Antigo Regime, no século 20, o movimento operário associou a preguiça ao parasitismo burguês. A crítica marxista ao lazer ficou muito mais concentrada na questão do controle do tempo de não trabalho do que propriamente na defesa da preguiça. Trotski retomou o tema em Terrorismo e Comunismo, onde ele considerava o homem como ''naturalmente preguiçoso'' e que esta era uma qualidade do progresso humano, pois ''se o homem não tivesse procurado economizar suas forças, ele não teria propiciado o desenvolvimento da técnica nem a aparição da cultura social'' imaginando o homem comunista do futuro como um ''feliz e genial preguiçoso''. Mas para a luta imediata, era preciso identificar a ''indolência parasitária da burguesia'' em caricaturas onde gordos capitalistas fumavam charuto e sobreviviam às custas do trabalho alheio.
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''Come ananás, mastiga perdiz
Teu dia está prestes, burguês.''
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Dizia Maiakovski em seu conhecido poema. Esse conjunto de fatores, explica o motivo de O Direito à Preguiça ter sido traduzido tão tardiamente no Brasil. Entre nós, o Partido Comunista só foi formado em 1922, sob o impacto da construção do socialismo na Rússia e ao mesmo tempo, travando um duro combate em relação ao latifúndio improdutivo, as terras ociosas. E isso em um país que nem havia tomado contato com a cultura puritana do trabalho; até 1888 suar o rosto com trabalho era degradante, coisa de escravos, depois, de imigrantes, ''carcamanos'', gente suja, comedores de bucho de boi, por isso, bucheiros [comedor de víceras]. Antes de defender a preguiça, era necessário exaltar o trabalho.
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O fato de a nossa primeira edição de O Direito à preguiça no Brasil ter sido tão tardia, com uma circulação relativamente restrita, menos de 20.000 exemplares em um total de 6 edições, de 1980 até os dias de hoje, não tira a atualidade e a importância deste manifesto. Longe de ter sido superado ''...ele pode resgatar a dignidade e o auto-respeito dos trabalhadores quando, em lugar de se sentirem humilhados, ofendidos e culpados pelo desemprego, se erguem contra os privilégios da apropriação privada da riqueza social e contra a barbárie contemporânea porque podem conhecê-la por dentro e aboli-la. Lutarão não mais pelo direito ao trabalho, e sim pela distribuição da riqueza e pelo direito de fruir todos os seus bens e prazeres'', são as palavras precisas de Marilena Chauí no prefácio a O Direito à Preguiça.
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(continua)
Próximo capítulo: A preguiça sob a lógica do capitalismo
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*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.
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in Vermelho - 31 DE MARÇO DE 2008 - 16h32
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