quarta-feira, 30 de abril de 2008

Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Marky


 

A inventona de Batepá

O romance Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Marky (escritor que não me merece, pela sua obra anterior, particular apreço; autor que foi de textos menores, roçando o porno-tropicalismo que a ditadura, naturalmente, proibiu – claro, que a literatura portuguesa não ficou mais pobre pelo facto, embora esses livros tenham sido precursores da subliteratura que hoje, em versão feminina, enchem de lixo mediatizado as bancas das livrarias), é um texto só possível de produzir em liberdade, suficientemente distanciado em relação aos factos que relata tornando-o assim num livro sem ressentimentos nem constrangimentos excessivos – característica afinal, apesar dos pesares, comum a grande parte da literatura que tem a questão colonial como matriz. Este romance fala-nos, sem rebuços, dos homens e mulheres que em S. Tomé e Príncipe foram vítimas da ignomínia, do arbítrio, dos mecanismos de cerco, de tortura e morte de que foi capaz o colonialismo salazarento, para submeter e escravizar os povos autóctones.
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Partindo de dados factuais (o romance refere os dias trágicos de Fevereiro de 1953) através da transcrição de manifestos, petições, ordens militares, despachos dessa figura sinistra que foi o governador da província coronel Gorgulho, depoimentos de presos e seus familiares, Sum Marky constrói a denúncia pungente e avassaladora de um colonialismo sem regras, desumano e primevo, sublinhando com comedimento formal a extrema desigualdade existente entre brancos e pretos, entre europeus e africanos, pondo a nu a oficial e decantada ausência de preconceitos racistas nos procedimentos administrativos nas ex-colónias.
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Através da narrativa da atribulada viagem de Manuel João da Palma Carlos a S. Tomé, enquanto advogado de defesa de alguns presos políticos acusados de instigarem uma rebelião pró-comunista, inventona engendrada pelo governador Gorgulho, seus lugares tenentes e os roceiros que viam no golpe a possibilidade de se apossarem das terras ainda em posse das elites nativas santomenses e de assim perpetuarem ad eternum a mão-de-obra escrava (a CIA e o Pentágono muito teriam a aprender com os processos de terrorismo de estado que o fascismo encenava, caso não nos considerassem uma excrescência ibérica pejada de madraços pedintes com capital em Madrid), o autor consegue traçar um dolorosíssimo quadro dos anos cinquenta portugueses vividos nas condições específicas e particulares da nossa presença em África e do entendimento que os poderes coloniais traçavam dessa especificidade. S. Tomé era um covil de bandidos, escreve Palma Carlos nas suas memórias, referindo-se à administração colonial e sequazes, mas essa denúncia não impediu que os bandidos saíssem impunes de seus crimes, sendo apenas, quando a coisa extravasou fronteiras, suave e paternalmente admoestados, podendo partir em paz para a metrópole e com os alforges a abarrotar.
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O cacau, os grandes interesses do capital e dos fazendeiros, a corrupção generalizada, a impunidade dos grandes senhores e das empresas coloniais, as atrocidades da máquina opressora do regime, com a conivência activa da Igreja, as arbitrariedades de um governador megalómano, desmedido de ambição, de uma sordidez rapace – exemplar extremo do pior que o salazarismo criou – tudo isto descrito como se de um pesadelo kafkiano se tratasse; um longo inquérito policial sobre o absurdo no qual o real é tão excessivamente avassalador que nos magoa de vergonha e perplexidade.
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Este romance é também a estória de sum Clé Clé, homem sábio, demiurgo, curandeiro das doenças da alma (porque é nela que tudo adoece), num tempo desalmado no qual Deçu/Deus, a existir – mas é tão improvável, ou então cego anda – se esqueceu dos humanos filhos deixando-os entregues à sua sorte e ao arbítrio dos déspotas. Sum Clé-Clé, preto velho, livre de olhar o tempo que passa lento, porque a vida é para se sorver sem pressa nem temores, placidamente, sentindo-a vibrar por dentro da carne como se fosse a música que a chuva executa no zinco da cubata.
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Bibliografia:
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A Guerra Colonial - Realidade e Ficção - Org. de Rui de Azevedo Teixeira - Ed. Notícias
Revista História
Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Markly – Veja
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in Avante 2008.04.17
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