Na trilha de Macunaíma (3)
por Celio Turino*
3- O elogio ao ócio
Poucos autores trataram do tema com tanta profundidade e clareza de raciocínio como o filósofo, matemático e pacifista, Bertrand Russel. Um dos grandes pensadores do século 20, ganhador do premio Nobel, não por uma área específica do conhecimento, mas pelo conjunto de sua obra, Bertrand Russel conclui que ''a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e a moral do trabalho é ''uma moral de escravos''. Inicialmente ele procura definir o que é o trabalho, identificando dois tipos de trabalho:
a) o que modifica a posição dos corpos na superfície da terra ou perto dela, relativamente a outros corpos;
b) o que manda que outras pessoas façam o primeiro.
Lembrando que o primeiro tipo é desagradável e mal pago e o segundo muito bem pago e agradável, conclui que, para o segundo tipo:
''...além daqueles que dão ordens, há os que dão conselhos a respeito das ordens que devem ser dadas. Geralmente dois tipos opostos de conselhos são dados simultaneamente por dois grupos organizados, a isso se chama de política. A qualificação necessária para esse tipo de trabalho não é o conhecimento do tema a respeito do qual se dão conselhos, mas o conhecimento da arte de falar e escrever convincentemente, isto é, da propaganda.''.
Ele também faz uma distinção para uma terceira classe de pessoas, os grandes proprietários de terra que, por meio de um direito de herança e de suas propriedades, fazem com que as outras pessoas ''paguem pelo privilégio de poder existir e trabalhar''. Neste momento do texto, encontramos uma obra prima na arte da oratória. Utilizando-se da fina ironia das classes altas inglesas, Bertrand Russel provoca no leitor uma completa inversão de valores, os nobres e grandes proprietários de terra, acostumados a ter tratamento de primeira classe, agora são apontados como uma terceira classe de pessoas. Com uma única ironia, ele inverte uma representação social construída durante séculos e desmonta um dos pilares da ideologia dominante. Esses proprietários são classificados como ociosos, e ele alerta que a esse ócio não dedica elogio, pois...:
''...o seu ócio só é possível devido ao trabalho dos outros e, na verdade, a sua aspiração a um ócio confortável é, historicamente, a origem de todo o evangelho do trabalho. A última coisa que essa gente jamais desejou é que os outros seguissem o seu exemplo.''
Essa ética transformou ócio e preguiça em pecado apenas para os outros, invertendo o próprio sentido de trabalho e ócio. Até a Revolução Industrial, o excedente produzido por um único homem era pouco mais do que o necessário para sua própria manutenção e de sua família. A apropriação deste excedente está na origem do Estado, que era imposta pela força das armas (os guerreiros responsáveis pela defesa da tribo logo tornaram-se os coletores de impostos), ou pela força da crença religiosa (os sacerdotes adoravam receber seus tributos). Quando não havia excedente, a coleta continuava e os que não tinham força para extrair a parte dos outros, eram condenados à fome:
''Pouco a pouco, porém, descobriu-se que era possível induzi-los a aceitar uma ética segundo a qual era sua obrigação trabalhar duro, mesmo que uma parte desse trabalho fosse para sustentar o ócio dos outros. [...] A idéia do dever, historicamente falando, foi um meio usado pelos detentores do poder para convencer os demais a dedicarem suas vidas ao benefício de seus senhores''.
Bertrand Russel demonstrou que essa era uma forma ''invertida'' de consciência, em que ''...os detentores do poder escondem tal fato de si mesmos, procurando acreditar que seus interesses particulares são idênticos aos interesses maiores da humanidade''. Em seguida ele conclui:
O lazer é essencial à civilização e, em épocas passadas, o lazer de uns poucos só era possível devido ao trabalho da maioria. Esse trabalho era valioso não porque o trabalho é bom, mas porque o lazer é bom. E com a técnica moderna, seria possível a justa distribuição do lazer sem nenhum prejuízo para a civilização''.
É claro que essa mudança de enfoque implicaria numa mudança no controle dos meios de produção, envolvendo muito mais interesses do que uma reflexão filosófica, por mais clara e precisa que seja...
''A idéia de que os pobres devem ter direito ao lazer sempre chocou os ricos''[...]''Quando alguns abelhudos vieram afirmar que a jornada era longa demais foi-lhes dito que o trabalho mantinha os adultos longe da bebida e as crianças afastadas do crime''.
Um discurso e postura que se mantém presentes até os dias atuais. Assim, a ''necessidade de manter os pobres aplacados, levou os ricos a pregarem, durante milhares de anos, a dignidade do trabalho, enquanto tratavam de se manter indignos a respeito do mesmo assunto. O trabalho é um meio para se atingir a felicidade e não um fim em si mesmo. Um ''...instrumento capaz de tornar o homem capaz de viver'', disse Aristóteles que já apontava para um futuro em que as máquinas poderiam substituir a necessidade do trabalho, tornando desnecessária a escravidão (ou a exploração do trabalho alheio, se preferirmos transportar esse conceito para os dias atuais) e possibilitando o desenvolvimento de uma vida elevada, cheia de sentidos, o oposto da alienação gerada pelo culto ao tecnicismo e a busca desenfreada do lucro, o que é ''uma completa inversão da ordem das coisas''. Uma ética que tenha por princípio a emancipação da humanidade precisa superar uma existência de escravos, sejam eles (sejam nós) assalariados ou ''ininpregáveis'', pois ''...movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência não é, decididamente, um dos objetivos da vida humana; se fosse, teríamos que considerar qualquer operador de britadeira superior a Shakespeare''. Para Bertrand Russel, ...pensamos demais na produção e de menos no consumo. Por isso, acabamos dando pouca importância ao desfrute e à felicidade e deixamos de avaliar a produção pelo desfrute que ela proporciona''.
Independente da crítica ao ócio explorador, desfrutado por uma minoria, que é objeto de denúncia, tanto de Bertrand Russel como vários autores, como Paul Lafargue, as vantagens desfrutadas por uma pequena classe ociosa, foram fundamentais para contribuir...
''...com quase tudo o que hoje chamamos de civilização. Ela cultivou as artes e descobriu as ciências, escreveu os livros, inventou as filosofias e aperfeiçoou as relações sociais. Mesmo a libertação dos oprimidos foi geralmente iniciada a partir de cima. Sem a classe ociosa, a humanidade nunca teria saído da barbárie''.
No entanto, passados os anos, com a hereditariedade de bens, essas mesmas classes sem qualquer obrigação social, geraram um enorme desperdício. Para cada Darwin que produziram também geravam ''...dezenas de milhares de proprietários rurais que jamais pensaram em coisas mais inteligentes do que caçar raposas e punir invasores de propriedades''.
Esse papel criativo do ócio (no sentido da liberação da necessidade de um trabalho ligado à subsistência mais imediata de modo a permitir o desenvolvimento do estudo e da pesquisa) deveria ser preenchido, nos tempos atuais, pelas Universidades. Porém, uma reflexão mais crítica, leva a uma constatação diferente:
''Hoje, espera-se que as universidades produzam de modo mais sistemático aquilo que a classe ociosa produzia apenas acidentalmente, como mero subproduto. Trata-se de um grande avanço, mas que tem seus inconvenientes. A vida universitária é tão diferente do mundo exterior que, no meio acadêmico, as pessoas tendem a ficar alheias às preocupações e problemas dos homens e mulheres comuns. Além disso, elas utilizam um jargão de tal forma especializado que em geral as opiniões que expressam deixam de exercer a influência que deveriam ter sobre o público em geral. Outra desvantagem é que os estudos universitários são estruturados de tal forma que alguém que conceba uma linha original de pesquisa freqüentemente se sente desencorajado. As instituições acadêmicas, por mais úteis que sejam, não são os guardiões adequados dos interesses da civilização num mundo em que todos os que vivem fora de seus limites estão ocupados demais para dar atenção a atividades não utilitárias.''
A forma de romper com esse processo de alienação e auto-alienação em todos os seguimentos da sociedade seria a construção de uma nova sociedade do lazer. Sociedade em que o trabalho deixa de ser um fim para se transformar em meio para a conquista da plena realização humana onde os bens produzidos pelo trabalho sejam eqüitativamente distribuídos, permitindo a redução da jornada de trabalho e o aprofundamento dos estudos, da consciência e dos sentidos verdadeiramente humanos. Bertrand Russel era um humanista que chamava à reflexão os homens de seu tempo (e os do nosso tempo também e, infelizmente, daqueles que virão depois do nosso tempo):
''Num mundo em que ninguém tenha que trabalhar mais do que quatro horas diárias todas as pessoas poderão saciar sua curiosidade científica(...), todo pintor poderá pintar seus quadros, sem passar por privações, independente da qualidade de sua arte. Jovens escritores não precisarão buscar a independência econômica indispensável às obras monumentais. Pessoas que em seu trabalho profissional se tenham interessado por alguma fase da economia ou da política poderão desenvolver suas idéias sem aquele distanciamento acadêmico. [...]
O trabalho exigido será suficiente para tornar agradável o lazer, mas não levará ninguém à exaustão. E como não estarão cansadas nas horas de folga, as pessoas deixarão de buscar diversões exclusivamente passivas e monótonas. Uma pequena parcela dedicará, com certeza, o tempo não gasto na ocupação profissional a atividades de alguma utilidade pública, e, como não dependerão dessas atividades para a sua sobrevivência, não terão a originalidade tolhida e nem a necessidade de se amoldarem aos padrões estabelecidos pelos velhos mestres''.
O elogio ao ócio, manifesto de um homem que acreditava na humanidade. Bertrand Russel viveu quase um século e publicou O Elogio ao ócio com mais de sessenta anos de idade, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, em 1935. Após essa publicação, ele assistiu à Guerra Civil Espanhola, o bombardeio de Guernica, o Holocausto, as bombas de Hiroshima e Nagasaki, a guerra da Coréia, a batalha de Argel...o Vietnã. Poderíamos chamar essa pequena grande obra de ''Uma utopia do lazer''. Pena que tão poucos a leram.
(continua)
No próximo capítulo: O direito à preguiça
*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.
* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site.
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