As bases para sua construção são sólidas, acumuladas na longa trajetória política dos negros brasileiros: há convicção das lideranças, militância, organizações e forças políticas da dificuldade e necessidade de sua realização; há quadros políticos experimentados conscientes da importância histórica do congresso; instituíram uma coordenação ampla, democrática e representativa, não há sobreposição de uma força sobre a outra, nem condições políticas para exercício de hegemonismo; a Assembléia Nacional realizada em Belo Horizonte aprovou o Regimento Interno que prevê realização de quatro assembléias nacionais em quatro regiões geográficas diferentes, oportunizando maior alcance e participação popular.
Essa agenda se impõe para luta anti-racista na atual conjuntura. É uma necessidade imperativa que o negro brasileiro historicamente persegue. A partir de 1924, por vários anos consecutivos, a imprensa negra através do jornal Clarim da Alvorada, sob a liderança de José Correa Leite e Jayme Aguiar (façamos justiça ao segundo, literalmente esquecido pelo movimento negro, enquanto várias lideranças negras estrangeiras são consideradas referência da luta racial), trabalhou incansavelmente para realização do Congresso da Mocidade da Mocidade do Homem de Cor, Congresso da Mocidade Negra de São Paulo, Congresso Universal da Raça Negra, compreendiam que sedimentariam caminhos para união da gente negra e, conseqüentemente, sua verdadeira libertação, via completa integração na sociedade brasileira.
A população negra enfrentava tempos sombrios: estava em vigor uma recém nascida república sem povo, oligarca, sob as mãos de poderosos coronéis e latifundiários, antigos proprietários de escravos. O Estado empreendia políticas que buscavam o branqueamento do país, através de investimento em imigração européia, incentivo a miscigenação e uso de força física sobre a população negra e pobre. O pensamento sociológico produzido pelas classes dominantes era sustentado nas teorias do racismo científico e a classe média o assimilava. Os negros completamente desestruturados do ponto de vista social e econômico (abandonado, analfabeto, desempregado e desrespeitado), com pouca experiência política sistematizada.
Divergências ideológicas e confronto político entre o jornalista José Correa Leite e o professor universitário Arlindo Veiga dos Santos (presidente da Frente Negra Brasileira, outro ícone do movimento negro das primeiras décadas do século passado injustamente jogado no limbo da história) não permitiu que a proposta de realização dos congressos prosperassem. Esse episódio é um ensinamento para militância negra e responsabiliza a geração atual não permitir que as diferenças e divergências sejam maiores que o compromisso com o êxito do Conneb e com futuro da população negra.
Os congressos realizados em 1934 e em 1937 coordenadas por Gilberto Freyre e Décio Freitas, respectivamente, são versões muito distantes do movimento negro, embora a Frente Negra Brasileira de Pernambuco tenha participado através de Miguel Barros, Solano Trindade e Gerson Lima. Foi uma obra da academia, a população negra era objeto de reflexão das elites acadêmicas e não sujeitos políticos em congresso. Paradoxalmente os resultados práticos, também, contemplaram a pauta anti-racista, especialmente a vitória sobre as teorias racistas que predominavam na intelectualidade burguesa desde finais do século 19, e o aumento dos estudos e pesquisas sobre as religiões de matriz africana – predominantemente o candomblé, na época brutalmente perseguido.
Nas décadas de vinte e trinta do século passado o Estado brasileiro estava num processo de estancamento das grandes ondas imigratórias de europeus, definhava a política de branqueamento. Era momento de afirmação da nacionalidade, pois favorecia as elites nativas. A miscigenação e a cultura de matricialidade africana (capoeira, samba e religião) eram elementos que mais representavam e singularizavam a nação brasileira, ou seja, o Brasil era negro. Precisavam de se apropriar, branquear e abrasileirar a cultura herdada dos africanos, daí vender a imagem de país do carnaval, da ginga e da mulata, paraíso das relações raciais, um modelo a ser seguido. Por isso o congresso utilizou o pensamento de Gilberto Freyre.
A obra freyreana Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil, composta pelos livros Casa Grande Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso, significou um grande avanço na interpretação sociológica do Brasil, pois rompia com o argumento da inferioridade biológica da raça negra e atribuía a sua subalternidade social ao acesso a cultura e as condições objetivas de vida (alimentação, trabalho, saúde e clima), fato que favorecia os negros. Além de sustentar a desigualdade entre negros e brancos através da negação do racismo, fato que favorecia os brancos.
Os congressos de 1934 e 1937 cumpriram com objetivos acadêmicos e políticos, não deram respostas à vida material da população negra, ao contrário, o idilismo da narrativa de Gilberto Freyre deu luz ao mito da democracia racial, em outras palavras, institucionalizam a negação. Essa experiência sinaliza para necessidade do protagonismo da luta racial no Brasil ser prerrogativa exclusiva dos negros e índios, embora temos que reconhecer a importância da incorporação dos não negros e índios no combate ao racismo. O Conneb tem que ter a capacidade de constituir um organismo com condições de agregar valores com a máxima amplitude, sem perder a iniciativa dos que sofrem com o racismo no país há cinco séculos.
Em 1950 o Teatro Experimental do Negro - TEN organiza no Rio de Janeiro, então Capital Federal, o Congresso Nacional do Negro. Para o TEN o desafio imediato era estabelecer um duro confronto ao mito da democracia racial, o caráter desse congresso era eminentemente de denúncia. Nesse evento faltou iniciativa coletiva das organizações do movimento negro, teve um proponente e organizador. A metodologia utilizada permitiu novamente que o diletantismo acadêmico e elitismo intelectual prevalecessem. Privilegiar recebimento de teses individuais, num período em que a maioria da população negra era analfabeta, marginaliza a participação da grande massa menos favorecida. Apesar do flagrante prejuízo, a contribuição do Congresso Nacional do Negro foi um documento com propostas que previam políticas de ações afirmativas, abertura dos partidos políticos para maior presença e ascensão dos negros.
O documento final desse congresso prova que o movimento negro brasileiro há 58 anos tem as mesmas necessidades e reivindica a mesma coisa, isso aponta para dois fenômenos preocupantes: a força e enraizamento do racismo brasileiro e a pouca eficácia política do movimento negro. Os negros e negras em congresso terão que avaliar sua principal ferramenta política, ou seja, o próprio movimento negro. Responder, sem tergiversar, quais são suas insuficiências, se há necessidade do atual modelo organizativo, quais aspectos estão superados, o que mudar e como mudar. O organismo resultante do Conneb, terá representatividade para realizar, com urgência, os ajustes de ordem organizativa e política necessários e manter as continuidades avaliadas positivamente.
O processo de construção do I Encontro Nacional de Entidades Negras – ENEN, realizado em 1991, foi um fato relevante para organização do Conneb, pois produziu resultados indiretos que atualmente é possível mensurar. Permitiu o estabelecimento de métodos que pode ser utilizados para realização de um congresso com capacidade de agregar a diversidade estrutural e ideológica do movimento negro: direção colegiada e plural, fóruns estaduais e regionais, conceituação de entidades do movimento negro, proporcionalidade nos pesos políticos entre organização regional e nacional, ampliação dos agentes políticos internos, rompimento com o messianismo de entidades que em razão do currículo acumulado tenta silenciar vozes dissonantes a sua. Após o I ENEN o movimento negro compreendeu que a busca do consenso, a oitiva entre as todas as partes e o desejo da maioria sempre prevalecerá em fóruns coletivos da luta anti-racista. Como resultantes desse acúmulo é possível citar a estrutura ampla e democrática do Conneb e a certeza de que o compromisso das organizações e forças políticas envolvidas é de submissão aos resultados dos debates.
Esse complexo de regras aperfeiçoadas ao longo dos últimos dezessete anos é um patrimônio político imaterial do movimento negro brasileiro, permite a aproximação, existência e espaço das diversas vozes. Trata-se de uma estrutura fundamental para o trabalho conjunto dos negros e negras que se encontram em um país cuja extensão geográfica é continental, a população negra expressa culturas diversas, tem interesses diversificados e os efeitos do racismo se universalizam homogeneamente. Atualmente o nível de estruturação do Conneb está desigual entre os estados, a maioria não constituiu fórum, não realizou plenárias, não participou sob delegação coletiva das assembléias nacionais. Há um evidente atraso na implantação do sistema de organização do congresso que deve ser corrigido sob pena de construí-lo sem participação e representatividade necessária.
As atividades preparatórias empreendidas pelo movimento negro, anterior a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, escreveu mais um momento culminante na história ao movimento negro brasileiro, pois foram produzidos conteúdos, estabeleceram alianças acordos políticos, enfrentamento ao Estado, cujos resultados influenciam positivamente a luta anti-racista internacional e o resultado da referida conferência. É de suma importância destacar esse evento, pois o movimento negro brasileiro sempre esteve sob influencia da luta negra estrangeira – especialmente do movimento negro americano, da luta contra o racismo institucionalizado na África do Sul, do processo de descolonização dos países africanos. Invariavelmente damos mais peso as palavras de Frantz Fanon, Martin Luther King, Malcon X, Nelson Mandela, Agostinho Ferreira, Steve Biko em detrimento de Arlindo Veiga dos Santos, Jayme de Aguiar, José Correa Leite, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales, Milton Santos, Clóvis Moura, dentre outros. O congresso tem que aprofundar a análise sobre a experiência do movimento negro nacional, daí subtrairá materiais para construção do pretenso projeto político da população negra, será um erro reproduzir sábios conhecimentos elaborados para tempo e espaço diferenciado. Assim a magnitude internacional do movimento negro brasileiro resultará em força política interna e em unidade programática na luta anti-racismo.
A geração atual tem a responsabilidade de realizar o Conneb e, através dele, construir a unidade nacional dos negros e negras, aumentar a contundência no combate ao racismo, expresso no desemprego e subemprego, no latifúndio, na brutal violência do Estado contra a juventude e as mulheres negras, na sub-representação política, econômica e intelectual, na estrema pobreza e na riqueza, na invisibilidade histórica e menor valia as culturas de matricialidade africana, no enraizamento do eurocentrismo em toda esfera da vida social. Temos que redefinir o lugar do negro no Brasil. Estão amadurecidas as condições para o movimento negro brasileiro realizar um congresso, nunca realizado em nossa nação. Acumulamos ao longo de várias décadas de debates unidade nas propostas de combate a desigualdade social entre negros e brancos e de superação do racismo. Esse acúmulo é uma ferramenta fundamental, mas insuficiente para superar os impasses que pesam sobre a população negra brasileira. Daí a necessidade do Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil.
Responder como elaborar um projeto que se constitua em força política capaz de disputar os rumos do Estado e para além de colocar-lo como operador das bandeiras do movimento negro, interferir no ordenamento jurídico, na captação e distribuição do orçamento público, na formação das gerações dirigentes do país, da produção e distribuição das riquezas. Esse é o sentido mais profundo do Conneb, não faremos um congresso para discutir as já formuladas e consensuadas políticas públicas. Há necessidade do Brasil avançar nesse debate, a dívida é grande e a população negra é a verdadeira construtora de sua libertação.
*Edson França, É Coordenador Geral da Unegro, membro do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da coordenação da Conen-Coordenação Nacional de Entidades Negra
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in Vermelho - 15 DE ABRIL DE 2008 - 19h51
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