por Celio Turino*
6 - Os comunistas e o direito ao ócio
Lafargue, militante da Associação Internacional dos Trabalhadores, membro da Comuna de Paris, fundador do Partido Operário Francês e da Segunda Internacional Socialista, foi contundente em sua crítica aos proletários da França. De certa forma essa contundência deve ter surtido efeito, pois a França é o país que mais editou O Direito à Preguiça sendo a nação que mais avançou no debate e na aplicação de uma efetiva redução da jornada de trabalho. Na série de artigos, depois publicados na forma de um pequeno livro, ele insiste na denúncia à armadilha do louvor ao trabalho e, com força poética, encadeando palavras, vai desmascarando a própria ideologia capitalista:
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''Os próprios operários, ao cooperarem para a acumulação de capitais produtivos, contribuem para o fenômeno que, cedo ou tarde, irá privá-los de parte de seu salário.[...]
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Trabalhem, trabalhem proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, tornando-se mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e para ser miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista. [...]
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Os proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, não compreendem que o excesso de trabalho que eles se infligiram durante o tempo da propensa prosperidade é a causa de sua miséria atual.''
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Seu manifesto, no entanto, não é um ataque cego ao trabalho, conceito caro ao marxismo, a começar por um artigo de fundamental relevância, escrito por Engels, ''O papel do trabalho na transformação do macaco em homem''. Pelo contrário, o que ele prega é distribuição dos benefícios do trabalho, em uma vida não alienada, que rompa com a divisão entre trabalho intelectual e manual, cheio de sentidos, que libere e emancipe o indivíduo. E essa forma de trabalho, que não tenha por objetivo o lucro do capitalista, pode ser executada em uma jornada bem menor. Lembra Lafargue:
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''o trabalho só se tornará um condimento do prazer da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano e uma paixão útil para o organismo social quando for sabidamente limitado a um máximo de três horas por dia.''
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Para conquistar essa situação é preciso inverter a lógica dominante, procedendo do mesmo modo que a burguesia fez quando, com a Revolução Francesa, assumiu até mesmo o controle do tempo, abolindo feriados, substituindo a semana bíblica de sete dias pela semana de dez, libertando os ''operários do domínio da Igreja para melhor dominá-los através do trabalho''. Assim como assumir o controle do tempo é fundamental, também é preciso assumir o controle da tecnologia, distribuindo os seus benefícios para todos, pois, do contrário, no lugar de trazer alívio, as máquinas aprisionarão e empobrecerão cada vez mais o trabalhador:
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''A paixão cega, perversa e homicida pelo trabalho transforma a máquina libertadora em instrumento de escravização dos homens livres: sua produtividade os empobrece.''
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Posteriormente, em um apêndice de seu manifesto, Lafargue encontra em Aristóteles a justificativa para essa inversão de lógica, tendo por objetivo um mundo sem senhores ou escravos:
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''Se cada instrumento pudesse realizar seu trabalho obedecendo ou antecipando a vontade de outros, como as estátuas feitas por Dédalo, ou os trípodes giratórios de Hefesto, os quais, diz o poeta,''sozinhos entravam na assembléia dos deuses; se, da mesma maneira, a lançadeira do tear tecesse sozinha e a palheta tocasse a lira, os manufatureiros não precisariam de trabalhadores, nem os senhores precisariam de escravos''
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''O sonho de Aristóteles é nossa realidade. [...] a máquina é a redentora da humanidade, o Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe trará lazer e liberdade''
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Essa parte do livreto reflete muito bem o pensamento da época, independente de ideologias, a crença na tecnologia e no que viria a ser a automação industrial, mas ele faz isso sem deixar de lado a necessidade fundamental do controle sobre essas mesmas máquinas que só pode acontecer a partir do controle coletivo dos meios de produção, pois, do contrário, no lugar de liberar energias humanas elas reduzem-se a um mero instrumento de concentração e lucro para o capitalista.
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O Direito à Preguiça identifica na exploração fabril uma nova forma de escravidão e sua publicação foi um instrumento, uma ferramenta para a práxis política e estava em profunda sintonia com o movimento operário da época. Desde o Congresso de Genebra, da AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores), em 1866, a questão da redução da jornada de trabalho, com a limitação da jornada diária de 8 horas, assim como a supressão do trabalho noturno e a regulamentação do trabalho infantil, assumem vital importância e o Primeiro de Maio é expressão desse movimento.
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No Brasil, essa bandeira é colocada pela primeira vez no Congresso Operário Brasileiro, em 1906 e em 1907 houve a primeira greve geral pelas 8 horas. Francisco Foot Hardman, autor de Nem pátria, nem patrão, ao analisar a vida operária e a cultura anarquista no Brasil, identifica várias citações a Lafargue na imprensa operária em sua fase anterior a 1920, sendo que a primeira é de 1896, no jornal socialista, A Questão Social, de Santos, estado de São Paulo; no jornal de número 44, à página 3, há um resumo de outro popular panfleto escrito por Lafargue: A religião do Capital, demonstrando uma relativa sincronia entre o movimento socialista brasileiro e o movimento operário europeu. Porém, a primeira tradução de O Direito à Preguiça no Brasil só acontece em 1980, Foot Hardman identifica esse atraso no fato de que os textos ''...são incômodos não só para a consciência burguesa, mas também para as ideologias conciliatórias do ''sacrifício para todos'', da abnegação ao ofício, do ''apertar'' o cinto, todas elas afinadas com a impostura de um consenso esquisito e arbitrário e apoiadas numa ética do trabalho, conservadora e puritana''.
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A questão da preguiça, ou do lazer, no movimento operário sempre esteve dialeticamente ligada ao combate à exploração capitalista. Basta lembrar que um conceito central de O Capital é a redução da taxa de Mais-Valia, ou seja, do sobre trabalho. Quanto mais tempo liberado do trabalho, menor a taxa de exploração. Engels via na ampliação do tempo do lazer o impulso que faltaria à emancipação dos trabalhadores e a superação do capitalismo. Ele acreditava que com mais lazer, os trabalhadores se reuniriam mais, teriam a possibilidade de aprofundar a sua organização, aumentando a consciência coletiva e a sua capacidade de mobilização. A realidade do século 20 demonstrou que as motivações para a prática política são muito mais complexas. No entanto essa é uma indicação de como os revolucionários do século 19 percebiam a importância estratégica do lazer e do tempo liberado do trabalho, bem como de sua identificação com ideais libertários, humanistas:
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''Nos dias de grande alegria para o povo, quando os comunistas e os coletivistas fizerem desaparecer as garrafas, correr os presuntos e revoar os copos [...]
No regime da preguiça, para matar o tempo que nos mata a cada segundo, haverá sempre espetáculos e representações teatrais''.
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E essa tradição libertária e humanista, podendo parecer utópica ou romântica, não estava dissociada do marxismo em sua preocupação científica, racional, estando profundamente identificada com a gênese do pensamento de Marx e Engels. Em um dos poucos momentos em que eles trataram do que viria a ser a sociedade comunista, nos seus manuscritos de juventude, uma idéia muito semelhante à que vimos já estava expressa:
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''...na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico'' (A Ideologia Alemã – p. 47 – Ed. Grijalbo -1977)
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Para eles, a questão da superação da exploração do trabalho e a emancipação humana com a conquista de um tempo efetivamente livre, entendido como liberdade e capacidade de escolha em relação ao que cada um pode e deve fazer com o seu tempo, estavam diretamente relacionadas à ruptura com a alienação do trabalho (a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade). Sendo que essa alienação está intimamente relacionada à divisão social do trabalho onde ''...divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas''
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Na época, o lazer ainda era estruturado pelas próprias entidades sindicais e culturais do proletariado, ou então por círculos intelectuais ligados à social democracia ou aos anarquistas. Ou seja, o lazer era inerente à auto-organização da classe trabalhadora, que programavam seus passeios, piqueniques, festivais, ''teatro social'', espetáculos, jogos e festas. A questão do controle externo sobre o tempo do lazer em uma sociedade administrada será analisada posteriormente, pelos teóricos da Escola de Frankfurt; àquela época, a industria cultural ainda dava os primeiros passos, não tendo assumido o (quase) pleno controle dos meios e veículos do lazer e da cultura.
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(continua)
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No próximo capítulo: A influência da revolução russa na redefinição de um conceito de ócio
*Celio Turino, Historiador, atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos Culturais (Ministério da Cultura) e responsável pelo conceito e implantação dos Pontos de Cultura.
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in Vermelho - 24 DE MARÇO DE 2008 - 16h17
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