sexta-feira, 18 de abril de 2008

Discorrendo sobre a descolonização portuguesa

.


General Galvão de Melo (1)

.

P: Como foi feito o convite para entrar no Movimento que levou ao 25 de Abril ?

.

R: Fui o único militar que, estando fora do serviço, eles convidaram para entrar nesse Movimento. Eu saíra em 1966, quando me demiti, já com as condições para ser promovido a oficial general. O convite foi feito pelo então Capitão Costa Martins, uns meses antes da insurreição do 16 de Março, talvez em Janeiro de 1974. Apesar de tudo o que diziam dele, como sendo ligado aos comunistas, em relação à minha pessoa, foi de uma lealdade impressionante.

.

Na altura era Presidente da Petrofina, em Portugal. Foi ao meu escritório, onde tivemos uma longa conversa. Concordei com muitas das coisas que referiu, mas percebi logo o tipo de cassete comunista, que queria vender. Fiquei espantado, mas já, em 1966, quando saí, afirmava no relatório então elaborado que, face à maneira como escolhiam os oficiais generais, teriam, no futuro, um grande dissabor.

.

A revolução, segundo a minha opinião, não foi feita pelos portugueses, nem dirigida pelos militares. Estes foram apenas as marionetes. Uns mais, e outros menos conscientes.

.

Se uma revolução militar nascesse apenas do meio militar, seriam todos da mesma cor. Basta ver a composição da JSN, em que havia uma grande variedade de tonalidades.

Portugal na disputa soviético-americana

P: Em trabalho anterior, cheguei à conclusão que nem Mário Soares, nem Álvaro Cunhal, uns meses antes, julgavam possível o derrube do regime pelos militares...

.

R: Não me refiro a esses. A revolução foi feita pelos americanos e pelos soviéticos, devido ao colonialismo. Atacaram-nos aqui, para não sentirmos o arrancar do dente em África. Aqueles políticos foram apenas os beneficiários...

.

P: Quais os oficiais que se terão prontificado a entrar em tal empreendimento?

.

R: Basta lembrar de Costa Martins, de Rosa Coutinho, de Melo Antunes e, mesmo, talvez de Costa Gomes.

.

Acabei por passar um período dificílimo da minha vida, metido numa revolução que estava a ser liderada pelos comunistas, apesar de ser visceralmente anticomunista. Senti isso, imediatamente.

.

Na minha opinião deveria ter havido uma abertura no regime anterior. Basta lembrar que todas as gerações envolvidas naquela época e, nomeadamente a minha, não tinham qualquer preparação ideológica. E, contra uma ideologia apenas serve outra ideologia. Não serve nenhuma ditadura. Cá dentro, organizado, apenas existia o Partido Comunista. O resto era fantasia.

.

Depois do encontro com o Costa Martins, tive duas conversas com Marcello Caetano. Disse-lhe: O senhor tem que mudar qualquer coisa. Afasta os “yes man”, que tem à sua volta. Junta aqui uma dúzia de militares a sério e faz-se apenas um golpe palaciano, passando a chamar-se uma democracia. De resto a nossa ditadura era apenas maternal...

.

P: Qual era a sua opinião sobre Marcello Caetano ?

.

R: Era um medroso... Muita inteligência, muita cultura, mas pouca experiência. Basta ver o livro que escreveu, apenas para culpar os outros... Até naquelas cartas dirigidas ao Salazar, já publicadas, se vê a maneira como procedia. Fazia as críticas e mantinha-se dentro do regime... Considero que se devia ter afastado, para depois criticar...

.

Entretanto ocorreu o 16 de Março que, tal como o 11 de Março do ano seguinte, foi uma rasteira provocada pelos comunistas, para meter na cadeia os líderes não comunistas, para eles poderem trabalhar à vontade. A seguir, ainda apareceram como salvadores daqueles. Só lá ficou um para os controlar...

.

Integrando a Junta de Salvação Nacional

.

P: Essa era a tese do General Spínola...

.

R: A revolução foi feita por militares patriotas não experimentados e militares não patriotas e doutrinados pelos comunistas. O que foi fácil, dada a falta de doutrinação política. Por acaso, eu não era assim, por ter um pai situacionista, mas crítico. Uma vez, no Rossio, passaram, por ele, uns barbudos que lhe chamaram fascista. Com mais de 80 anos, respondeu: É verdade. Sou fascista, salazarista e monárquico.

.

No dia 25 Abril, quando me apresentei na Pontinha, esclareci a minha posição e disse para o General Spínola: Estou aqui, convicto para deitar abaixo uma ditadura, mas ainda mais convicto para evitar que outra, ainda mais violenta do que a que tínhamos, lhe tome o lugar. Isto numa sala, onde sabia estarem muitos oficiais vermelhos.

.

P: Já considerava Rosa Coutinho como comunista ?

.

R: Não. Só vim a saber cerca de um mês depois.

.

P: Quem mais lá estava presente ?

.

R: Lembro-me de Melo Antunes, de Vítor Crespo e de Vítor Alves...

.

Antes de participar na revolução, apenas falei com dois militares, pois não podia estar a divulgar o que ia acontecer. Eles aconselharam-me: Se estiveres lá dentro, ainda “partes alguma loiça”. Se estiveres fora, não poderás fazer nada. Além desses, falei com o meu melhor amigo, Duarte Amancio Leal, que também foi da mesma opinião. Assim, tive que ir vestir a minha capa de cordeiro, durante uns tempos. Até teve muita piada, pois, na imprensa francesa, por exemplo, a certa altura chamavam-me Le maitre de la gauche au Portugal. Passados uns tempos já era La bette noir de la gauche au Portugal.

.

Falo quatro línguas estrangeiras: inglês, francês, espanhol, italiano e compreendo razoavelmente o alemão. Então, por essa razão e por falar desassombradamente, os jornalistas estrangeiros vinham muito ter comigo. Em certa ocasião, na Cova da Moura, ou já em Belém, julgo ter sido um mexicano que afirmou: Com esta abertura toda, até pode acontecer que Portugal venha a cair nas mãos dos comunistas. Qual será a sua atitude nessa altura?

.

A minha resposta foi: Continuo em Portugal e a servir o meu País o melhor que puder. Ele insistiu: Então aceita o comunismo?. Resposta: Sim, mas com duas condições. É que seja um comunismo nascido da fronteira para cá e que ganhe as eleições num sufrágio universal e livre. Nessa altura era considerado o homem da esquerda, de tal modo que até recebi uma carta de Fidel de Castro, trazida por uma equipa de televisão cubana. Foi quando servi de interlocutor para entregar o Capitão Peralta, anteriormente aprisonado na Guiné.

.

P: Houve uma troca com um elemento da CIA ?

.

R: Sim. Mas mais tarde; depois de termos entregue aquele militar aos cubanos.

.

P: Quando foi convidado para fazer parte da Junta de Salvação Nacional ?

.

R: Cerca de uma semana antes do 25 de Abril. Então fizeram-me a pergunta sobre se concordava que o outro elemento fosse o General Diogo Neto, tendo dado o meu pleno acordo.

.

Na própria noite de 25 de Abril, depois de um telefonema prévio, uma hora antes, mandaram dois oficiais, com um jeep, que me contactaram em nome do General Spínola. Um deles, terá sido o Major Geada... Ocorreram todas aquelas cenas, noticiadas na Comunicação Social, tendo sido eu a comunicar aos jornalistas que a Imprensa era completamente livre...

.

Na ex-PIDE/DGS e posse de Vasco Gonçalves

P: Quando tomou conta dos Serviços de Extinção da PIDE/DGS ?

.

R: Isso foi mais tarde. Quando se formou a JSN, já os comunistas tinham tomado posse do Serviço e dos arquivos. Ficaram lá bastantes elementos do PCP... Depois esteve o Rosa Coutinho, antes de ir para Angola.

.

P: Há quem diga que retirou fotocópias desse arquivo, para fazer pressão sobre os líderes comunistas...

.

R: Isso surgiu a propósito de uma entrevista que dei em 1975, sobre alegados documentos comprometedores, quando afirmei que quer tenha ou não, a minha resposta é não. Deixei-os na dúvida, por que ela me servia.

.

Entretanto as duas únicas pessoas, que se mantiveram ligadas à parte política, foram Rosa Coutinho e eu. Aos restantes membros da JSN foram atribuídas as competências definidas de Chefes de Estado Maior dos Ramos e o Costa Gomes, como CEMGFA.

.

P: Havia uma distinção entre as vossas competências ?

.

R: Não. Havia assuntos que até tratávamos em conjunto. Foi a pessoa com quem me entendi melhor, de início. Era um indivíduo inteligente. Quando fui à televisão ler a carta do Português Autêntico, em 27 de Maio (repetida no dia seguinte a pedido de muita gente), é que me apercebi das suas tendências esquerdistas. Rosa Coutinho disse-me: Como é que foi dizer aquelas coisas na televisão?. Aí, fiquei de pé atrás com ele.

.

P: Apercebeu-se dos graves atritos entre o General Spínola e a Comissão Coordenadora, nomeadamente em relação ao problema africano, ainda antes da queda do governo de Palma Carlos...

.

R: O General Spínola marginalizava-nos bastante, pois normalmente não tratava dos problemas em conjunto... Depois, nomeou Vasco Gonçalves, sem me consultar, nem aos Generais Diogo Neto e Silvino Silvério Marques. Quanto aos outros não sei..

.

Então ele dizia: Isto é para tratar a mordedura do cão com o pêlo do mesmo cão. Nós, agora vamos tramá-lo .Achei que aquilo ia dar para o torto, mas enfim...

.

Aquando da cerimónia de posse, Vasco Gonçalves até fez um discurso moderado e bem concebido. No final afirmei-lhe: Se cumprires o que disseste, podes contar comigo a 100%. Se for para entregar isto aos comunistas, levas um tiro nos cornos!. Agora veja o que sucedeu. Não me apercebera que estava a falar junto dos microfones e aquelas minhas palavras tinham sido difundidas por toda a sala do Palácio de Belém!

.

P: O que tem a referir sobre o sucedido com os arquivos da PIDE ?

.

R: Sobre a Comissão de Extinção posso dizer-lhe que antes de ser nomeado, nunca lá pus os pés. Já sabia o estado em que os arquivos se encontravam, todos devassados pelos comunistas. Aliás eu até sou alérgico às poeiras; fico logo com dores de cabeça.

.

P: Quem foi substituir nas funções de superintendência sobre a Comissão de Extinção?

.

R: Foi o Rosa Coutinho, entretanto nomeado para Angola. Aliás, a PIDE não podia ser julgada globalmente. Acredito que houvesse lá meia dúzia de patifes, mas a maior parte estava naquele serviço para ganhar o seu sustento. Depois apareciam-me as famílias, com as crianças...

.

Quando o Rosa Coutinho seguiu para Angola, em fins de Julho, ninguém queria pegar naquilo. Foi o Costa Gomes que me convidou. Tomei conta dessa Comissão cerca de duas semanas depois daquele oficial sair. Posso dizer que fui para lá, mais por razões humanitárias.

.

Mandei pôr as instalações mais controláveis, com cartões de identificação e fui visitar os arquivos. Fiquei espantado com aquela confusão...

.

P: Já faltavam processos de antigos oposicionistas ?

.

R: Confirmei a falta dos processos de Álvaro Cunhal, de Mário Soares e do General Costa Gomes... (2) Estive nessas funções apenas cerca de mês e meio, até ao 28 de Setembro.

.

Os problemas do Presidente e a descolonização

.

P: Qual foi o procedimento do General Spínola ao longo do período que antecedeu esses acontecimentos ?

.

R: Fui tendo muitas discordâncias com ele. Foi de cedência em cedência até que, no dia 29 de Setembro afirmou ir fazer um discurso e, depois, pediria a demissão. Afirmei-lhe: Se fizer esse discurso e apenas sair daqui a tiro, pode contar comigo até ao fim. Se se demitir, eu demito-me já. Como manteve aquela sua ideia, abandonei a sala.

.

P: Depois os Generais Diogo Neto e Jaime S. Marques também foram demitidos pela Comissão Coordenadora...

.

R: Sim. Mas quem tomou aquela atitude fui eu. A seguir, requeri por três vezes, às várias instâncias, sendo a última ao MFA, o regresso ao meu posto de coronel, sendo sempre indeferido.

.

Lembro-me que, a certa altura, apareci com o Otelo agarrado pelo pescoço, no gabinete do Presidente e disse-lhe: Aperto o resto ou quê? Resmungou, dizendo: Lá está você com esses exageros... Depois apareceu o Costa Gomes, que deu a volta completa ao General Spínola...

.

P: Como explica a relação entre os dois ?

.

R: No último livro, que escreveu, o País sem Rumo, o General Spínola atribuiu tudo ao Costa Gomes. Quando o publicou, eu disse-lhe: O seu livro resume-se ao seguinte: «Fui sempre bem intencionado. Mas não tenho culpa de ter nascido parvo». Assim mesmo!

.

P: Como já referi o problema surgido entre a Comissão Coordenadora e os homens do General Spínola foi, fundamentalmente devido à tentativa de resolução da questão africana. Apareceu aquela Lei 7/74, que o Freitas de Amaral terá redigido...

.

R: Em 1974 surgiram três ou quatro movimentos de direita e apenas sobreviveu um, que foi o CDS. Isso deixou-me desconfiado, pensando que o Freitas do Amaral estivesse subordinado a algo. Ele recusava que o CDS fosse uma partido de direita, mas posicionado rigorosamente ao centro. Ninguém percebeu o que isso era...

.

P: E o problema de África ?

.

R: Todos aceitávamos a independência. O que muitos de nós condenávamos era o processo que levou a essa independência... Freitas do Amaral também aceitou. E como jurisconsulto foi encarregado de justificar o mais possível...

.

Aceitaria aquele processo, se os termos fossem diferentes do que ele escreveu. A família dele era fraca. O pai já tinha sido corrido da Sacor e ele era um bocado catavento...

.

P: Em relação às negociações de Moçambique, para a independência, Melo Antunes terá marginalizado desse processo Mário Soares e Almeida Santos...

.

R: Mas os mais marginalizados foram o Diogo Neto, o Silvério Marques e eu. Por exemplo, nunca vi qualquer documento sobre os estatutos, que eles inventaram para esse período em Moçambique. Depois, viria a criticar esse processo de descolonização, no meu livro Coragem de Lutar. (3)

.

A manifestação da maioria silenciosa

P: Publicou outros livros?

.

R: O MFA Movimento Revolucionário, do qual foram vendidos 320.000 exemplares, apenas em pouco mais de um mês. Do Rumo à Dignidade venderam-se cerca de 85.000 exemplares. (4) Para mim, os mais significativos foram o Coragem de Lutar, organizado pelo jornalista Pintassilgo e o Continuar Portugal. Publiquei também o Tradição e Destino.

.

No Coragem de Lutar constam as minhas quatro intervenções violentíssimas feitas na Assembleia, visto que abandonaram Angola e Moçambique, com cerca de 700 presos nas prisões. Acabei por os trazer, para Portugal, através de organizações internacionais. Porque, cá, todos me atacaram, com uma excepção: o então Ministro de Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira.

.

No entanto, sobre a descolonização não tive qualquer interferência, nem nunca me mandaram ir a qualquer lado, à excepção do Brasil, para fazer o discurso do dia 10 de Junho.

.

P: Qual é a sua opinião sobre o Varela Gomes ?

.

R: Era totalmente afecto ao PCP. Entrara naquele golpe de Beja em 1961 e, quando fui para a Ilha Terceira, ele já lá estava deportado. Conhecemo-nos e talvez tenha sido um dos elementos influentes para me terem contactado antes do 25 de Abril. Quando uma vez me convidaram a ir a uma reunião do MFA, na Penha de França, eu zurzi-o fortemente...

.

P: Voltando ainda ao pré-28 de Setembro. Foi um dos promotores da manifestação da maioria silenciosa, juntamente com o Coronel Fernando Cavaleiro. Quem teve a ideia de a promover ?

.

R: A primeira notícia sobre essa manifestação foi-me dada pelo próprio Presidente, António de Spínola, que pediu para me encarregar disso. Depois apareceu o Coronel Cavaleiro, indicado pelo General Spínola. Na véspera, fiz um comunicado, com a ideia de ir à televisão transmiti-lo. Não me senti apoiado por ele e esse comunicado acabou por ser publicado apenas nos jornais, sendo um deles A Capital.

.

O meu argumento a favor da manifestação era este. Porque é que os partidos então em formação, não se fazendo ideia do que eles representavam, sem ainda ter havido eleições, nem estarem legalizados, podiam dizer tudo o que queriam e o povo anónimo, o principal interessado, não o podia fazer ?

.

P: Mas os principais partidos, como o PS e PPD, com maior implantação não apoiaram essa manifestação. Apenas o Partido Liberal e o do Progresso, com muito fraca base de apoio o fizeram...

.

R: Sim. Mas, se o povo queria falar, acho que o devia fazer...

.

P: Não haveria uma falta de apoio político a tal desiderato?

.

R: Se assim fosse, eles não teriam feito o que fizeram, com todo aquele boicote e as barricadas montadas nas estradas, para fazer face às concentrações, que se encontravam a realizar no Norte. E o que se pretendia era juntar aquela gente em Belém a dar apoio ao Presidente da República e nada mais...

.

Entrei naquilo, porque estava convencido que resultaria...

.

P: Os partidos, que referi, tomaram posição pública contra a manifestação ?

.

R: Sim. O PCP, o PS e o PPD, tendo o CDS abstido.

.

Dos interesses americanos a Jorge Jardim

.

P: Considera que haveria um entendimento entre soviéticos e americanos para que o 25 de Abril resultasse ?

.

R: Não haveria entendimento, mas uma aparente comunidade de interesses... De vez em quando aparecia cá a esquadra da NATO, para sossegar os europeus. Por duas vezes, esteve, em Portugal, o General Walthers, tendo eu sido o seu interlocutor. Falava português como nós. Sossegou um tanto os mais moderados, havendo aquele compromisso dos Açores, quando Nixon se encontrou com o General Spínola. Agora, que nos usaram como cobaias, para vacinar a Europa e o mundo contra o comunismo, não tenho dúvidas nenhumas...

.

P: Há anos, chegou a haver um julgamento contra o Estado e o Marechal Costa Gomes, pelo facto de ter sido passado um mandado de captura a Jorge Jardim, a seguir ao 25 de Abril ...

.

R: Era amigo de Jorge Jardim, desde os tempos de Moçambique e fiz-lhe um grande elogio no depoimento, apresentado por escrito, ao tribunal. Mas, na minha opinião, esses casos não se podem julgar pela Lei então em vigor. Isto porque, numa revolução vitoriosa, a Lei é a da revolução. Aliás, esta apenas tem razão quando ganha.

.

Além disso, a JSN era um órgão colegial. O que qualquer um fazia, responsabilizava todos. Tinha bastante autoridade para tomar esta posição, pois que, quando tudo ocorreu, até estava ausente em missão ao Brasil, no Dia de Portugal. Não sei o motivo porque foi passado o mandado de captura. Sei é que, antes de ser feito, Costa Gomes disse ao Diogo Neto, que avisou o Eng.º Jorge Jardim.

.

P: Considera que o Eng.º Jardim queria fazer um golpe, à rodesiana, em Moçambique?

.

R: Não. Para isso, chegaram a fazer-me um convite, que não aceitei. Depois, o MFA, talvez para se ver livre de mim, também quis nomear-me para lá, o que igualmente não concordei, pois considerava os interesses do meu País estarem acima dos de Moçambique.

.

Um outro convite feito durante a revolução, em 1975, foi para os Açores. A esse disse que aceitaria, se os comunistas tomassem o poder em Portugal. Nesse caso, seguia para lá e seria declarada a independência unilateral.

.

P: Mas o projecto de Jardim era o Programa de Lusaca, em que estavam envolvidos aqueles países limítrofes...

.

R: Sim, mas julgo que Costa Gomes não acreditava nisso...

.

Em relação à política externa, o grande mestre foi Salazar. Punha os pontos nos is a toda a gente, incluindo ao Presidente dos EUA. Um autor inglês dizia que Salazar era grande demais, para o País que governava. Um outro, da África do Sul, dizia-lhe: Sabe o que é que o há-de perder? O senhor é íntegro demais.

.

De facto, em termos de honestidade... Olhe, cheguei a ajudar duas irmãs, depois da sua morte, pois ficaram sem nada. O chão da sua casa era térreo, nem sequer tinha soalho... Recordo que Salazar era filho de um caseiro ...

.

Ligação ao Povo e no Hotel Sheraton...

.

P: No período inicial da revolução, o PPD também esteve bastante esquerdizado...

.

R: É preciso ver que qualquer pessoa, quando existem convulsões como a ocorrida, deve manter coerência do que era antes, com o depois. Quando fui à televisão ler a carta do Português Autêntico falei, por três vezes, em Deus. Num discurso, em condições normais, não ficaria bem referir-me à religião... Mas falei, porque ninguém o fazia. Naquela altura o santo adorado era Marx. Nem os padres ou os bispos tinham a coragem de sair à estacada. Eu fi-lo, com a intenção de provocar. Falei na televisão durante seis minutos e meio... Olhe! Possuo um arquivo de mais de 74.000 cartas e 200.000 telegramas, que recebi depois disso. Algumas delas com centenas ou milhares de assinaturas. Até penso escrever um livro sobre o seu conteúdo, com o título O livro que o Povo me escreveu...

.

Segundo José Blanco, então Chefe da Casa Civil do Presidente da República, 95% da correspondência, que chegava ao Palácio de Belém, era dirigida a mim...

.

P: Houve figuras públicas da revolução incoerentes com o seu passado?

.

R: Sim. Por exemplo, à semelhança de Humberto Delgado que fora Chefe do Estado Maior da Legião Portuguesa, também Costa Gomes ocupou esse cargo e o Otelo S. Carvalho, foi instrutor nessa organização. Claro que depois, se bandearam para o outro lado. São tipos que facilmente mudam de um lado para o outro...

.

Aliás Humberto Delgado era muito ambicioso. Era dos que afirmava que nunca se enganava e raras vezes tinha dúvidas. Já Salazar era muito mais modesto, quando dizia: deve-se estudar na dúvida e decidir na certeza. Também afirmava: A autoridade não se exerce, acontece. E nós militares, sabemos que a autoridade deve ser colaborante...

.

P: Foi esse tipo de autoridade, que fez com que o Jaime Neves conseguisse manter-se ao longo do processo revolucionário, à frente dos Comandos...

.

R: A linha de conduta ao longo da minha carreira militar teve como base o comando, segundo dois critérios. Um, o profissional, mantendo cada pessoa o seu lugar, na hierarquia. Outro, o humano, em contacto permanente com os subordinados...

.

P: Aquando daquela ocorrência no Hotel Sheraton, a 29 de Setembro, o que sucedeu ?

.

R: Tinha ido a um jantar com as equipas de hipismo estrangeiras. Então recebi um telefonema do COPCON a dizer que devia sair pelas traseiras, pois haveria uma grande manifestação contra mim. Disse-lhes que um general saía sempre pela porta principal.

.

Aliás, quando fui a esse jantar, já tinha ouvido o Rádio Clube a convocar a manifestação. Também sabia que estavam quatro generais convidados e, se não fosse, não estaria lá nenhum. Trazia uma granada na faixa (utilizada no meu casamento) e, aquando da saída, tirei a cavilha e coloquei-a na mão, pronta a lançar. Apareceu, então, um oficial da Polícia Militar, o Major Campos de Andrada, em quem não confiava. Por isso exigi que me levassem para os Comandos.

.

P: A sua esposa, Sibil, também lá se encontrava ?

.

R: Sim, mas ainda não tínhamos casado, pois conhecera-a em 16 desse mês de Setembro, na embaixada do México. Ela fora ao Sheraton, para servir de intérprete, à equipa alemã presente.

__________

NOTAS:

.

(1) Entrevista

.

Carlos Galvão de Melo nasceu em 4-8-1921. Depois do curso de Aeronáutica da Academia Militar, foi o n.º 1 num curso de de piloto de aviões de jacto nos EUA. Pilotou aviões F 84 e F 86 e, em 1958, criou a montou a Base Aérea de Monte Real.

.

Cumpriu uma comissão voluntária em Angola (1961-63), onde comandou a Base Aérea de Luanda. Demitiu-se da Força Aérea em 1966, por razões político-militares. Integrou a Junta de Salvação Nacional no 25 de Abril e foi demitido na sequência do 28 Setembro de 1974. Depois de ter sido deputado independente pelo CDS, durante cinco anos, foi candidato á Presidência da República em 1980. Estava na reforma quando foi entrevistado em 28-10-1996, em Cascais.

.

(2) Em relação ao Marechal Costa Gomes, José Pedro Castanheira e José Vegar, em artigo publicado no “Expresso” de 25-4-1997, pp 63, confirmam um enorme vazio, que é, porventura, a prova de que o arquivo não ficou intacto.

.

(3) Publicado em Outubro de 1976.

.

(4) O primeiro foi publicado em 1975, pela Portugália Editora e o segundo, em Março do mesmo ano, numa edição do autor. Além dos referidos “Continuar Portugal” e “Tradição e Destino”, lançou “Entrevistas”, em Abril de 1976 (Edição do autor).

.

Do P.Club: do Livro MEMÒRIAS da REVOLUÇÂO, da série Histórica; História Militar, de Autoria do Coronel Manuel Amaro Bernardo.

.

.

Fotografia da Guerra em Angola, capa do Notícias de Angola (autor - Fernando Farinha ?)

.

.

.

Sem comentários: