por Umberto Martins*
Estou convencido de que para melhor compreender os acontecimentos internacionais que se desenvolvem em nossa época e forjar uma consciência mais realista e avançada da situação do capitalismo internacional na atualidade é indispensável ler e/ou reler, mas com espírito crítico, os escritos do pensador e revolucionário russo Vladmir I. Lênin sobre o imperialismo, especialmente o famoso livro intitulado “Imperialismo, fase superior do capitalismo” e os “Cadernos...” em que fez suas anotações sobre o tema (1).
O livro foi escrito em 1916, enquanto o fogo da primeira guerra iluminava as terríveis contradições que habitam as entranhas do imperialismo. É verdade que muita água rolou na história desde então. Tivemos inclusive a 2ª Guerra Mundial. Embora o cenário que vivemos hoje não seja o mesmo, as concepções fundamentais expostas no opúsculo que Lênin classificou como ensaio popular permanecem válidas e têm grande utilidade na interpretação dos acontecimentos contemporâneos.
Fase do capitalismo
Uma questão elementar, porém polêmica, realçada por Lênin logo no título de sua obra é que o imperialismo é uma “fase superior” do capitalismo. Podemos defini-lo como um sistema de relações internacionais entre as nações, baseado na exploração colonial e neocolonial dos países mais pobres pelas potências capitalistas, configurado numa ordem internacional para a qual o capitalismo derivou impulsionado pelo processo histórico de concentração e centralização do capital, formação das grandes empresas e exportação de capitais.
Por conseqüência, o imperialismo constitui um sistema moderno de relações internacionais que não existiu por todo o sempre na história humana, nem mesmo é comum a todas as etapas do capitalismo. É substancialmente diferente dos impérios que antecederam a emergência das nações e do capitalismo na história, ainda que revele elementos comuns em relação a esses. A rigor, o imperialismo corresponde a uma determinada fase do capitalismo, iniciada no último quartel do século 19.
Filho da grande indústria
Nesta época, o sistema de livre concorrência entre empresas de pequeno e médio porte ou o capitalismo concorrencial cedeu lugar ao capitalismo monopolista, caracterizado pela organização de monopólios e oligopólios comandada pelos grandes capitalistas, cujas empresas se transformaram nas modernas transnacionais.
O imperialismo é, portanto, um filho legítimo da grande indústria, mais precisamente do casamento desta grande indústria com os bancos e a formação, conseqüente, do capital financeiro. Por esta razão, não é muito apropriado falar de imperialismo antes do século 19.
Dourando a pílula
Todavia, é preciso notar que esta e outras concepções leninistas sobre o imperialismo não constituem consenso entre os diferentes observadores que, por um motivo ou outro, se dedicam a analisar o tema. As idéias de Lênin só se tornaram hegemônicas no seio do marxismo com vocação revolucionária, porém desde sempre foram objeto de polêmicas apaixonadas e de muitos embates teóricos, inclusive no campo mais geral dos que se consideram marxistas, cabendo salientar as divergências com o teórico alemão Karl Kautsky (1854-1938), cuja concepção (revisionista) seria mais tarde rejuvenescida e apresentada com outra roupagem pelo intelectual norte-americano Michal Hardt e o italiano Antonio Negri no livro “Império” (2).
Kautsky concebeu uma espécie de super-imperialismo no qual as rivalidades entre as potências capitalistas, geradas pela concorrência entre as grandes empresas por mercado, foram diluídas e as contradições do sistema em tese poderiam ser resolvidas pacificamente. Estava dourando a pílula amarga do capitalismo e difundindo uma noção falsa que foi desmentida pela história, uma ilusão que deveria ter morrido com a 2ª Guerra Mundial, mas que sobreviveu por refletir os interesses das classes dominantes.
Paternidade negada
A controvérsia persiste porque o assunto naturalmente desperta paixões políticas e ideológicas e a visão sobre o tema tem um papel determinante nas estratégias políticas das forças que respaldam ou combatem o imperialismo. A ideologia burguesa certamente tem interesse em obscurecer o fato de que o imperialismo é o produto histórico final da expansão e da concorrência capitalista.
Afinal, é preciso negar a paternidade burguesa do monstro, que deu à luz as duas grandes guerras mundiais. Por isto, desde que se criou uma consciência social maior de seus efeitos, o fenômeno adquiriu uma conotação negativa (a partir do século 20) e a palavra imperialismo foi praticamente banida do pensamento dominante, o que não era o caso no final do século 19. O termo costuma ser prudentemente evitado pela mídia e negado de forma peremptória pelos intelectuais orgânicos do capitalismo, sendo utilizado apenas com referência à expansão política e militar dos Estados pré-capitalistas.
Especificidade ignorada
Ainda hoje, não é incomum encontrar divergências em relação à concepção leninista do imperialismo nos círculos de esquerda que se proclamam marxistas. Os economistas franceses Gérard Duménil e Dominique Lévy,, por exemplo, contestam a idéia de que o imperialismo é uma fase particular do capitalismo. Argumentam que o capitalismo viveu diferentes fases em sua história, razão pela qual não se deveria falar numa fase ou numa etapa particular ou especial, acrescentando que a internacionalização do capital já se processava bem antes do que Lênin cogitara. O imperialismo, de acordo com tal pensamento, seria pelo menos tão velho quanto o próprio capitalismo (3).
Tais autores não conseguem enxergar e compreender o que é fundamental, a especificidade das relações imperialistas, que pressupõem a existência da grande empresa moderna. Esta não existia na época do capitalismo concorrencial, a não ser como exceção (como foi o caso da Companhia das Índias), muito menos na época do império romano.
Origem da palavra
Evidentemente não é de bom tom confundir imperialismo com o regime dos antigos imperadores, pois uma coisa nada ou quase nada tem a ver com a outra. A este respeito é bom consultar o livro em que o historiador inglês Eric J. Hobsbawm analisa a formação do moderno imperialismo. Entre outras coisas, ele esclarece que a própria “palavra ´imperialismo´ passou a fazer parte do vocabulário político e jornalístico nos anos 1890, no decorrer da discussão sobre as conquistas coloniais. Ademais, foi então que adquiriu a dimensão econômica que, como conceito, nunca mais perdeu (4).”
“Eis porque”, continua, “são inúteis as referências às antigas formas de expansão política e militar em que o termo é baseado. Os imperadores e impérios eram antigos, mas o imperialismo era novíssimo. A palavra (que não figura na obra de Karl Marx, falecido em 1883) foi introduzida na política da Grã-Bretanha nos anos 1870 e ainda era considerado neologismo no fim da década. Sua explosão no uso geral data de 1890.”
Sejamos mais críticos
Sem entender esta singularidade, que desde a publicação do “Imperialismo...” de Lênin esteve no centro dos debates sobre o tema entre marxistas e não marxistas, conforme notou o historiador inglês, não estaremos em condições de compreender o lugar do imperialismo ou do capitalismo de nossa época na história, muito menos de perceber as características fundamentais das contradições que agitam a economia internacional e orientam a geopolítica desses nossos dias.
O livro escrito em 1986 pelo historiador anglo-americano Paul Kennedy sobre o tema deve ser lido e talvez relido, mas também com espírito crítico. Ao lado de contribuições analíticas e informações relevantes, Kennedy também peca ao desprezar a singularidade capitalista do imperialismo e atribuir a decadência dos EUA a um fator comum na história dos antigos impérios, a hipertrofia militar que acompanha a “excessiva extensão imperial”. Não é possível concordar totalmente com suas conclusões e manter uma perspectiva marxista (5).
Estudemos Lênin
A decadência dos Estados Unidos, como da Inglaterra no passado, não se deve só nem principalmente aos gastos militares excessivos (embora estes tenham lá sua importância), mas à ação combinada de duas leis imanentes do imperialismo, notadas por Lênin e antes dele pelo economista inglês John A. Hobson: o parasitismo e o desenvolvimento desigual das nações, cuja expressão mais admirável, hoje, é a ascensão da China, entrelaçada com o declínio americano.
Não é o caso, neste artigo, de tratar mais pormenorizadamente deste assunto. Para finalizar, cabe assinalar que entender as concepções leninistas sobre o imperialismo exige mais do que uma leitura superficial de suas obras e é uma condição necessária para abordar de um ponto de vista crítico e revolucionário os acontecimentos em curso no mundo, além de ser um requisito elementar na formação de uma consciência socialista e comunista. Por isto, caros leitores e leitoras é recomendável (sobretudo aos novos comunistas) que estudem Lênin.
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Notas
1- O livro de Lênin, publicado por várias editoras, pode ser encontrado em “V.I. Lenine obras escolhidas”, volume 1, da editora Alfa Omega. Já os “Cadernos sobre o imperialismo” foram incluídos pela antiga Editora Progresso (soviética) na coleção “Lenin obras completas” (é o tomo 28 da versão espanhola)
2- O livro de Michael Hardt e Antonio Negri sustenta que o velho imperialismo acabou, dando lugar a um extravagante e impreciso “Império”, que na verdade não passa de uma versão atualizada do “super-imperialismo” de Kautsky. “Império” foi publicado no Brasil pela editora Record
3- No texto intitulado “O imperialismo estadunidense está em crise?”, cuja leitura é muito útil para compreender a decadência americana, os dois pesquisadores franceses expõem suas discordâncias com Lênin nos seguintes termos: “Se Lênin traçou, no Imperialismo, fase superior do capitalismo, um quadro que apanhava a realidade do capitalismo no início do século XX, não damos o mesmo conteúdo ao termo imperialismo. Parece-nos mais justo fazer do imperialismo uma característica geral e permanente do capitalismo. Desde as suas origens mais recuadas e ainda embrionárias (pode-se pensar na liga hanseática), o capitalismo procura os lucros fora das suas metrópoles, com a avidez que lhe é própria.” O artigo foi publicado em agosto de 2005 pelo sítio www.resistir.info
4- A citação de Hobsbawm foi extraída da 2º edição do livro “A era dos impérios 1875-1914”, publicado pela “Paz e Terra”, com tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo (página 92). Nas páginas 93 e 94, o autor sustenta o seguinte raciocínio: “o cerne da análise leninista (que se baseava abertamente em vários autores da época, tanto marxianos como não marxianos) era que as raízes econômicas do novo imperialismo residiam numa nova etapa específica de capitalismo que, entre outras coisas, levava à ´divisão territorial do mundo entre as grandes potências capitalistas´, configurando um conjunto de colônias formais e informais e de esferas de influência. As rivalidades entre as potências capitalistas que levaram a essa divisão também geraram a Primeira Guerra Mundial (...) O ponto a observar é apenas que os analistas não-marxistas do imperialismo tenderam a argüir o oposto do que o marxismo dizia, obscurecendo assim o tema. Tenderam a negar qualquer conexão entre o imperialismo do fim do século 19 e do século 20 com o capitalismo em geral, ou com sua etapa particular que, como vimos, parecia emergir no final do século 19. Negaram que o imperialismo tivesse raízes econômicas, que beneficiasse economicamente os países imperiais e, menos ainda, que a exploração das zonas atrasadas fosse, de alguma forma, essencial ao capitalismo, e que seus efeitos nas economias coloniais fossem negativas.” Parece que o debate e o anti-leninismo realmente continuam vivos nos dias de hoje, ativos ou latentes, embora às vezes manifeste-se como um ato falho do inconsciente, o que parece meio bizarro.
5- O livro de Paul Kennedy (publicado no Brasil com o título “Ascensão e queda das grandes potências”, pela Editora Campus) não se baseia numa concepção marxista e constitui, sob alguns aspectos, um passo atrás em relação às idéias de Lênin. Nem mesmo menciona, por exemplo, o fenômeno do parasitismo, indispensável para uma compreensão mais qualificada da decadência americana. Também contém um outro equívoco muito comum, embora mais sutil, que é o de restringir o desenvolvimento desigual das nações às taxas desiguais de crescimento dos PIBs. É necessário considerar outros fatores além do PIB para compreender a dialética do desenvolvimento desigual, que no fundo está subordinada à exportação de capitais. Uma potência pode estar em decadência mesmo quando exibe taxas de crescimento relativamente mais altas que suas rivais, como ocorreu com os EUA em relação ao Japão e à Alemanha nos anos 1990, quando Tio Sam, enquanto estimulava a bolha das comunicações, consolidou a condição de maior devedor do mundo.
*Umberto Martins, Jornalista, membro da Secretaria Sindical Nacional do PCdoB.
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in Vermelho - 15 DE ABRIL DE 2008 - 19h58
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