A esperança e a revolta
A nossa missão civilizadora em África e o modo como os negros das colónias sentiam essa dádiva civilizacional, está ficcionada de maneira expressiva e brutal no romance Autópsia de Um Mar de Ruínas, de João de Melo, na forma como uma mulher negra reage contra os colonizadores ao imaginar a independência sonhada: Quando vier o dia da independência, o sol vai ser branco ainda, é certo; mas não terá de esconder a cara, não vai mais estremecer no chão com vergonha dos pontapés e dos chicotes destes brancos: será de certeza um outro sol de verdade na hora da nossa libertação. Os brancos virão a rastejar p’las covas, sô Valentim, esse polícia sacana, terá de fugir muito, muito, muito, mas fugir para onde, se não tem mais terra nem lugar no mundo para ele? No mesmo registo de esperança redentora sem, no entanto, conter a componente da vingança (que de resto só existe no imaginário auto flagelador de certos autores portugueses comportando-se estes, em virulência de propósitos – felizmente que só nas palavras – como audazes justiceiros) encontra-se no poema Sonho da Mãe Negra, do poeta moçambicano Kalungano (pseudónimo literário de Marcelino dos Santos, um dos chefes políticos da Frelimo) – Mãe negra/Embala o seu filho/E esquece/que o milho já a terra secou/Que o amendoim ontem acabou/Ela sonha sonhos maravilhosos/Onde o seu filho iria à escola/À escola onde estudam os homens/Mãe negra/Embala o seu filho/E escutando/A voz que vem de longe/Trazida pelos ventos/Ela sonha mundos maravilhosos/Onde o seu filho poderá viver.
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As raízes da revolta nas colónias, traduzida nas vozes de poetas angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos (divulgada, sobretudo, através das edições policopiadas da Casa dos Estudantes do Império), não se esgotam, naturalmente, nas três colónias onde a guerra eclodiu. Noutras colónias, consideradas paraísos tropicais de paz e harmonia interétnica, igualmente a nossa marca civilizadora não deixou de se manifestar acutilante, contrariando a tese de que as estruturas repressivas do salazarismo, versão colonial, seriam mais intimidantes do que activas.
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Sobre S. Tomé penso que pouco se escreveu. São raros os autores do arquipélago, a guerra de libertação foi inexistente, as raras manifestações de descontentamento dos autóctones foram prontamente reprimidas pela máquina colonial. Sobre a inventona de Batepá, aparte alguns textos saídos na revista História, da autoria de Gerhard Seiberg e no Diário de Notícias, da autoria de Carlos Pacheco, quase nada se sabe. A mitologia colonial conseguiu criar uma espécie de utopia negativa que ainda hoje persiste (e as diversas intervenções verificadas nos dois Congressos Sobre a Guerra Colonial já realizados, têm provado que a mistificação e branqueamento da nossa administração colonial continuam activas) e serve de tampão ideológico utilizado, subtilmente, pelas forças conservadoras, objectivamente impedindo que a verdade seja divulgada em toda a sua dimensão, encobrindo os culpados, nomes e condutas assassinas de alguns dos mais altos serventuários do Estado Novo.
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Da poesia e ficção produzida por autores nascidos em S. Tomé, no período que medeia entre 1953 e a descolonização, conhecemos A Ilha de Porto Santo, de Francisco José Tenreiro, poemas de Alda do Espírito Santo – que justamente testemunham os massacres de Batepá – alguns poemas transcritos na antologia de poesia africana de expressão portuguesa organizada por Mário de Andrade, e pouco mais. Não queria deixar de referir um dos textos mais belos e singulares da literatura portuguesa contemporânea, romance premonitório pelo qual perpassam alguns dos traços principais da nossa má consciência colonial – refiro-me ao A Nau de Quixibá, de Alexandre Pinheiro Torres, autor que aí viveu o período breve de umas férias durante a adolescência. Nesse texto o autor anuncia já, apesar da acção se passar em 1939, os sintomas de mal estar social, a revolta surda que haveriam de conduzir à génese da inventona de Batepá, ou de Mata, Pá!, na versão feliz do escritor Sum Marky.
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Claro que falar das atrocidades do colonialismo português quando algumas forças conservadoras tentam, com cínico impudor, manipular a trocados as consciências de alguns dos nossos forçados combatentes que participaram, ao longo de 13 anos, nas três frentes de guerra (também eles vítimas desamparadas e descartáveis do colonialismo) e quando os tempos parecem de feição ao retorno de práticas maccartistas, dilatórias e opressoras que estiveram na origem das mesmas, ainda deixa marcas nas invisíveis feridas que o processo abriu.
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As raízes da revolta nas colónias, traduzida nas vozes de poetas angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos (divulgada, sobretudo, através das edições policopiadas da Casa dos Estudantes do Império), não se esgotam, naturalmente, nas três colónias onde a guerra eclodiu. Noutras colónias, consideradas paraísos tropicais de paz e harmonia interétnica, igualmente a nossa marca civilizadora não deixou de se manifestar acutilante, contrariando a tese de que as estruturas repressivas do salazarismo, versão colonial, seriam mais intimidantes do que activas.
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Sobre S. Tomé penso que pouco se escreveu. São raros os autores do arquipélago, a guerra de libertação foi inexistente, as raras manifestações de descontentamento dos autóctones foram prontamente reprimidas pela máquina colonial. Sobre a inventona de Batepá, aparte alguns textos saídos na revista História, da autoria de Gerhard Seiberg e no Diário de Notícias, da autoria de Carlos Pacheco, quase nada se sabe. A mitologia colonial conseguiu criar uma espécie de utopia negativa que ainda hoje persiste (e as diversas intervenções verificadas nos dois Congressos Sobre a Guerra Colonial já realizados, têm provado que a mistificação e branqueamento da nossa administração colonial continuam activas) e serve de tampão ideológico utilizado, subtilmente, pelas forças conservadoras, objectivamente impedindo que a verdade seja divulgada em toda a sua dimensão, encobrindo os culpados, nomes e condutas assassinas de alguns dos mais altos serventuários do Estado Novo.
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Da poesia e ficção produzida por autores nascidos em S. Tomé, no período que medeia entre 1953 e a descolonização, conhecemos A Ilha de Porto Santo, de Francisco José Tenreiro, poemas de Alda do Espírito Santo – que justamente testemunham os massacres de Batepá – alguns poemas transcritos na antologia de poesia africana de expressão portuguesa organizada por Mário de Andrade, e pouco mais. Não queria deixar de referir um dos textos mais belos e singulares da literatura portuguesa contemporânea, romance premonitório pelo qual perpassam alguns dos traços principais da nossa má consciência colonial – refiro-me ao A Nau de Quixibá, de Alexandre Pinheiro Torres, autor que aí viveu o período breve de umas férias durante a adolescência. Nesse texto o autor anuncia já, apesar da acção se passar em 1939, os sintomas de mal estar social, a revolta surda que haveriam de conduzir à génese da inventona de Batepá, ou de Mata, Pá!, na versão feliz do escritor Sum Marky.
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Claro que falar das atrocidades do colonialismo português quando algumas forças conservadoras tentam, com cínico impudor, manipular a trocados as consciências de alguns dos nossos forçados combatentes que participaram, ao longo de 13 anos, nas três frentes de guerra (também eles vítimas desamparadas e descartáveis do colonialismo) e quando os tempos parecem de feição ao retorno de práticas maccartistas, dilatórias e opressoras que estiveram na origem das mesmas, ainda deixa marcas nas invisíveis feridas que o processo abriu.
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Bibliografia: "A Guerra e a Literatura", de Rui de Azevedo Teixeira –Veja
- "Resistência África" - Antologia poética - Org. Serafim Ferreira – Diabril
- Revista História
- Documentos da Fundação Portugal-África - Un. De Aveiro
- Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo - Círculo de Leitores
in Avante 2003.o3.20
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