quinta-feira, 27 de março de 2008

Cultura periférica: as festas deles e as nossas




Num texto preconceituoso, jornal de São Paulo "denuncia" agito na periferia e revela: para parte da elite, papel dos pobres é trabalhar pesado. Duas festas são, no feriado, opção para quem quer celebrar direito de todos ao ócio, à cultura, à criação e aos prazeres da mente e do corpo.


por Eleilson Leite*


Na sexta-feira passada, dia 14 de março, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estampou, em manchete de primeira página: “Funk do tráfico invade escola”. A matéria abordava a realização de uma festa de rua no Parque Primavera, periferia da Zona Sul de São Paulo. Na foto, jovens, quase todos negros, divertiam-se ao som do funk estilo carioca, conhecido como pancadão. Na página interna, o título da matéria dava mais detalhes: “Garotada dança, bebe, usa drogas e transa na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental)”. De acordo com o relato da jornalista Marici Capitelli, que freqüentou o baile de rua por duas sextas-feiras, passando-se por funkeira, a escola — EMEF Isabel Vieira Ferreira — está instalada na esquina onde se realiza a balada.
Seu portão fica aberto e a galera entra no local para, na penumbra da quadra, usar drogas e cutir “namoros apimentados”. Tudo isso patrocinado, segundo a matéria, pelos grupos de traficantes organizados das favelas das imediações. A notícia repercutiu. O diretor da escola foi pressionado, autoridades se mexeram e providências foram tomadas. O próprio prefeito encarregou- se de botar cadeado no portão da EMEF e a PM prometeu acabar com a festa, mantendo um policiamento ostensivo na região, sobretudo no dia e horário da balada.
Fiquei muito perplexo com o tratamento dado ao fato pelo jornal. Passei os últimos dias refletindo sobre o tema, buscando entender por que esse tipo de abordagem. Sim, estamos cansados de saber que os veículos da grande imprensa são a voz das elites endinheiradas e constituem-se como o 4º Poder. Mas nem tudo é absoluto, e a imprensa tem exercido, também, um importante papel para a manutenção da democracia. Às vezes, coloca-se ao lado da maioria, principalmente quando há um esforço dos jornalistas para exercer sua profissão com dignidade e buscar a verdade dos fatos.
Certamente, a repórter foi ao Jardim Primavera com a melhor das intenções e fez uma matéria que pretende ter a virtude da denúncia (o tráfico, os jovens envolvidos com bebidas e drogas, uma escola mal-cuidada etc). Mas o enfoque sensacionalista e a conseqüente reação das autoridades só acabaram por piorar as coisas. Os três mil jovens, que tinham na festa às sextas-feiras sua única oportunidade de diversão, perderam a balada. A escola que, aberta à comunidade, cumpria muitas outras funções além de servir de refúgio para a rapaziada na madrugada, acabou sendo fechada. O funk carioca, que vem ganhando espaço na periferia de São Paulo, novamente foi tratado com preconceito e desprezo. E o crime organizado local ficará sob tensão constante com o policiamento, acendendo um pavio que pode causar uma grande explosão. Resultado: revolta, ódio, violência e frustração.
Se a própria rua, que serve de pista para seus embalos de sexta-feira à noite, lhes é retirada, o que vão fazer? E se esses jovens viessem “invadir” a balada do Mackenzie?
A questão, caro leitor, é que festa de pobre na periferia é tratada como caso de polícia. Quando o público é de classe média e de bairros centrais, o tratamento é outro. Vou contar um caso que evidencia isso. Tem uma balada que rola toda sexta-feira à noite (às vezes de dia também) nas imediações da Universidade Mackenzie, no centro da cidade. Reúne centenas de estudantes. O pessoal ocupa duas esquinas, obstrui ruas e incomoda os vizinhos. A trilha sonora é variada: rock, MPB, samba, axé e, até mesmo, o Pancadão, dependo do estado de embriaguez. Os jovens universitários consomem muita bebida alcoólica e usam drogas à vontade. Na hora de fazer sexo, o chamego rola dentro de seus carros de vidros escuros, estacionados no local. A polícia quando vai lá, segundo testemunhas, é para retirar do recinto sujeitos maltrapilhos, pouco condizentes com o perfil social dos freqüentadores. E na Periferia? Ah, polícia na quebrada não tem meio termo. Chega para acabar com a alegria da rapaziada que se diverte na rua.
Os jovens universitários do Mackenzie estão se divertindo. E têm mais é que curtir o fim de uma semana de estudo e, para muitos deles, de trabalho. Esse direito nunca lhes foi negado e devem continuar exercendo-o, sem desrespeitar a coletividade. Mas estou do lado dos que foram historicamente desfavorecidos, e que se amontoaram nas bordas da cidade. Por que essas pessoas também não podem se divertir na rua? No Parque Primavera não existem equipamentos públicos de lazer, nem praças, como relata a própria reportagem do JT. Será que não resta outro destino ao povo preto e pobre da periferia, senão a condenação irremediável ao desencanto? Se a própria rua, que serve de pista para seus embalos de sexta-feira à noite, lhes é retirada, o que vão fazer? E se esses jovens viessem “invadir” a balada do Mackenzie? A rua é deles tanto quanto dos universitários. Será que a PM viria retirá-los, estando eles aos montes?
O dramaturgo e poeta alemão, Bertold Brecht, falava o seguinte: “Dizem violentas, as águas do rio, mas não dizem violentas, as margens que o comprimem”. Essa analogia do rio de margens comprimidas é perfeita para pensar o processo de amontoamento das pessoas nos fundões da periferia. Nesses mais de 500 anos de história do Brasil, a violência contra os pobres foi, muitas vezes, justificada pelo incômodo que a própria existência dessa gente causa aos ricos que sempre estiveram no poder.
O Racionais MC’s em seu belíssimo DVD 1000 trutas, 1000 tretas, traz um documentário que mostra como os negros foram expurgados do centro e empurrados para a periferia, em São Paulo. No vídeo, Mano Brown lê um texto retirado de relatório assinado por Whashington Luiz, em 1919. O então secretário de Segurança, depois governador de São Paulo e presidente da República falava o seguinte, referindo-se aos negros e miscigenados que ficavam na Várzea do Carmo, atual Parque Dom Pedro: “É aí que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação, se reúne e dorme e se encachoa, à noite, à vasa da Cidade, numa promiscuidade composta de negros edemaciados pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, todos perigosos. É aí que se cometem atentados que a decência manda calar, é para aí que se atraem jovens estouvados e velhos concupiscentes para matar e roubar como nos dão notícia os canais judiciários, com grave dano à moral e para a segurança individual, não obstante a solicitude e a vigilância de nossa polícia. Era aí que quando a polícia fazia o expurgo da cidade, encontrava a mais farta colheita”.
Leiam as matérias no JT sobre o baile funk do Parque Primavera e comparem com o texto acima. Verão que as coisas não mudaram muito. A criminalização da pobreza está enraizada na sociedade brasileira. Senhores e senhoras jornalistas, editores, donos de jornal, autoridades policiais, judiciárias e administrativas, dêem a devida atenção à periferia. Percebam a complexidade da dinâmica social do subúrbio. Não atribuam ao tráfico tudo que rola nas quebradas para, com este argumento, justificar atos de repressão. Não façam da indevida utilização de uma escola motivo para fechá-la à comunidade. Deixem os jovens da periferia se divertir como podem os universitários do Mackenzie. Não tirem dos pobres o pouco que têm. Não desprezem o funk. Boa parte da elite já entendeu o rap. Tá na hora de sacar o pancadão. É música feita e apreciada pelo pessoal da favela. Só por isso, merece consideração. Não precisa gostar. Mas, por favor, vamos respeitar. Deixem a galera curtir sua balada no Parque Primavera e por toda a periferia.
E festa nas quebradas é o que não falta. Temos duas excelentes opções noticiadas na Agenda Cultural da Periferia para o final de semana prolongado da Páscoa. A Festa Umoja vai agitar a Zona Sul no sábado. O evento reúne exposições, dança, culinária, teatro, poesia e muita música. Além do grupo Umoja, vão se apresentar o DJ Maurício Alves, Band’ Doido e Fabiana Cozza, entre outras atrações. No domingo, rola o Samba na Ponte, lá na Ponte do Socorro, também na Zona Sul. É uma grande festa das rodas de samba de São Paulo. Terá o ritual de batismo no samba e contará com a presença de bambas de todas as partes. É animação e lazer garantidos. Paz, amor e liberdade. É isso que se quer na periferia. Parodiando o Moraes Moreira: “ Nas trincheiras da periferia, o que explodia era o amor…”
Serviço:


Festa Umoja
Sacolão das Artes – Av. Cândido José Xavier, 577 – Parque Santo Antonio
Dia 22 de março, sábado, a partir das 18h, Grátis
Contato: 5891 2564 / www.institutoumoja.blogspot.com


Samba da Ponte
Rua Eloi Chaves s/n, Socorro (ao lado da ponte do Socorro, sentido Santo Amaro)
Dia 23 de março, domingo a partir das 14h – Grátis
Contato: 8636-2209 e 7724-2159

*Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde, onde este artigo foi originalmente publiado.
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in VERMELHO 22 DE MARÇO DE 2008 - 13h53
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1 comentário:

Wagner disse...

Achei muito interessante este texto. Estudo e moro há muito tempo na periferia e sei perfeitamente o que nos separa do outro lado da cidade. Já a respeito do Funk eu fico receoso com o que vi uma vez que se trata de uma clivagem assaz complexa da arte. O que parece é que Chico e Caetano é o que a classe pequeno burguesa pode ouvir e Tati Kebra Barraco é o que o povo da periferia deve ouvir. Imagino que um diálogo cultural no aspecto da música seja muito mais enriquecedor! Abraços. Este blog é incrível!