domingo, 30 de março de 2008

João Paulo II - A cruz, a foice e o martelo




A pá da cal: "Seria simplista dizer que a Providência Divina causou a queda do comunismo", disse João Paulo II. "Ele caiu por si mesmo devido a suas próprias fraquezas internas"
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Como o Vaticano abraçou o capitalismo
americano para derrubar o modelo de
gestão comunista do leste Europeu

Por fábio altman

Castel Gandolfo, casa de campo do Vaticano, 17 de agosto de 1980, um domingo. Véspera do dia de Assunção, o ferragosto, o feriado mais sagrado do verão na Itália. Em companhia de seu secretário particular, Stanislaw Dziwisz, e da irmã Zofia Zdybicka, João Paulo II acompanha o telejornal noturno da RAI. A greve no estaleiro Lênin, em Gdansk, liderada por Lech Walesa, um eletricista desempregado e de amplos bigodes, está a todo vapor. A câmera mostra os homens de braços cruzados. Exibe o logotipo do sindicato Solidariedade e Walesa em cima de uma empilhadeira. Lentamente vira-se para a entrada de número 2. Do lado de uma imagem da Madona Negra de Czestochowa há um retrato de Karol Wojtyla com o solidéu branco. A irmã vira-se para o pontífice: “Isso é uma lição para o mundo todo”, disse Zofia. “Olhe para a contradição, os trabalhadores estão contra o comunismo”. A resposta veio com um aceno positivo de cabeça e um comentário repetido três vezes pelo papa. “Só que o mundo não entende nada, o mundo não percebe.” Esse breve comentário talvez tenha sido o único erro de avaliação de João Paulo II no início do seu mandato. O mundo percebia, sim. O comunismo começava a morrer nos canteiros navais de Gdansk – daria seu derradeiro suspiro nove anos mais tarde, com a queda do Muro de Berlim, e a queda de Mikhail Gorbatchov na hoje extinta União Soviética.

Cuba de Che Guevara: Na visita a Cuba, em 1994, ele condenou os abusos do capitalismo selvagem e ressaltou as sementes plantadas pelo marxismo. Foi a celebração de uma vitória

O retrato de João Paulo colado na entrada do estaleiro era o indício de que a visita que ele fizera à Polônia no ano anterior, em 1979, plantara a revolta contra o regime aliado da URSS. A fotografia alimentara o grito dos poloneses tal qual o rosto triste de Che Guevara movera uma geração no final dos anos 60 e início dos 70. O papa, evidentemente, não derrubou o governo polonês sozinho. Era o que faltava, e não era pouco, para expor uma crise econômica mortal. A dívida externa explodia. A escassez deixou milhões de pessoas sem carvão para aquecer suas casas. O governo apelava para o congelamento de salários e aumento de preços. A economia planificada fracassava ao ritmo de greves. “A viagem de Karol Wojtyla em 1979 foi a semente que nos levou a prosseguir a paralisação”, diz Jerzy Waszczuk, ex-dirigente do Solidariedade. Dali para frente, ao longo de uma década, as peças do dominó marxista na Europa do Leste cairiam uma a uma: Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Alemanha Oriental e URSS. Gorbatchov diria, anos depois do fim do regime, que “sem João Paulo II possivelmente tudo seria mais lento”. O próprio papa definiu a virada revolucionária ao escritor italiano Vittorio Messori. “Seria simplista dizer que a Providência Divina causou a queda do comunismo. Ele caiu por si mesmo em conseqüência de seus próprios erros e abusos. Ele caiu por si mesmo devido a suas próprias fraquezas internas.”

Daniel Wainstein
O amigo capitalista: A parceria com os EUA de Ronald Reagan ajudou a acelerar as mudanças no Leste Europeu. A começar pela Polônia, em dez anos as peças do dominó soviético cairiam definitivamente

Faltou reconhecer, no entanto, um outro auxílio
crucial, quase secreto: o da CIA, a agência central de inteligência dos EUA. Sabe-se hoje, graças ao livro de Carl Bernstein e Marco Politi, Sua Santidade João Paulo II e a história oculta de nosso tempo, que o Vaticano de Karol Wojtyla e a Casa Branca de Ronald Reagan firmaram uma aliança. Em Washington, o núncio papal conversava com William Casey, diretor da CIA, e com William Clark, assessor de Segurança Nacional. Conversavam sobre a Polônia. Dessas conversas brotaram consenso sobre a ajuda de US$ 50 milhões da entidade americana ao Solidariedade para publicações e mensagens na televisão – tudo com o conhecimento e aval da Cúria Romana. O embaixador reformado Vernon Walters era enviado a Roma a cada seis meses para discutir assuntos de interesse comum dos EUA com o Vaticano. A Igreja Católica lutara contra o marxismo desde a época de
Karl Marx. Não havia, portanto, nenhuma novidade histórica em relação ao dogma religioso – o inédito era a parceria com os Estados Unidos.

O amigo socialista: O encontro do papa com Fidel Castro em Havana, diante de 1 milhão de pessoas, produ-ziu bons frutos para ambos os lados. Foi um sinal de abertura em Cuba e de conquista pessoal para o pontífice
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De mãos dadas com Reagan, personagem crucial dos anos 80, João Paulo II selou uma vitória – mesmo que ele próprio nunca a tenha tratado dessa forma. Em 1993, ao visitar Riga, na Letônia, o papa recorreu a uma de suas armas, a fina ironia, para celebrar o trunfo socioeconômico e ao mesmo tempo lamentar os estragos produzidos pela derrocada do comunismo. “A exploração produzida pelo capitalismo desumano era um mal real e esse é o grão de verdade do marxismo”, disse. ”Essas sementes não devem ser destruídas, não devem ser carregadas pelo vento.” João Paulo II reproduziria essa mesma observação diante de um milhão de cubanos e de Fidel Castro, em Cuba, na visita de 1998. A observá-lo, o imenso painel com o rosto de Che Guevara. O papa polonês morreu recompensado com o fim do comunismo, mas preocupado com o avanço do que ele definira, um pouco antes, como “lumpenkapitalismus”, uma espécie selvagem e miserável de capitalismo, uma luta do homem contra o homem.


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http://www.terra.com.br/istoedinheiro/especiais/papa/tesouros_vaticano.htm
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Daniel Wainstein
Martírio: Nos derradeiros anos de vida, as imagens do sofrimento, acompanhadas em todo o planeta, alimentaram a figura do mártir católico a desafiar as desigualdes sociais
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João Paulo II

Karol Wojtyla ajudou a mudar a
história econômica do mundo
como um dos personagens
centrais na queda do comunismo

Por fábio altman

Nunca houve, em 2 mil anos de catolicismo, um pontificado tão intimamente ligado às mudanças econômicas do mundo. Os 25 anos de João Paulo II à frente do Vaticano – terceiro maior período de um pontífice no comando da Santa Sé – entrarão para a história colados a uma revolução: a derrota do comunismo diante do capitalismo. Karol Wojtyla, o papa polonês, o primeiro não italiano em 455 anos a ocupar o trono que fora do apóstolo Pedro, aparecerá nas enciclopédias como um dos responsáveis pela queda do Muro de Berlim, em 1989, a construção de pedra que dividia o planeta entre os defensores de Karl Marx e os adeptos de Adam Smith. Numa aliança com os EUA de Ronald Reagan, João Paulo II acelerou o desmantelamento da foice e do martelo. Amparado na cruz, alimentou as greves do polonês Solidariedade, o fisiológico sindicato de trabalhadores de Lech Walesa, no final dos anos 1970. Às vésperas da queda do muro, seu encontro com Mikhail Gorbatchov, o mandachuva da União Soviética, selou de vez o fim de uma era. “A principal característica da primeira década do reinado do papa foi sua luta contra a ditadura, a comunista, em particular”, diz Adam Michnik, também polonês, editor-chefe do diário Gazeta Wyborcza. Michnik foi um dos criadores do Solidariedade, o intelectual a ampará-lo. Naquele tempo, o homem certo na hora certa, Wojtyla atraía multidões. Transformou-se na personalidade mais popular do planeta. Chegou a reunir 4 milhões de pessoas em Manilha, nas Filipinas, em uma de suas missas.

Daniel Wainstein
O mundo é uma ilha: Ele sabia viver o tempo da comunicação de massa. "Foi o primeiro papa da mídia", diz o cardeal italiano Achille Silvestrini. "Ele percebeu a dimensão global de nossa era e tratou de cultivá-la".

Na segunda etapa de seu mandato, contudo, deu-se o vácuo comum aos vitoriosos. O Vaticano já não tinha inimigo político, demolira um regime econômico. Mas defrontou-se, em seguida, com um dilema: como difundir suas idéias evangélicas? Como segurar o rebanho, afeito a experiências em outras modalidades, como as pentecostais? Nesta cruzada, a Cúria fracassou. João Paulo II levou a Igreja a uma postura conservadora em relação às questões morais. Condenou o homossexualismo como doença e negou a eficácia dos preservativos, apesar das evidências científicas. Pôs as mulheres no ostracismo, desconsiderou a nova estrutura familiar, disse não à fertilização in-vitro. Para dentro da própria Santa Sé, contudo, pouco fez quando estourou o escândalo dos padres pedófilos dos EUA, vergonhosamente desmascarados em 2001. Foi um retrocesso aos avanços do Concílio Vaticano II de João XXIII, divulgado em 1963, lufada de modernidade nos ritos católicos. “O pontificado de João Paulo II foi um desastre para a Igreja”, diz o teólogo suíco Hans Kung, proibido de lecionar desde 1979, condenado pelas duras críticas feitas ao Vaticano. Na ponta do lápis, essa postura produziu um impasse: de 1978 a 2003, o número de católicos cresceu de 757 milhões para 1 bilhão de pessoas. Nesse mesmo período, contudo, houve uma queda de 10% na ordenação de padres.


Pode-se dizer, entre os dois campos de atuação, o político-econômico e o moral, que João Paulo II foi o papa das ambigüidades. Liberais o condenam pela postura reacionária diante da sociedade dos séculos 20 e 21. Tradicionalistas o incensam. Foi ao mesmo tempo moderno e retrógrado. Moderno ao rodar o mundo na figura do “papa da globalização”. Retrógrado ao alienar a Igreja das comprovações científicas – embora tenha reabilitado Galileu Galilei. Mas de uma condição não há como afastá-lo. João Paulo II foi um dos personagens mais decisivos do nosso tempo. “É o primeiro papa da mídia”, resume o cardeal italiano Achille Silvestrini. “Ele percebeu a dimensão global de nosso tempo e tratou de cultivá-la.”

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