O patrimônio da Cúria Romana é de US$ 820 milhões | |||
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O papa saneou as contas da Santa Sé, apesar da recessão econômica mundial
Parai de armazenar para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Antes, armazenai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde ladrões nem arrombam nem furtam. Pois, onde estiver o teu tesouro, ali estará também o teu coração. (Livro de Mateus, capítulo 6, versículos de 19 a 21).
Galeria de arte Antes de sofrer com a precariedade de sua saúde, João Paulo II acordava às 5 da manhã para percorrer os corredores do Palácio Episcopal, repletos de telas de Botticelli e Bernini |
Imagine esse texto bíblico reescrito nos dias de hoje. Ele deveria incluir, além das pragas, da ação do tempo e dos larápios, outros dois inimigos ferozes: a recessão econômica mundial e as perdas com variações do câmbio, problemas essencialmente terrenos. Eles contribuíram, de 2001 para cá, para solapar um dos grandes troféus dos 25 anos de João Paulo II: a saúde financeira do Vaticano. O legado econômico de Karol Wojtyla, depois de um quarto de século, é positivo. Durante oito anos, entre 1982 e 2000, o caixa da Cúria foi saneado. O papa polonês tinha algo em mente: só poderia percorrer o planeta, em sua campanha de evangelização, com as contas em ordem. Assim foi feito. Até 1993, o balanço financeiro da Igreja estava no vermelho havia 23 anos. João Paulo II arrumou a casa – uma casa cujo patrimônio, repleto de edifícios magníficos e mobiliário idem, é estimado em US$ 820 milhões. Esse valor não inclui as obras de arte.
Mas, cabe ressaltar, em tempos de globalização, o equilíbrio financeiro do Vaticano não escapou às oscilações do cenário econômico mundial. Em 2002, as finanças da Santa Sé foram abaladas pelo segundo ano consecutivo. O déficit foi de US$ 15,8 milhões, contra US$ 3,1 milhões negativos em 2001. O cardeal Sergio Sebastiani, secretário da Prefeitura para Assuntos Econômicos da Santa Sé, atribui o mau resultado à queda no mercado de ações. Nessa conta, pesaram ainda as flutuações do câmbio. Os resultados de 2002, os mais recentes com divulgação completa, foram os primeiros depois da conversão da lira para o euro, nova moeda oficial do Vaticano. Houve prejuízo nas receitas de mídia, que incluem a rádio, a TV, o jornal L’ Osservatore Romano e a editora. As perdas de US$ 1,93 milhão do setor, porém, são números melhores que os resultados de 2001, quando o saldo das atividades de mídia ficou negativo em US$ 25,2 milhões.
As doações, inteiramente direcionadas às despesas com atividades institucionais, tiveram um aumento de 2% nos últimos anos. Em 2002, o volume arrecadado foi de US$ 100 milhões. Especialistas nos tesouros do Vaticano têm uma explicação para o volume, considerado demasiadamente modesto: o escândalo dos padres americanos pedófilos, em 2000 e 2001. Explica-se: a Igreja dos Estados Unidos é, ao lado da Alemanha e da Itália, a principal doadora. A má postura dos prelados da terra de George W. Bush, investigados pelo Ministério Público, teria bloqueado o fluxo de dólares. A Prefeitura para Assuntos Econômicos, no entanto, negou a acusação e, em comunicado oficial, afirmou que a culpa seria dos crescentes gastos administrativos, que atingiram US$ 260 milhões em 2002. Segundo o cardeal Sebastiani, apesar das denúncias contra os padres que se aproveitaram de crianças, a ajuda americana ao Vaticano aumentou em 2002. Mas há, sim, um rombo atrelado aos pedófilos: o Vaticano, por respeito à legislação americana, teve que abrir mão de uma parte do dinheiro, transformada em indenização aos familiares dos menores violentados. Em 8 de agosto de 2003, a Arquidiocese de Boston, na qual 130 menores teriam sido molestados pelo sacerdote John Geoghan, de 66 anos, chegou a oferecer US$ 55 milhões às vítimas.
Acervo histórico: O ambiente da Santa Sé é aparentemente simples - mas guarda algumas preciosidades da história da civilização. Da sala de reuniões à biblioteca, passando pela capela particular do papa, esconde-se uma coleção de obras-primas. Entre raridades dos séculos XV e XVI, João Paulo II escrevia as encíclicas e documentos que construíram a lenda de um dos grandes personagens do nosso tempo |
Os resultados financeiros da Santa Sé, divulgados anualmente na internet, não levam em conta as transações do Instituto para Obras Religiosas (IOR), conhecido como Banco do Vaticano. Seus ativos somam mais de US$ 3,2 bilhões de investidores particulares. Trata-se da instituição que gere o cotidiano da Cúria (há dois caixas eletrônicos do IOR no interior da Santa Sé, com instruções em latim, além do italiano, inglês e francês), mas que também produziu uma das maiores confusões dos primeiros anos de João Paulo II. No final da década de 70, a Santa Sé desembolsou US$ 250 milhões a credores do Banco Ambrosiano, que foi a maior instituição financeira privada da Itália e tinha o Vaticano como um dos acionistas. O Ambrosiano foi à bancarrota depois do desaparecimento de US$ 1,3 bilhão. A Igreja se ofereceu para pagar os credores alegando “envolvimento moral” no caso.
Naquele tempo, o principal responsável pelo Banco do Vaticano era o arcebispo americano Paul Marcinkus, hoje vivendo no Arizona, em exílio forçado. Marcinkus fora segurança particular do papa Paulo VI. Ganhou o apelido de “Gorila” quando evitou que o pontífice fosse apunhalado por um artista boliviano nas Filipinas, em 1970. Chegou a governador da Cidade do Vaticano e, entre 1971 e 1989, esteve à frente do IOR. Acabou indiciado em 1982, quando Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano, foi assassinado. O executivo, conhecido como “Banqueiro de Deus”, foi jogado de uma ponte em Londres, com pedaços de tijolo nos bolsos. A máfia italiana foi acusada de mandar matar Calvi, envolvido num esquema de lavagem de dinheiro. Marcinkus não foi investigado, graças à imunidade religiosa.
O escândalo incomodou João Paulo II – e o levou a dar prioridade ao cofre do Vaticano. Escolhia cardeais especialistas em administração como quem elegia o CEO de uma multinacional. O mais celebrado deles é Edmund Szoka, de Detroit, nos EUA, empossado em 1990 como secretário da Prefeitura para Assuntos Econômicos. Foi Szoka quem cortou despesas e incentivou o aumento das contribuições de outros países. Ele instituiu também a publicação anual de balanços financeiros auditados e exortou bispos de todo o mundo a fazer o mesmo. Agora, todo pároco responsável pela gestão de recursos tem noções de contabilidade. “Hoje, a Santa Sé é mais transparente do que muitas grandes corporações”, diz Szoka. A administração de cada paróquia é independente e o Vaticano não dá assistência àquelas que estão em dificuldades financeiras. No caso das paróquias americanas que terão de indenizar vítimas de abusos sexuais, a orientação é para que o dinheiro seja obtido por meio de empréstimos, sem juros, junto a outras dioceses.
Rombo financeiro: O escândalo do Banco Ambrosiano, no final da década de 70, levou o papa a restaurar as finanças da Cúria. Em homilias (acima) ele costumava condenar os males do "capitalismo selvagem" |
A Prefeitura para Assuntos Econômicos também administra as finanças da Cidade do Vaticano, o menor Estado soberano do mundo, em Roma. Ali funciona o comércio de produtos como roupas, artigos de perfumaria e farmácia e aparelhos eletrônicos, vendidos a preços mais baixos devido à isenção local de impostos. Na cidade funcionam ainda duas agências bancárias e um posto de gasolina. Além disso, existe um pequeno parque industrial voltado à produção de mosaicos e uniformes. A cidade, que registrou receitas de US$ 209,6 milhões em 2002, é sustentada pela venda de selos e publicações e pelo dinheiro arrecadado com as entradas para museus. O patrimônio artístico, de valor incalculável, exibe construções como a Basílica de São Pedro e a Capela Sistina de Michelangelo, uma das obra primas da humanidade, repleta de telas de gênios como Botticelli e Bernini. A sede da Igreja abriga também uma valiosa e extensa biblioteca, com coleções de grande relevância histórica, científica e cultural. Foi o cenário perfeito para um papa, João Paulo II, que ensinou aos fiéis uma lição: zelar pelo dinheiro, e movimentá-lo a juros, não é pecado.
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