Luandino Vieira Quebra um Aparente Silêncio de Quase 30 Anos
Em entrevista a Alexandra Lucas Coelho para o Suplemento Mil Folhas, Público, 15/12/2006:
«Ele próprio exagerou as notícias da sua morte. Quer dizer, declarou-se um escritor morto, e não foi há muito tempo (numa entrevista em 2003).
De José Luandino Vieira, o mítico autor de “Luuanda” - o livro que levou a PIDE a escaqueirar a Sociedade Portuguesa de Escritores e a prender o júri que o premiara com o grande prémio de novelística em 1965 - não se tinha livro novo há mais de 30 anos.
O recente “O Livro dos Rios” (Caminho), anunciado como primeiro da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”, quebrou esse silêncio. Que, de facto, foi só para fora, como Luandino afinal diz, e mostra, na sua mesa de escrita, com vista para o rio Minho.
Há 13 anos que vive no cimo do monte sobre Vila Nova de Cerveira, nas terras do antigo Convento de Sampaio, do seu amigo escultor José Rodrigues.
Neste quase Inverno de tanta chuva, a água brota do muito verde por todas as partes, o ar é alto, tudo cheira a terra. José Luandino Vieira, 71 anos que ninguém lhos dava, começou por plantar esta cerejeira que já vai mais alta que dois homens. E a sua casa é isto. A salinha para onde se entra, que também é cozinha e lugar de escrever, um quarto quase nu, uma pequena casa de banho. Aqui aconteceu a primeira parte de uma longa conversa continuada em Lisboa.
MIL FOLHAS - O seu último livro antes deste foi escrito em 1972. Durante todos estes anos…
LUANDINO VIEIRA - Fui escrevendo sempre. Quer que lhe mostre? [Levanta-se, vai à mesa encostada à janela e começa a tirar pastas.] Editora nenhuma me diz: é um livro por ano ou por mês… [Das pastas caem pequeninos blocos de apontamentos do tamanho da palma da mão.] Eu gosto muito de viver. Se estiver sol já não escrevo, saio para a rua. Se está a chover também visto o impermeável e vou andando. Só em último caso, quando já não posso fazer mais nada… [Pega num caderninho.] Este é o primeiro da trilogia [abre-o, folheia]… 1996… foi quando comecei a anotar… [lê um excerto]. Um caderninho anda sempre comigo [pega noutro com um recorte do Calvin colado na capa]. “Eh pá, com um calor destes não tenho vontade de fazer nada” [diz Calvin a Hobbes]. Claro! [Pega noutra pasta] Este é o segundo volume dos guerrilheiros. ..
P.- Mas escreve nestes caderninhos?
R.- Não. Tomo os apontamentos.
P.- E depois escreve à máquina?
R.- Não, à mão.
P.- A trilogia do “Livro dos Rios”, de que ainda só temos este primeiro volume, é o quê?
R.- A ideia é a relação entre o homem angolano com a natureza angolana, no contexto da luta de libertação nacional. A trilogia é só a travessia de um grupo de guerrilheiros de um ponto para outro, numa pequena missão, ter contacto com alguém da frente interna que traz medicamentos.
P.- Anos mais recentes de Angola não vão estar lá.
R.- Não. Até porque…
P.- Não os viveu. R.- Vivi até 1993, mas isso… é parte da minha realidade mas não povoa o meu imaginário. Até porque não a percebo muito bem. Só escrevo quando posso mentir sobre os assuntos.
P.- Aí já estão claros.
R.- É. A História de Angola que incluo aqui está clara, qualquer que seja a leitura. A partir daí posso inventar.
P.- Mas disse uma vez que escrevia para perceber.
R.- Os assuntos estão claros, agora, o que querem dizer… É no momento de escrever que muitas vezes se explicitam. Passo o meu dia a dia aparentemente desligado da literatura e no entanto é literatura do princípio ao fim.
P.- Quando anda nestes campos, vai ali com as ovelhas, vai plantar a cerejeira…
R.- Não tenho consciência. Mas depois dou-me conta de que o modo como vejo isso é sempre ficção.
P.- Por que é que passou 13 anos neste sítio? O que é que ele lhe dá?
R.- Dá-me o total corte com Angola, o que faz com que eu esteja sempre em Angola.
P.- Dá-lhe a Angola em que pode inventar?
R.- A que conheço, em que vivi, a que me vai dando alimento. Se vivesse em Lisboa, fatalmente encontrava os meus compatriotas na rua, nas obras, no metro, e isso é que faz com que se produza a ideia do exílio. Tinha que viver com os meus compatriotas numa realidade que não era a nossa.
P.- A sua Angola pode existir aqui?
R.- Ela está em mim onde quer que eu esteja. Agora, aqui assumo-a sem dificuldade. Olho e nada disto me diz nada em relação a Angola.
P.- Nesse sentido, este lugar liberta-o.
R.- É um espaço de muito mais liberdade do que numa cidade onde encontrasse outros angolanos. E como leio jornais, sei as notícias…
P.- Tem Internet?
R.- Não, culpa minha. Não lido com computadores.
P.- Tem TV Cabo, rádio…
R.- Não tenho rádio, tenho Antena 2! Sou dos que ouvem 24 horas por dia.
P.- Lê os jornais angolanos.
R.- Porque mos mandam.
P.- Saiu um texto de José Eduardo Agualusa na “Capital”…
R.- Pedi ao meu filho que o trouxesse. Disseram-me: o José Eduardo varreu o teu livro.
P.- O que ele diz é que é um grande livro, mas que no sentido de quem esperava um livro novo é uma desilusão.
R.- É a leitura dele.
P.- Ele tinha vontade de ler sobre uma Angola mais actual.
R.- Mas isso então é muito simples. O Zé Eduardo, que é escritor, escreve sobre essa Angola. É o que tem feito.
P.- Nos anos 80 o senhor disse que gostava de escrever um livro que representasse uma ruptura como o “Luuanda” representou, um livro novo. “O Livro dos Rios” é esse livro?
R.- Não. Uma coisa é a gente gostar, outra é ser capaz. Já perdi essa… era estultícia essa declaração.
P.- Quando veio para Portugal, em 1993, veio directamente para o convento?
R.- Vim porque me foi atribuída uma pequena bolsa pela embaixada portuguesa para um ano, e muito embora as bolsas sejam muito reduzidas, o meu modo de vida permitiu-me viver com ela dois anos. Então procurei um sítio para me isolar, porque pretendia mesmo dedicar-me à escrita.
P.- E já era este livro?
R.- Não. Tinha que ser qualquer coisa com a guerrilha na floresta. Era o fascínio da natureza a impor-se, a minha experiência no rio Kwanza, tudo isso. Mas não tinha nenhum projecto definido. No fundo aceitei porque precisava de descansar e me dei conta de que tendo saído da televisão, da União dos Escritores, do Instituto de Cinema, que o que sabia minimamente fazer estava feito, já tinham ficado outros jovens no meu lugar…
P.- Podia regressar a si.
R.- É, um pouco mais a mim. Ser escritor.
P.- O que existia na sua cabeça dessa ideia da guerrilha era o quê?
R.- As histórias que ouvia contar, o conhecimento que fui tendo com os antigos guerrilheiros. Se calhar era assim uma ideia romântica do que significa uma guerra de guerrilha, que tem tudo menos de romântico. E também por me parecer que era do ponto de vista do imaginário o melhor modo de pegar na realidade pós-colonial. A luta de guerrilha já era a contestação, não eram os meus temas [anteriores] do musseque, daquela sociedade e daqueles personagens, era já mais à frente. E continha a minha própria experiência na natureza, a minha vida em Angola. Permitia-me fazer um livro que fosse uma espécie de hino… Às vezes penso que é um livro patriótico, que conclama o amor à terra angolana. Estava com uma ideia muito romântica de escrever sobre árvores, peixes, pássaros, céu, água, rio, e não percebia muito bem como é que o homem havia de estar no meio disso. E percebi que só um grupo de guerrilheiros que tem que passar por isso, mas é alheio a isso, porque o objectivo é outro e as condições não o permitem, a não ser a um personagem que a gente invente, um guerrilheiro meio sonhador, um homem do mar, da praia, que está no meio da floresta. Esse contraste é mais evidente do que para quem cresceu ali. Vim com isso para Portugal. Mas cheguei e deixei-me estar, como é a minha maneira. O meu pai já tinha falecido e a minha mãe pediu-me para eu ficar. Então tive um certo alívio. Porque eu percebia que não ia escrever nenhum livro em dois anos. A bolsa era para investigar, ler, recolher elementos. Foi o que comecei a fazer.
P.- Vivendo onde, primeiro?
R.- Sempre no convento. [Chegado de Angola], saí de Lisboa, viajei para o Porto onde encontrei um amigo que me disse: “Arranjo-te um sítio para ficar em Vila Praia d’Âncora.” Fui, cheguei, vi, disse- lhe: “Fico por aqui. Mas como a irmã do José Rodrigues tem sempre andado a falar no convento de Sampaio, quero cumprimentar o Zé e ver como é…” Chego lá e o Zé diz: “Podes ficar, escolhe. Naquela casa que fiz para a minha irmã ou ali…” Gostei logo [da casinha onde está agora]. Olhei pela janela, vi o rio, assim numa curva, com uma ilha… Isto parece o Kwanza naquela curva, com aquela ilhota… E sentia-me um pouco cansado. São muitos anos, desde 1975 a 1993, sem pensar em mim, no meu mundo. Além do mais, eu tinha 58 anos. Quando minha mãe me pede, com uma lógica imbatível, não tens nada que fazer, não tens ninguém à tua espera, estou aqui eu e tu desde os 15 anos que não me ligaste nenhuma, estou para aqui solitária, eu disse: “Ok, eu fico.” Mas não queria abandonar o convento. Então, duas vezes por mês, chovesse ou fizesse sol, metia-me na camioneta que passa em Cerveira e pára em Fátima [onde a mãe vivia]. O trato tinha sido esse: a mãe vive até aos 100 anos e eu fico. A partir de certa altura os caderninhos já eram muitos, e a bolsa acabou…
P.- Os caderninhos começam logo em 1993?
R.- Os apontamentos começam em 1993, noutros cadernos, em papéis.
P.- Antes não escreveu?
R.- Escrevi coisas que destruí. Um romance chamado “Benvinda e os Outros”, que destruí, uma série de coisas que destruí.
P.- Quer dizer, nunca parou de escrever, de facto.
R.- Não. Fui sempre escrevendo. Pelo menos fui sempre armazenando. Como fui vendo sempre a realidade em termos de literatura, o que é defeito meu, porque muitas vezes subestimo, outras vezes sobreestimo as pessoas, e os sentimentos das pessoas. É sempre uma alienação, uma fuga - protejo-me de que seja uma falta de respeito. Ao ver assim essa realidade, sempre, eu guardo-a já transformada em literatura na minha cabeça. Daí dizer que estou sempre a escrever. Vivo intensamente o real, mas o que armazeno é já literatura.
P.- Esta casa onde vive era para quê?
R.- Para o recepcionista do convento, junto do portão. Aliás é o que faço muitas vezes, comandar o portão.
P.- Nunca chegou a haver recepcionista.
R.- Não. Fiquei. Vivi como sempre costumava viver. Se compro uma camisa, tenho de deitar outra fora.
P.- Todas as suas coisas cabem numa mochila?
R.- Mais os bolsos de trás dos jeans… [ri-se] A sério.
P.- Não tem bens?
R.- Depois obtive um, comprei a ruína de um moinho. Com o dinheiro dos direitos e da bolsa, fui gerindo. Custou-me 600 e tal contos. Todos os anos tenho uma economia e faço mais qualquer coisa, até que cheguei ao luxo de lhe pôr aquecimento por 1500 euros.
P.- Que neste caso é uma necessidade absoluta.
R.- Só em quatro dias do Verão é que não é frio. De noite é sempre, e um moinho junto a um ribeiro é sempre húmido. Foi assim que fui fazendo a minha vida. Com a bolsa e os direitos de autor. Um tipo de escrita muito fragmentada porque era o meu tipo de vida. Fazia sol, qual escrita. Se estava muito vento, muita chuva tinha que ir desviar a água. Sair com as ovelhas, os patos, aquilo tudo, a defesa das raposas.
P.- Se havia sol fazia o quê?
R.- Nada. Andar. E nesse andar de repente chegava-me uma imagem qualquer.
P.- Andar pelas montanhas.
R.- Sim, a pé conheço tudo até Caminha, Vilar de Mouros. Uma vez saí de manhã, eram sete, à procura de um cão que tinha desaparecido, bati aquelas montanhas todas, mais tarde também o meu burro…
P.- Sozinho?
R.- Sozinho. Fui criado assim. Em Luanda a gente andava de pé descalço. A partir de certa altura comecei a rasgar menos e a achar, se calhar estupidamente, “isto não está nada mau”. Se não, era como uma máquina de triturar papel. Escondo e vou ler seis meses depois. Porque quando se escreve fica-se apanhado pela própria euforia e tudo nos parece bom. Depois volta-se lá e está torto como o Diabo.
P.- Mostrava a alguém?
R.- Não. Só dialogo comigo próprio.
P.- É de uma segurança isso…
R.- Não sei se é segurança, se é insegurança.
P.- De uma autonomia, não?
R.- Autonomia, sim. Faz parte do meu carácter. Sempre tive que me virar sozinho. Acabei por ficar mais solitário do que gosto de ser… Não percebe pela conversa que não gosto de ser solitário? Acabo por conversar muito, mas depois retraio-me, meto-me na minha concha. Pronto, foi assim que fui escrevendo. E depois a pressão, também… ah o Luandino nunca mais escreveu, caiu, está morto…
P.- Em Angola ou Portugal?
R.- Angola e Portugal. Pensei que ia querer morrer em paz. Pouco a pouco todos me esquecerão e tudo esquecerei. Mas não. Manteve-se aquele interesse.
P.- Que também correspondia à sua vontade, estava a querer escrever.
R.- Mas isso também porque por muita música que ouvisse, e memórias e um pouco de convívio, a certa altura o tempo é grande de mais. E vai de escrever. Em certos momentos dá um certo prazer. Tenho uma história que vai sair no segundo volume dos guerrilheiros de que gosto muito - uma pequena biografia de um guerrilheiro verdadeiro, que transformei em personagem -, e volto regularmente a ela porque estou sempre desconfiado, para ver se o que sinto quando a leio contém o mesmo tipo de entusiasmo. Se o Deus que está cá por dentro se mantém. E se sim, como não mostro, é a marca que tenho para mim. A última vez que a li chorei. SUBTÌTULO: Elogio a José Eduardo dos Santos.
P.- Acaba de voltar de Angola. Não ia lá há…?
R.- 13 anos.
P.- Sentiu que estava em casa?
R.- Senti. Cheguei ao aeroporto, olhei, vi: “Eh pá, afinal saí daqui ontem. Muitas coisas já modificadas, mas a matriz… Conheci aquela cidade [Luanda] quando era só areia. De modo que por muito que se construa ou se modifique eu vejo sempre a raiz. Isso dá um sentimento de tranquilidade. E a realidade actual de Luanda é uma coisa fascinante e aterradora.
P.- Está sobrepovoada com os milhões de refugiados que não voltaram às suas terras.
R.- Nem voltam. É um problema de todas as cidades do mundo, decorrente deste movimento da urbanização do planeta. Não é nada específico de Luanda. Falei com alguns jovens que me disseram: “A tua cidade morreu. Esta, nós também não queremos. Agora, a que vamos fazer também ainda não percebemos bem.” Em todo o caso, em Luanda, obras públicas é por todo o lado. Andei por todo o sítio, toda a cidade está a fervilhar, num momento de mudança para outra cidade, moderna, igual a todas.
P.- Tem uma casa lá?
R.- Tenho. Ficou com uma das minhas ex-mulheres e está recuperada. E o sítio está melhor. E a União dos Escritores também. Há um elemento, que é o trânsito excessivo. Nesse sítio da minha casa havia tanto carro que não vi muito bem tudo o que tinha sido feito de arruamento, ajardinamento, limpeza. Não estava assim quando saí, e agora quase que não via.
P.- Saiu de Luanda?
R.- Fui ao Lubango, de que gostei muito, a Benguela, e parei no Huambo só para respirar o ar do planalto. Gostei de ver as fazendas que estão fazendo no Lubango. Outra organização da agricultura. Vi, por exemplo, uma plantação de 250 mil laranjeiras! , o que me deu ideia de que a vida retomou o seu caminho normal, noutro contexto, em que as coisas são feitas de outra maneira, quatro anos depois da guerra… são quatro?, tudo começou a mexer, está em contínua mutação, e é muito acelerada, porque há recursos, e há energia social que estava reprimida, retida. Por causa da guerra, as pessoas não se podiam deslocar. E agora, de repente, começou tudo a andar.
P.- E qual é a sua visão do Governo?
R.- Que faz aquilo que é possível fazer naquela situação. Aliás os governos de Angola têm sido sempre assim.
P.- Faz aquilo que é possível fazer pelo povo?
R.- Depende do modo como se olhar para isso. Se se olhar do modo mais estratégico, é verdade que as diferenças de rendimento, de nível de vida, são gritantes, como todas as sociedades em desenvolvimento, vêem-se a olho nu.
P.- E a grande riqueza de Angola pode ser a sua tragédia, ou não?
R.- Ter riqueza nunca é uma tragédia. P.- No sentido em que suscita uma violência que tem a ver com a forma como o dinheiro se move, com a corrupção, tudo isso?
R.- O dinheiro move-se segundo regras e leis internacionais. O dinheiro de Angola não é isolado do dinheiro do mundo. Grande parte do que se passa é ditado pelas regras de funcionamento do capital a nível mundial. E, não vou dizer da exploração, mas da presença dos detentores desse capital, ou dos que ordenam o modo como pode ser utilizado, nos países onde são extraídas essas riquezas fundamentais para o mundo desenvolvido.
P.- O governo não podia fazer mais do que faz?
R.- Ah, sim. É sempre possível fazer mais. Agora, não sou eu, simples cidadão sem conhecimento aprofundado da realidade, que vou discutir a opção tomada por exemplo de privilegiar os investimentos em infra-estruturas rodoviárias. Quer saber se acho que os angolanos vivem bem? Não vivem bem. Podiam estar a viver melhor? É muito possível, mas já estiveram a viver muitíssimo pior.
P.- E como é que vivem os líderes? R.- Eu não vi. Só fui almoçar com um velho amigo, com quem partilhei anos e anos de campo de concentração, uma pessoa extremamente conceituada. E encontrei a mesma casa que sempre lhe conheci, vivendo da maneira simples como sempre vi, recebendo-me com os netos e os filhos, e cada um sentando-se na mesa quando queria. O modo que ele teve de me demonstrar a sua alegria era que o almoço era inteiramente feito com as nossas coisas. Feijão de azeite de palma, e isso tudo.
P.- Quem era?
R.- O escritor Uanhenga Xitu. Que refiro, porque foi das coisas mais reconfortantes que tive neste visita. Porque obviamente muita gente dizia: “Ah, está tudo muito modificado, há pessoas que nem já conhecemos.. .” Mas foi como sempre o conheci. E é uma pessoa, mesmo em termos políticos, de muita, muita influência. Também não posso tirar conclusões, em três semanas, viajando de um lado para o outro, esse tipo de conclusões não seria legítimo tirar.
P.- O que é que as pessoas lhe disseram de como estava o país?
R.- Umas bem, outras mal. Mas é interessante: as que continuam a dizer bem eram as que diziam bem, e as que dizem mal são as que já desde… Portanto há aí também uma parte que é ditada…
P.- Por divisões políticas?
R.- Não, pela vontade que as pessoas têm de ver as coisas hoje, amanhã, depois de amanhã, de acordo com aquilo que sonharam, que gostariam de ver construído, ou das coisas em que participaram e falharam, e gostariam de ver agora não falhadas. Esse é o tipo de pessoas com quem convivo. Portanto, a minha visão é muito inquinada. Muitas vezes quando se diz: “Está mal, é a desilusão própria que está a falar.” Em termos de reconhecer que eles próprios falharam. Eu próprio falhei.
P.- Estou a tentar imaginá-lo a voltar ao seu país e a ver o que é feito da independência pela qual lutou, 30 anos depois, a riqueza que existe na classe que tem o poder. Como é que um homem que vive como o senhor vive, que fala do dinheiro como fala, olha para isso?
R.- Com toda a serenidade.
P.- Achando que é natural, inevitável?
R.- Não sei se é natural. Se a realidade é essa, é porque é inevitável.
P.- Isso também é uma confissão de derrota, não?
R.- Não é derrota. É a confissão da pessoa que em 1975, 76, 77, pensava que era possível construir uma sociedade um pouco mais justa. Só isso.
P.- Afinal não era possível?
R.- Era. Se tivéssemos a capacidade de só nós a construirmos, mas, eu pelo menos, não tinha percebido que isso só se faz com os outros todos, e os outros todos não eram só os meus colegas. Eram os americanos, eram russos, eram sul-africanos. .. Só estou a falar da minha experiência. Não sou uma pessoa desiludida, porque nunca tive ilusões.
P.- Em Angola, no lançamento do livro, pediu desculpa pelos seus pecados.
R.- Sim, porque os meus colegas e amigos durante 13 anos sempre insistiam: porque é que ele não volta? E eu: “Calma, agora estou a fazer isto, sou muito lento.” Mas percebo que para alguns isso foi uma ofensa. Ou lhes criei alguma dificuldade. Que tomaram isso de modo pessoal, ou como ofensa colectiva, por exemplo ao colectivo de escritores, ou de uma maneira pouco patriótica. Peço desculpa por ter provocado isso, agora não podia fugir à minha natureza, ou ao meu direito de viver como a mim me apetece.
P.- Um escritor pode ter uma missão política? Como revolucionário o senhor lutava por um ideal, tinha um objectivo.
R.- Mas o meu ideal não era de tipo utópico. Por exemplo, estou muito tranquilo e feliz nestes 31 anos de independência, porque o que era fundamental foi salvo.
P.- O que é que era fundamental?
R.- A independência política. Ninguém a beliscou, muito embora tenham tentado e se continue a tentar. O jogo político no mundo é esse, limitar a independência dos outros. A integridade territorial. Em certa altura da guerra, das guerras de invasão e depois da guerra civil que se generalizou, na mente e nos relatórios de muita gente estava a partição de Angola em bocados. Aliás, Angola, quando proclamou a independência, foi invadida pelo norte e pelo sul, não era para mais nada, era para partir. Não houve uma beliscadura. E a consciência de angolanos. A consciência nacional, que se reforçou. Mesmo com esta terrível guerra dos últimos anos. As pessoas terão motivos de ódio, é um país estilhaçado, mas se perguntarem se são angolanos… Os angolanos passam para o exterior, e aqui em Portugal já várias vezes me acusaram disso: “Vocês são muito arrogantes.” E eu digo: “Não, só temos é uma alta auto- estima.” E isso ficou. Se estas três coisas em 30 anos não têm valor… Uma consciência nacional muito forte - e viu-se, no campeonato [do mundo] de futebol. Integridade territorial e independência política. Isso dá-me serenidade e confiança para o futuro.
P.- O que é que falta? Democracia?
R.- Democracia, democracia.. . isso. Não sei se falta, se há a mais.
P.- Qual é o regime em que acredita?
R.- Não acredito em nenhum. Um regime é uma coisa perfeitamente transitória. Os homens desenvolvem formas de se auto-governarem conforme as necessidades. São sempre circunstancialismos que determinam isso. Hoje o mundo tem esse modelo, a democracia. E viu- se por exemplo o que deu tentarem impor a democracia no Iraque.
P.- O regime democrático é o ideal?
R.- Não é um regime ideal. É em certas situações aquele que promove mais facilmente e com menos custos a felicidade das pessoas.
P.- Hoje o que Angola tem é uma democracia? É o quê?
R.- Um regime de transição. Aliás, como se pode exigir uma democracia num país que vem de guerra há 30 anos? O Banco Mundial exige, e o Fundo Monetário exige! São exigências que eles próprios sabem que não podem ser cumpridas. Democracia, no sentido formal que lhe dão no Ocidente.
P.- Dê-me o exemplo de um grande estadista.
R.- Nelson Mandela.
P.- E depois?
R.- Depois… Acho que o Che não devia ter feito a última parte da vida.
P.- A última parte começa onde?
R.- Quando aceitou ser ministro.
P.- Não falou em Agostinho Neto.
R.- Sabe porquê?… Pescava com ele. E o tempo que passou até hoje ainda não definiu muito bem a estatura dele.
P.- Há pouco quando andávamos ali no campo mostrou os dois maiores eucaliptos das redondezas, que baptizou Nelson Mandela e Agostinho Neto. O que está a dizer é que a avaliação histórica de Agostinho Neto não é assim tão clara para si?
R.- Não. É mais clara. A minha avaliação é que com o tempo é que se vai ver a grandeza de Agostinho Neto.
P.- Para si, não diminuiu.
R.- Pelo contrário. Só que foi sempre uma pessoa muito discreta e muito pouco auto-centrada. E as acções do estadista não têm o que hoje se chama o brilho. O pensamento de Agostinho Neto é muito profundo. Só avaliando as palavras e as acções é que podemos avaliar a importância dele - para a nação angolana. Mas, por exemplo, em termos de estadistas, um que é no mínimo altamente controverso é o nosso actual presidente.. .
P.- José Eduardo dos Santos.
R.- Para mim não é rigorosamente nada controverso. Porque acho que poucos estadistas, tendo recebido o que ele recebeu, na altura em que recebeu, seriam capazes de terminar com o que ele conseguiu. Aquilo que era importante, fundamental e estratégico foi mantido. E podem agora a nação angolana, o povo, os dirigentes, partir para o futuro de maneira mais tranquila. Porque a soberania, a independência, as fronteiras, a unidade nacional estão. Este capital foi devido, realmente, à actuação de Eduardo dos Santos. Só que como é um estadista discreto e tem um pensamento muito estratégico, muitas vezes as acções da sua política só são entendidas mais tarde. Uma devoção total ao cargo que recebeu em 1979, era um jovem.
P.- Uma devoção?
R.- Sim, devoção à ideia que tem de como construir a Angola em que ele participou desde o início.
P.- Tem havido uma série de denúncias internacionais em relação a matérias que têm a ver com corrupção, para não já não falar da liberdade de expressão, de uma série de mecanismos da democracia. Tudo isto não ensombra a sua visão de José Eduardo dos Santos?
R.- Não. As questões de corrupção são sempre de grau. Em todo o mundo. Angola, fatalmente, está sob o olhar, sobretudo, da comunicação social portuguesa. Não podia ser de outro modo, o que ficou do passado comum e o que há no presente comum fatalmente originam esses holofotes em cima de Angola. Não é em cima da Guiné ou de São Tomé.
P.- Acha que a comunicação social portuguesa persegue o regime angolano?
R.- Não é perseguir. Há uma espécie de fixação em Angola e portanto tudo o que se passa é visto à lupa. E isso faz com que não havendo o mesmo tipo de atenção em relação a todos os outros países, e ao próprio, a visão que se dá, não estou a dizer que é falsa, é distorcida. É fruto de uma atenção desigual. Se quer uma imagem: passa um elefante e as pessoas dizem: “Ah, vai cheio de pulgas…” Em vez de: “Oh, é um elefante!”, não: “Leva pulgas.” Em termos cristãos, há pouca indulgência. São muito indulgentes em relação a outras realidades. Mas é assim, os irmãos, geralmente.. .
P.- Como é que consegue fazer essa avaliação tendo vivido os últimos 13 anos aqui em Portugal?
R.- Recebia todos os jornais e quase todos os dias falava com pessoas. Portanto, nunca estive a viver aqui, estive a viver lá. E aqui, minimamente, entra-me a comunicação social.
P.- Como olha para a literatura angolana? Ruy Duarte de Carvalho, por exemplo?
R.- Um grande escritor, Esse, por exemplo, merecia, muito antes do Luandino, o Prémio Camões. Escreve num português fantástico, uma coisa bela, mesmo. E é um intelectual polifacetado, cinema, artes plásticas, a sua formação de antropólogo, aquele apego à terra, tudo isso faz dele um escritor extremamente original ao ponto de baralhar os géneros.
P.- José Eduardo Agualusa.
R.- Tem o mérito de se concentrar naquilo que ainda está quente. De pegar nas questões quando elas ainda não são muito claras, e portanto arrisca. É um escritor de risco.
P.- E que resultados esse risco tem?
R.- Alguns livros são bons, outros não gosto nada.
P.- Gostou de “Estação das Chuvas”?
R.- Gostei. Não li os dois últimos.
P.- Passando para Moçambique. Tanta gente disse que era pai de Mia Couto.
R.- Não sou pai de ninguém. O Mia seguiu o mesmo caminho que eu quando começámos, quando descobrimos a vocação literária. Ele teve também a possibilidade de ler o Guimarães Rosa. Se foi alertado para isso por que eu o disse não altera nada.
P.- De Angola há mais alguém de quem queira falar?
R.- O Manuel Rui tem um belíssimo romance, “Rio Seco”. O Pepetela continua a seguir a sua linha em que o olhar crítico é temperado pelo facto dele ser professor de sociologia. O Uanhenga Xitu é pena que não tenha continuado a escrever naquela linha que conhece tão bem, rural, da linguagem do povo. Arnaldo Santos, que é um grande poeta e romancista.. .
P.- E em Portugal? R.- Penso que o último livro que li foi da Agustina. Os livros são muito caros e o meu tempo também não é… O que ando a ler… [tira um exemplar no original de “Where I Lived and What I lived for”, de Henry David Thoreau, o autor americano do século XIX que experimentou viver nos bosques].
P.- Muito apropriado.
R.- Na Fnac, só tenho meia dúzia de tostões, o que vou comprar? P.- Mas o Thoreau desistiu da vida nos bosques. Acha que agora podia viver numa cidade?
R.- Posso. Eu vivo, crio, muito metido em mim. A cidade é o sítio ideal para as pessoas estarem só. Aqui não. Aqui nunca se está só.
P.- Voltou de Angola uma semana antes do que previra. Já estava com vontade de ficar. O que é que o impede?
R.- Minha mãe faleceu, tenho que arrumar as coisas todas [em Portugal]. Por um lado sou muito lento e preguiçoso e por outro tanto faz ir este ano como para o ano. Se o meu neto for para a universidade em Capetown, obviamente vou para Luanda. O meu neto é que insiste. 13 anos não é nada mas a gente arranja até laços de amizade que não se desfazem. Não é pegar na mochila e vou, isso faço sempre. Mas por muito que use o sistema de só comprar um livro quando já li e ofereci outro, acabei por acumular coisas.
P.- Os livros que foi lendo ofereceu-os todos?
R.- Ofereço-os, quando são livros que merecem, dou a alguém, ofereço à biblioteca do convento. Alguns que estão aqui são do meu neto. Meus mesmo são aqueles de capa vermelha que fui encadernando, que é a História de Angola e pouco mais. Assim como os discos, que são dois ou três. Desde que tenha Bach, o resto pode ir às urtigas.
P.- Isso é invejável. Está sempre pronto para partir.
R.- Isso estou sempre. E por isso talvez é que não tenha urgência.»
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