Com a redemocratização da vida política no Brasil, a partir dos anos 70, surgiram novos protagonistas da luta de classes no país: os movimentos sociais. Desde então, compreender sua dinâmica, características e funcionamento, tem sido um desafio. Muito tem sido produzido sobre a natureza dos movimentos sociais surgidos no Brasil a partir da abertura políticas da década de 70, com destaque aos estudos sobre o surgimento do MST, da CUT, das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e sobre a reorganização do movimento estudantil com a refundação da UNE, em 1979.
Por Juliano Medeiros*
Mas afinal, que novidades trouxeram à vida política do país estes movimentos sociais? Não existiram movimentos sociais até a década de 70? E quais as características gerais destes movimentos? Quais suas contribuições à luta anticapitalista? Qual sua semelhança com os movimentos sociais na Europa? Estas são algumas das muitas perguntas que surgem diante do desafio de conhecer os movimentos sociais e caracteriza-los minimamente.
Evidentemente, os movimentos sociais no Brasil não surgem apenas como fenômeno da redemocratização. O ativo movimento camponês, sindical e estudantil pré-1964 são prova disso. Porém, com o golpe militar e o aumento da repressão às organizações populares a partir da edição do Ato Institucional nº5, em 1969, o movimento de massas regrediu, perdendo força gradualmente, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as pequenas organizações de vanguarda. Após um período de luta quase absolutamente clandestina (entre 1968 e 1977), surgem do combate ao regime militar novas expressões da luta social de massas, como as Comunidades Eclesiais de Base e o vigoroso movimento operário do ABC paulista. Em 1979 acontece o congresso de refundação da UNE e no início dos anos 80 nascem a CUT e o MST, inaugurando um período de ascenso da luta popular no Brasil.
Em busca de um conceito
Nas últimas décadas o capitalismo passou por inúmeras transformações. Estas transformações criaram novas contradições ao capital, tanto no âmbito de sua reprodução quanto no âmbito de suas conseqüências mais gerais (a questão ambiental, por exemplo). Isto não significa que estas mudanças tenham alterado a contradição "capital versus trabalho", mas que em diversos aspectos, a reestruturação produtiva fez surgir novas condições de exploração que apresentam desafios a uma crítica radical de seus efeitos. Em outras palavras, em momentos de crise como os vividos pelo capital com a desaceleração que se inicia nos anos 60, surgem novas contradições, que se movimentam no interior de dadas condições, apresentando novas demandas e desafios. O neoliberalismo é uma expressão deste fenômeno. Conforme destaca Boaventura (1995):
É, por exemplo, seguro dizer que a difusão social da produção contribuiu para desocultar novas formas de opressão e que o isolamento político do movimento operário facilitou a emergência de novos sujeitos sociais e de novas práticas de mobilização social.
Ainda que o referido "isolamento político do movimento operário" seja no Brasil um fenômeno bem mais recente que na Europa, é inegável sua contribuição para o fortalecimento de novas expressões da luta popular. Por exemplo, poucos anos atrás seria impensável o surgimento de um "movimento de desempregados" fora da esfera da luta sindical, o que hoje já é uma realidade em várias cidades do Brasil com o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).
Em linhas gerais, podemos dizer que os movimentos sociais são a expressão organizada do descontentamento social frente às limitações estruturais do capitalismo. Este descontentamento pode tomar variadas formas, do corporativismo à luta de classes franca e aberta. Como assinala o filósofo István Mészáros (2002), os limites dos movimentos sociais europeus, cuja principal expressão são o "ambientalismo" e certos "feminismos", está exatamente na ausência de uma crítica radical dos efeitos da ordem do capital sobre a vida humana, as relações sociais e o planeta. Um conceito que nos é oferecido por Dalton e Kuechler (1990) diz que os movimentos sociais são "um setor significativo da população que desenvolve e define interesses incompatíveis com a ordem política e social existente e que os persegue por vias não institucionalizadas, invocando potencialmente o uso da força física ou da coerção" (p. 227).
Este conceito, pelo nível de abrangência, pouco explica certas especificidades dos movimentos sociais. Se nos países centrais os principais movimentos hoje são o movimento feminista, ecológico e pacifista, na América Latina temos o MST, as CEB’s e Pastorais, os piqueteros, o movimento indígena na Bolívia, México e Equador, etc. Em nosso continente os movimentos sociais têm conseguido, ao contrário da Europa, dar uma dimensão universalizante à suas pautas[3]. Neste sentido, os movimentos sociais na América Latina, notadamente no Brasil, são a expressão da ampliação dos limites da ação política para além do binômio partido/sindicato a partir de demandas historicamente represadas pelas classes dominantes, como a reforma agrária.
Isto porque, como desataca Mészáros (2002), dado o patamar social historicamente alcançado do antagonismo entre capital e trabalho, não há possibilidade de "emancipação parcial" ou "libertação gradual". Não há libertação da mulher no capitalismo, ou capitalismo sustentável, ao contrário do que afirmam os movimentos feminista e ambiental na Europa, afinados com a perspectiva social-democrata.
Devido às próprias características da sociedade brasileira, combinam-se nela movimentos típicos de países centrais (movimento ecológico ou feminista – ainda que com reivindicações concretas e perspectivas estratégicas distintas) e movimentos orientados para o enfrentamento de problemas próprios de nossa formação social, como o Movimento dos Sem Terra e sua luta por reforma agrária (SANTOS, 1995). Como conseqüência, com a ofensiva neoliberal desencadeada nos anos 90 parcela importante dos movimentos sociais se tornou linha de frente na luta contra o neoliberalismo, colocando em xeque a primazia do operariado na condição de direção da luta de classes.
O movimento estudantil
O movimento estudantil é um movimento social de massas, pluriclassista, formado em sua grande maioria por jovens. Podemos encontrar seus vestígios desde o século XV. A Sorbone conheceu nove meses de greves em 1443 em defesa de imunidades fiscais e contra a submissão da universidade ao Parlamento de Paris. Dez anos depois, a universidade entrou novamente em greve, em protesto pela morte de um estudante.
Na América Latina, o movimento estudantil deu seus primeiros passos na Revolta de Córdoba, o chamado Cordobazo, a primeira greve estudantil do continente, quando dezenas de estudantes da Universidade de Córdoba, Argentina, perderam a vida lutando pela reforma universitária e o fim da estrutura medieval da universidade. No Brasil, o movimento estudantil ganhou expressão nacional e peso social, a partir da fundação da UNE, em 1937.
O movimento estudantil é um movimento social da educação. Nem, por isso é um movimento social essencialmente progressista. Está em disputa, sofrendo e reproduzindo as tensões presentes na sociedade, podendo, diante de determinadas condições, caminhar na direção de uma ação transformadora. Nessa perspectiva, grande parte de suas lutas está vinculada à defesa da garantia de direitos como a universalização do ensino superior público, a regulamentação do ensino privado, a garantia de métodos de avaliação institucional socialmente referenciados, o funcionamento democrático das instituições de ensino, etc. Todavia, no decorrer do século XX o movimento estudantil destacou-se exatamente por sua capacidade de transpor os muros das escolas e universidades e dar expressão de massas a temas universais. Foi assim na França em maio de 1968, quando o movimento estudantil expressou o questionamento e a crítica aos costumes e valores dominantes da época. No Brasil, o movimento estudantil esteve presente nos principais momentos da vida política do país. Foi assim na campanha "O Petróleo é nosso", na luta contra o nazi-fascismo na década de 40 ou contra a ditadura militar a partir de 1964; na defesa das eleições diretas ou na luta pela anistia dos presos políticos. Na defesa da redemocratização, o movimento estudantil voltou às ruas. Não limitou suas reivindicações apenas aos temas relacionados à educação, sendo solidário com as lideranças operárias e populares na luta contra o regime militar.
Nos anos 90, o movimento estudantil, assim como grande parte dos movimentos sociais, atravessou um refluxo de lutas e mobilizações. A partir do "Fora Collor", em 1992, as entidades nacionais deram poucas respostas aos ataques do neoliberalismo à educação pública. Mesmo em momentos de maior acirramento, como na greve das universidades federais em 1998, a direção da principal entidade nacional dos estudantes, a UNE, pouco fez para garantir a direção política do movimento.
A ofensiva neoliberal provocou efeitos devastadores sobre a juventude brasileira. Os índices de participação política dos jovens são decrescentes e a crise do movimento estudantil – que não se resume a uma "crise de direção" – teve efeitos dramáticos. Os valores e práticas dominantes disseminam-se pelo movimento estudantil, provocando um processo de cooptação e burocratização que compromete uma geração inteira de lutadores e lutadoras. Superar esta situação, disputando os rumos do movimento estudantil a partir de uma nova concepção de movimento, democrática, radical, combativa e autônoma é tarefa central.
A unidade do movimento estudantil com os demais movimentos sociais é condição fundamental para o desenvolvimento destas novas práticas. Superar a relação utilitária de setores dos movimentos sociais com o movimento estudantil pode fazer avançar as lutas contra o neoliberalismo. Alguns passos significativos foram dados em 2007, como na luta contra os convênios da Aracruz Celulose com a UFES e UFRGS, quando centenas de mulheres camponesas e estudantes barraram o convênio desta empresa com a universidade na defesa da educação pública e da função social da pesquisa nas universidades federias.
Tarefas, limites e possibilidades
O neoliberalismo provoca um fenômeno contraditório. Se por um lado, a ofensiva ideológica sobre a sociedade em geral, e a juventude em particular, dificultam nosso trabalho de disputa da consciência do povo para um projeto anticapitalista, por outro as tensões que se acumulam a partir das injustiças provocada pela lógica do próprio sistema podem favorecer explosões sociais que se generalizem com rapidez e intensidade. Por isso, o principal desafio do movimento social é articular trabalho de base, organização popular e agitação anticapitalista.
A partir dos anos de 1990, ingressamos num longo período de refluxo das lutas sociais. A ofensiva do capital ao aumentar as taxas de exploração causou profundo impacto na organização da classe trabalhadora. Desde a derrota da greve nacional dos petroleiros, em 1995, o movimento sindical não mais conseguiu enfrentar o bloqueio jurídico repressivo, mantendo mobilizações que, embora importantes, permanecem localizadas, de impacto restrito e corporativo. As demais mobilizações dos movimentos sociais, embora importantes para a organização dos trabalhadores, não conseguiram até o momento alterar essa correlação de forças.
Por isso, deve ser objetivo central dos movimentos sociais no curto prazo a articulação de uma grande frente contra o neoliberalismo, capaz de derrotar seu principal sustentáculo político na atual conjuntura – o governo Lula e seus aliados – e iniciar um novo ciclo de vitórias e conquistas. Para isso, a unidade dos lutadores e lutadoras sociais é imprescindível.
Sendo o movimento estudantil um movimento social capaz de dar expressão de massas a diversas demandas populares, seu desafio é articular a luta em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade com a luta anticapitalista em suas mais variadas expressões. Para isso, é preciso articular três objetivos centrais:
a) Unidade dos movimentos sociais contra o neoliberalismo
O fim do ciclo de unidade em torno de uma única alternativa partidária e o esgotamento político, ideológico e moral desta alternativa, iniciou um processo de dispersão das forças populares em diversas propostas organizativas. Em que pese a centralidade do papel do partido político como espaço capaz de universalizar as diversas demandas da luta socialista, o enfraquecimento desta referência traz, sem dúvida, uma maior dificuldade em garantir a unidade daqueles que lutam contra o neoliberalismo. Entretanto, recentemente os setores populares deram mostras de sua capacidade de unidade em pelo menos três episódios importantes.
A primeira delas, a Jornada Nacional em Defesa da Educação Pública, articulada por entidades e movimentos como a UNE, Ubes, MST, Conlutas, Intersindical, entre outros, que organizou dezenas de atos em várias capitais, colocando na pauta política do país a democratização do acesso e a qualidade no ensino público a partir de uma agenda consensual de 18 pontos para a educação brasileira.
Um segundo momento importante foi o Plebiscito Popular pela anulação do leilão da Cia. Vale do Rio Doce. O Plebiscito, ainda que com enormes dificuldades, foi um marco na luta em defesa da soberania nacional, colocando no centro da agenda dos movimentos sociais o debate em torno do desmonte do Estado brasileiro operado pelo governo FHC e continuado pelo governo Lula. Os mais de três milhões de participantes no Plebiscito foram a prova da capacidade dos movimentos sociais em articular grandes temas numa escala de massas.
Um terceiro episódio que mostrou a possibilidade de unidade dos movimentos sociais, desta vez contra as políticas neoliberais do governo Lula, se deu no amplo movimento de solidariedade à greve de fome do Bispo Dom Luiz Cappio contra a transposição do Rio São Francisco. A truculência do governo federal ao não cumprir o acordo que previa a realização de um amplo debate público sobre os impactos ambientais e sociais da transposição, a intransigência do presidente e seus ministros mais conservadores em negociar condições para o fim da greve de fome de Dom Cappio, e a capacidade dos movimentos sociais em dar expressão de massas à crítica do Bispo à transposição, despertou a atenção da sociedade e colocou amplos setores do povo a favor da greve de fome e contra as obras no São Francisco.
Estes foram três episódios que demonstram a capacidade dos movimentos sociais em garantir uma agenda consensual de luta contra o neoliberalismo. Evidentemente, houve inúmeros retrocessos em todos estes processos, como na posição da CUT e da UNE em relação às perguntas do Plebiscito da Vale do Rio Doce, ou na greve de fome de Dom Luiz Cappio, quando estas entidades perderam a oportunidade de se manifestar abertamente contra a transposição. De qualquer forma, seja pelo governismo de certos setores, seja pelo sectarismo de outros, a unidade dos movimentos sociais segue sendo um desafio que devemos perseguir, e o movimento estudantil, como já demonstrou nestes e em outro episódios, tem plenas condições de dar uma contribuição decisiva.
b) Articulação de plataformas comuns entre os diversos movimentos sociais
Uma das tarefas centrais do movimento estudantil é retomar sua capacidade de articular plataformas comuns entre os diversos movimentos sociais. A atual conjuntura, de refluxo do movimento de massas, e de divisão dos lutadores e lutadoras do movimento estudantil em diversos movimentos, campos e entidades, torna esta tarefa ainda mais complexa.
O ano que passou foi marcado por avanços importantes na unidade dos setores populares. Para além dos episódios destacados anteriormente – Jornada em Defesa da Educação, Plebiscito da Vale e solidariedade à greve de fome de Dom Cappio – houve outras iniciativas que buscaram garantir a articulação de uma agenda comum de lutas entre os diversos movimentos sociais. Neste espírito aconteceu, em março de 2007, o Encontro Nacional contra as reformas neoliberais que reuniu mais de 6000 lutadores e lutadoras de diversos setores com o objetivo de garantir um calendário comum de lutas. Nesta ocasião surgiu o Fórum Nacional de Mobilização, formado por Intersindical, Conlutas, Pastorais Sociais, Oposição de Esquerda da UNE e entidades do movimento sindical, popular e estudantil em geral. Este Encontro aprovou a construção do dia 23 de maio como dia nacional de defesa do serviço público, a participação no dia 17 de abril em memória dos 11 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, em conjunto com o MST, e a vitoriosa marcha do dia 24 de outubro em Brasília que reuniu mais 15 mil lutadores de todo o Brasil, repudiando a reforma da previdência preparada por Lula.
Entretanto, estas iniciativas não contaram com a participação de setores importantes do movimento social brasileiro. UNE e Ubes, por exemplo, seguiram tendo uma postura de tibieza diante das principais mobilizações que ocorreram em 2007. Em alguns casos, como na luta contra o REUNI, a posição aprovada pela direção majoritária da UNE tomou o sentido oposto ao das mobilizações que explodiram pelas diversas universidades federais país afora, colocando-se como fiadora das políticas educacionais do governo Lula. Em outros casos, como no Plebiscito da Vale do Rio Doce, a direção majoritária da UNE e a CUT foram contra a inclusão de qualquer pergunta que pudesse colocar em xeque as políticas do governo federal. Assim, estes setores dificultam a unidade dos movimentos sociais e desrespeitam a autonomia que estas entidades deveriam guardar em relação ao governo Lula.
c) Construção de uma ampla rede de agitação e propaganda antineoliberal
Por último, uma tarefa central na articulação entre o movimento estudantil e os demais movimentos sociais é a constituição de uma ampla rede de agitação e propaganda antineoliberal. Isto significa trabalhar pela rearticulação de uma corrente de pensamento contra-hegemônica de massas, através de meios tais como jornais, sites, campanhas públicas, etc. Entre os temas que devem compor uma agenda de lutas e mobilizações contra as políticas neoliberais em curso no Brasil estão: a) fim do monopólio dos meios de comunicação; b) reforma agrária já; c) contra a precarização e ataque aos direitos previdenciários e trabalhistas; d) redução da jornada de trabalho, sem redução de trabalho; e) suspensão do pagamento das dívida externa, com auditoria; f) pelo fim das privatizações e das Parcerias-Público-Privadas (PPP’s); g) reestatização da Cia. Vale do Rio Doce; h) defesa dos direitos dos povos indígenas e demarcação de suas terras; i) reforma tributária que taxe as grandes riquezas e controle a entrada e saída e capitais; j) abertura imediata de todos os arquivos da ditadura militar e punição de todos os crimes cometidos pelo regime militar; l) retirada imediata das tropas brasileiras do Haiti; m) fim da Desvinculação dos Recursos da União (DRU).
Estas são apenas algumas dos temas que poderiam compor uma plataforma para a esquerda brasileira em geral e para os movimentos sociais em particular. Cabe ao movimento estudantil trabalhar para ir além dos limites de sua direção nacional contribuindo para fazer avançar a unidade dos que lutam sinceramente contra o neoliberalismo.
* Juliano Medeiros é diretor de Movimentos Sociais da União Nacional dos Estudantes (UNE)
Fonte: Estudantenet
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in VERMELHO 15 DE MARÇO DE 2008 - 19h29
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