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Os Serviços de Censura à imprensa contribuíam para um índex extra. Ao cortarem as notas de recensão e as críticas literárias, proibiam a divulgação da produção editorial e cerceavam a escolha dos leitores.
«A China, Ontem e hoje», de vários autores, e «Os exércitos da noite», de Norman Mailer, ambos editados pela D. Quixote, e a «Antologia filosófica», de Marx – Engels, e «A nacionalização da indústria», de Vladimir Vinogradov, editados pela Estampa, eram os únicos livros proibidos, à data da referência no Notícias da Amadora.
Os aparelhos repressivos de Salazar e Caetano harmonizavam-se no seu fim. A PIDE/DGS passava busca às tipografias, às editoras e às livrarias para aprenderem os livros subversivos, enquanto a Censura cortava a notícia mesmo sobre aqueles que estavam autorizados a circular.
O ofício remonta ao século XVI. Foi em 1515 que pela primeira vez o rei D. Manuel II solicitou ao papa Alexandre VI a implantação da Inquisição em Portugal. Dez anos depois, D. João III retomou o pedido apresentado ao papado, mas só em 1531 é que papa Clemente VII nomeou frei Diogo da Silva como inquisidor do reino. E, em 1536, a Inquisição foi instituída em Portugal por bula papal. No ano seguinte, um alvará atestou a primeira determinação censória que é conhecida, constante do privilégio de impressão concedido a Baltazar Dias.
Em 1539, D. João III nomeou o seu irmão, o cardeal D. Henrique, como inquisidor geral, cargo a que foi cometida a responsabilidade de superintender às três inquisições então existentes: Évora, Lisboa e Coimbra 2. Nesse ano, surgem os primeiros livros com a menção de aprovados pelo Inquisição. D. Henrique manteve-se no cargo até 1578, ano em que coroado rei.
António José Saraiva e Óscar Lopes datam de 1547 «o primeiro rol de livros proibidos, sucessivamente acrescentado em 1551, 1561, 1564, 1581, 1624» 3. Dizem os mesmos autores que «nenhum livro podia sair, na segunda metade do século XVI, sem três licenças: a do Santo Ofício, a do Ordinário eclesiástico na diocese respectiva e a do Paço. O relator do Santo Ofício examinava o livro em manuscrito e obrigava o autor a alterá-lo, amputá-lo ou acrescentá-lo, antes de lhe conceder a fórmula “nada contém contra a nossa Santa Fé e bons costumes”».
Segundo se salienta na «História da Literatura Portuguesa», «não podemos afirmar que conhecemos o texto original de uma obra impressa, mas somente um texto ao qual os censores anuíram». Também os livros provindos do estrangeiro estavam sujeitos a uma apertada vigilância. Também no século XVI a Inquisição procedeu à queima de livros.
«Entre os autores proibidos ou amputados pela Censura contam-se Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, João de Barros, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Jorge de Montemor, António Ferreira». Foram os primeiros de muitos autores proibidos e censurados até 1974, entre os quais se contaram Damião de Góis, Luís de Camões, Fernão Mendes Pinto, o padre António Vieira, António José da Silva (o Judeu), Gomes Leal e Bocage.
O sexto e último índice português de livros proibidos foi publicado em 1624, mas vigorou até 1768, altura em que o marquês de Pombal o revogou. Criou, em sua substituição, a Real Mesa Censória. Esta foi extinta, por sua vez, por D. Maria I, em 1787, para dar lugar à Real Mesa da Comissão Geral para Exame de Livros.
Em 1794, a censura aos livros foi transferida para o Santo Oficio da Inquisição e Mesa do Desembargo do Paço. Nos anos subsequentes são impostas novas regras. A censura abrangia também os jornais desde 1641. Este o ano em que surgiu em Lisboa o primeiro jornal português, denominado «Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta corte e que vieram de várias partes».
Com ligeiros interregnos, a censura literária perdurou em Portugal durante mais de 400 anos. A revolução liberal de 1820 e a revolução republicana de 1910 constituem dois momentos, quase únicos, de liberdade de imprensa.
No século XX, a censura foi instituída pelas ditaduras de João Franco (1907), Sidónio Pais (1918) e Gomes de Costa (1926). Depois desta última data, a censura só foi extinta pela revolução de Abril de 1974. O salazarismo perdurou durante 48 longos anos.
Irmã gémea
«Onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da Inquisição, há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossível político», escreveu Alexandre Herculano 4. De facto, a Censura não era substancialmente diferente da Inquisição para alguns dos escritores do século XX. Eram também obrigados a submeter os seus livros à censura prévia. Nos outros casos, a repressão era exercida a posterior e os livros apreendidos e proibidos.
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A Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista publicou, em 1981, a obra «Livros Proibidos no Regime Fascista». A comissão, que funcionava sob a tutela da Presidência do Conselho de Ministros e da qual fazia parte Fernando Piteira Santos, cujo espólio está em depósito na Biblioteca Municipal da Amadora, apurou que foram proibidas cerca de 3.300 obras durante o regime de Salazar e Caetano.
Nos últimos tempos da ditadura, o índice dos livros proibidos apresenta 430 obras, de 268 autores nacionais e estrangeiros. Vladimir Ilitch Ulianov (Lenine) era o autor com maior número de livros proibidos, um total de nove. Seguia-se-lhe Karl Marx com seis obras proibidas.
Com cinco obras proibidas eram quatro os autores: Mao Tsé-Tung, Frederick Engels, Mikail Cholokov e José Felicidade Alves. Este último, que era pároco no Mosteiro dos Jerónimos, assumiu a oposição ao regime no final dos anos sessenta, tendo sido perseguido e excomungado na década seguinte depois de se ter consorciado.
António Sérgio, Urbano Tavares Rodrigues e Raul Rego tinham, cada um deles, quatro livros proibidos. António Almeida Santos, Carlos Loures, Carlos Papiano, Erskine Caldwell, Frank S. Caprio, Harold Robins, J. Magalhães Godinho, Jean-Paul Sartre, Jorge Amado, José Afonso, José Staline, Leon Trotsky, Mário Sottomaior Cardia, Marx/Engels, Natália Correia, Orlando da Costa, Pitigrilli e Vasco Pratolini tinham todos três livros proibidos.
Com dois livros proibidos, eram 32 os autores: Alberto Ferreira, Alberto Morávia, Alexandra Kollontai, Antunes da Silva, Aquilino Ribeiro, Artur Portela Filho, Balsco Hugo Fernandes, César de Oliveira, Daniel Filipe, Emílio Bossi, Fiama Hasse Pais Brandão, Fidel de Castro, Frantz Fanon, Fritz Kahn, Gabriel Jackson, Georges Gurvitch, Ho-Chi-Minh, Jean Cardonnel, Jean Hoppeler, José Pacheco Pereira, José Silva, Louis Althusser, Luís Pacheco, Luís Sttau Monteiro, Manuel Alegre, Máximo Gorki, Modesto Navarro, Norman Mailer, Sérgio Ribeiro, Telo Mascarenhas, Tomás da Fonseca e Wilfred Burchett.
Da lista constavam mais 208 autores, tendo cada um deles um livro proscrito, numa grande diversidade de temáticas.
Além de numerosas edições de autor, os livros proibidos foram impressos por 52 editoras. A Publicações Europa-América, de Francisco Lyon de Castro, falecido este ano, era a que tinha maior número de títulos proibidos. Num total de 28 obras, contavam-se «Os Capitães de Areia», de Jorge Amado, «A Filha do Labão», de Tomás da Fonseca, «O Motim», de Miguel Franco, a «Engrenagem», de Soeiro Pereira Gomes, «A Mãe», de Máximo Gorki, «Histórias de Amor», de José Cardoso Pires, «Geografia Económica da Revolução de 1820», de Fernando Piteira Santos, e «Dicionário Crítico de Algumas Palavras», de António José Saraiva.
A D. Quixote, a Portugália e a Prelo tinham cada uma 18 livros proibidos. Estavam proibidos, entre outros: «Um Português em Cuba», de Alexandre Cabral, «Minha Senhora de Mim», de Maria Teresa Horta, «Regressar para Quê?», de Victor de Sá, todos da D. Quixote, «A Campanha», de Fiama Hasse Pais Brandão, «Seara de Vento», de Manuel da Fonseca, «Terra do Nosso Pão», de Antunes da Silva, os três da Portugália, «O Dilema da Política Portuguesa», de Mário Sottomaior Cardia, «Raízes da Expansão Portuguesa», de António Borges Coelho, «Sobre o Plano e o Planeamento em Portugal», de Sérgio Ribeiro, e «Portugal através de Alguns Números», de Blasco Hugo Fernandes, os quatro da editora Prelo.
As restantes editoras tinham os seguintes livros proibidos: Arcádia e Delfos (17 cada), Estampa (16), Afontamento e Seara Nova (15 cada), Brasília (14), Júlio Brandão (12), Portucalense (11), Ulisseia, Latitude e Moraes (dez cada), Presença (oito), Paisagem (sete), Estúdios Cor e Centelha (seis cada), Dinalivro, Inova e Textos Marginais (cinco cada), Bertrand e Nova Realidade (quatro cada), Livros do Brasil e Inquérito (três cada), Oriente, Íbis, Maria da Fonte, Minotauro, Multinova, Novo Rumo, Edições 70 e Iniciativas Editoriais (dois cada) e Almedina, Assírio & Alvim, CDE, Clássica, Coimbra Editora, Cronos, Guimarães, Livraria Ler, Nosso Tempo, Novo Curso, Novo Tempo, Panorama, Parceria, Raiz, República, Século, Tempo e Ulmeiro (um cada).
Instruções do Interior
Gonçalves Rapazote, ministro do Interior, deu instruções à polícia, a poucos meses do 25 de Abril de 1974, para que fizesse a relação das «tipografias que se dedicam à impressão de livros suspeitos — pornográficos ou subversivos», segundo afirma José Brandão, em «Os Livros e a Censura em Portugal».
Ordenava também que fosse feito «um plano de visitas regulares a essas tipografias para impedir, efectivamente, a impressão de textos susceptíveis de proibição» e também «às livrarias de todo o país para sequestro de livros; revistas e cartazes suspeitos; e para apreensão dos que já estão proibidos pela Direcção dos Serviços de Censura».
As Oficinas Gráficas do Notícias da Amadora estavam, desde que foram criadas em 1970, no roteiro da PIDE/DGS. As suas visitas eram regulares e a fiscalização meticulosa. De tal forma que, para limitar os prejuízos, as páginas impressas dos livros saíam da tipografia para lugar seguro. Para as encasar e encadernar os livros, voltavam às oficinas em pequenos lotes, seguindo os livros para os editores à medida que estavam prontos.
Orlando Gonçalves, que dirigia o jornal e as oficinas gráficas, tinha aperfeiçoado os métodos para iludir a vigilância policial. Tinha uma longa experiência no campo editorial. O seu primeiro romance, «Tormenta», editado em 1948, foi apreendido 15 dias após ter sido posto à venda.
Mas o seu conhecimento advinha também dos projectos que impulsionou, dos quais se destaca a editora Orion, em 1954. A distribuição inicial desta última editora foi garantida pela Publicações Europa-América. Editou, entre outros, livros de Orlando Gonçalves, Antunes da Silva, Faure de Rosa, Júlio Graça, Garibaldino de Andrade, Ferrão Cardoso, Alexandre Cabral, Manuel Ferreira, Romeu Correia, Franco de Sousa, Fernando Alves dos Santos, Leonel Cosme e Miguel Serrano. As edições da Orion teve como ilustradores Manuel Ribeiro Pavia, Cipriano Dourado e Rogério Ribeiro.
Orlando Gonçalves empenhou-se com grande determinação na Orion e trocou ideias sobre o projecto com escritores e jornalistas. Jaime Brasil, jornalista do «Primeiro de Janeiro», deu-lhe resposta em 13 de Junho de 1954. A carta não chegou, porém, ao destinatário. A PIDE apreendeu-a, fazendo parte do processo de Orlando Gonçalves naquela polícia.
Jaime Brasil louvou a «iniciativa de editar livros que aguardam nas gavetas a mágica varinha dos editores». Considerou-a, no entanto, uma tarefa arriscada. «A tipografia não espera» pelo pagamento, enquanto «as livrarias são muito lentas» nas liquidações. Além disso, «os livreiros, que em regra são editores, fazem guerra aos concorrentes que não são do grémio». Não expunham os livros e «atiram-nos para debaixo do balcão e muitas vezes dizem que não os têm».
Jaime Brasil concordava com «um sistema de assinaturas». Garantiria, desde logo, «as despesas da edição» e «poderiam ser editados livros que escapariam assim às bestas da censura, pois quando dessem pela existência do livro já estariam os dois milheiros indispensáveis distribuídos, podendo eles apreender o resto».
Mas isso pressupunha cooperação, o que «não está nos hábitos portugueses», devido a «uma geral falta de confiança e há razões para a haver». Apesar de não augurar «grande êxito ao empreendimento», Orlando Gonçalves meteu mãos à obra e a editora só acabou no início dos anos 60.
Já na década de 70 e no âmbito do Notícias da Amadora, Orlando Gonçalves editou, sob a chancela N.A.-Orion, o livro «Raízes da Nossa Força», de Helena Neves, com fotos de Alfredo Cunha, que foi apreendido pela PIDE/DGS.
O projecto Orion teve antecedentes. Em 1951, Orlando Gonçalves, Fernando Namora, Antunes da Silva, Romeu Correia, F. Alberto Pimentel, Rogério Ribeiro, Manuel Ribeiro Pavia, Julião Quintinha, Carlos de Oliveira, Albino Ribeiro, Virgílio Ferreira, Manuel do Nascimento, Alexandre Cabral, José Cardoso Pires, Faure da Rosa, José Terra, António Manaças, Fernando Santos, Arlindo Vicente e Roberto Nobre faziam parte de um núcleo de colaboradores de um periódico intitulado Colecção «Horizonte». Orlando Gonçalves lançou um primeiro número, que foi apreendido e a Censura proibiu outras edições.
Nesta edição publicam-se um conjunto de textos censurados relativos à leitura, aos livros e a recensões editoriais. Mas publica-se também, logo a abrir, uma reportagem sobre o primeiro Festival de Vilar de Mouros. A sua edição de 1971 foi mais do que um festival de música. Foi um acto político em que também participaram escritores. Por exemplo, Natália Correia, que figura no índice dos livros proibidos, também esteve na aldeia minhota e pronunciou-se sobre o significado daquele encontro de jovens.
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Notas
1 Índice dos livros proibidos nos últimos tempos da ditadura, em «Os Livros e a Censura em Portugal», de José Brandão, Vidas Lusófonas (http://www.vidaslusofonas.pt/).
2 «Censura em Portugal», em http://www.malhatlantica.pt/mediateca/censura2.htm
3 «História da Literatura Portuguesa», de António José Saraiva e Óscar Lopes, Porto Editora, 6ª edição, s/ data.
4 Citado por José Brandão.
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ver também
Censura em Portugal - Wikipédia
.- RODRIGUES, Graça Almeida; Breve história da censura Literária em Portugal; Amadora; Ministério da Educação e Ciência, 1980.
- BRANDÃO, José; OS LIVROS E A CENSURA EM PORTUGAL in Vidas Lusófonas - acesso a 8 de Março de 2007
- "É a terceira vez que sou censurado por Sousa Lara" in Público, 10 de Maio de 1992 - acesso a 8 de Março de 2007.
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